A casa estava cheia. O tipo de cheia que deixa o ar denso, repleto de risos falsos, cumprimentos ensaiados e abraços com tapinhas nas costas. Era o aniversário de 60 anos do Dr. Armando Monteiro, celebrado com direito a buffet elegante, música instrumental ao fundo e muitos convidados do meio médico.
Isis havia prometido a si mesma que ficaria no máximo até o bolo.
Estava com um vestido justo, vinho, ombros à mostra e salto fino. Não era por provocação. Era apenas... o vestido que fez ela se sentir viva naquela noite. Sexy. No controle.
— Você vai fazer gente passar mal com esse vestido — sussurrou Melina, ao seu lado, segurando uma taça de espumante. — E não falo dos cardiopatas, falo do Dr. Lacerda mesmo.
— Mel! — Isis riu, mesmo sem querer, escondendo o rosto atrás da taça.
— O que foi? Só estou dizendo a verdade. Ele tá te olhando como quem tá fazendo mil cálculos morais e perdendo em todos.
Isis não precisou virar o rosto. Sentia o olhar. Queimando. Atravessando.
Eduardo estava do outro lado da sala, em pé perto da mesa de queijos, falando com Rodrigo — o amigo sarcástico de sempre, que fazia piadas demais e observações certeiras. Ele usava um terno preto, simples e elegante, mas era o jeito que segurava a taça, os olhos intensos, a postura calma que faziam Isis tremer por dentro.
Eles não tinham trocado mais do que um “olá” nos últimos meses. Mas cada encontro era um campo minado de tensão.
— Cuidado, Isis — a voz da mãe, Helena, surgiu suave às suas costas. — Esse salto está perigoso demais pro chão que você quer pisar.
Isis fingiu um sorriso. Helena era assim. Sutil. Mas nunca errava.
— Estou só bebendo espumante, mãe. E dançando com os olhos, no máximo.
— Dançar com os olhos também engravida — respondeu Helena com doçura, dando um beijo na testa da filha antes de se afastar.
Melina riu alto.
— Sua mãe é uma lenda. Quase me fez cuspir o champanhe.
— Ela é um radar humano.
Mas nem o radar de Helena, nem as piadas de Melina, impediram que Isis e Eduardo finalmente se esbarrassem. No corredor lateral, perto da cozinha, enquanto ela voltava do lavabo e ele buscava mais vinho.
— Licença — ele disse, a voz baixa, rouca, gentil. Mas os olhos... os olhos diziam tudo que não podiam.
Ela não respondeu. Apenas levantou o olhar, firme, e respondeu com a mesma arma.
Silêncio. Um segundo. Dois.
— Está diferente — ele murmurou. — Mais mulher do que menina.
— E você está igual — ela respondeu, com um sorriso sutil. — Igual a quando eu tinha dezessete e você evitava me olhar por mais de três segundos.
Ele riu. Nervoso.
— Você sempre teve uma língua afiada.
— E você, sempre com medo de se cortar.
Ela passou por ele. E sentiu. O arrepio, a vontade, o limite sendo testado. Sabia que a partir daquela noite, nada seria igual.
E talvez... fosse exatamente isso que ela queria.
Eduardo acordou antes do despertador.
O que era raro.
Ele costumava dormir feito pedra. Mas naquela noite... não houve pedra. Só faísca.
E o nome dela era Isis.
A imagem do vestido vinho, justo demais para a sanidade dele, ainda estava cravada como bisturi em pensamento. Aquela boca levemente curvada no canto. A ousadia dos olhos. A malícia disfarçada de brincadeira.
Ela é a filha do Armando.
Ele repetia isso como um mantra. Como quem tenta reverter um quadro clínico grave com palavras.
No hospital, o cheiro de café e desinfetante o recebeu como sempre. A rotina era sua anestesia. Mas, naquele dia, nem mesmo uma cirurgia cardíaca de sete horas conseguiria desligá-lo.
Rodrigo, como sempre, percebeu.
— E aí, doutor? Tá com cara de quem viu o apocalipse... ou pior: de quem viu a filha do Armando vestida pra matar.
Eduardo soltou o ar com força, sem sequer levantar os olhos do prontuário.
— Nem começa.
— Ah, então é isso mesmo! — Rodrigo se jogou na cadeira do consultório, colocando os pés sobre a mesa, desrespeitando todas as normas de conduta, como sempre. — Sabia. Sabia! Eu vi vocês conversando perto da cozinha. A temperatura caiu uns 3 graus no salão quando vocês se olharam. A Helena quase teve que chamar os bombeiros.
— Ela tem 22 anos, Rodrigo.
— E você tem 38. Parabéns, você sabe fazer contas.
— Ela é a filha do meu melhor amigo. Praticamente cresceu me chamando de “Dudu”.
Rodrigo arregalou os olhos.
— Dudu? Aí complica mesmo. Mas relaxa... agora ela provavelmente te chama de “vem cá”.
Eduardo jogou uma caneta na direção dele.
— Isso não vai acontecer. Não pode.
— E por que diabos não pode?
— Porque é errado.
— Errado é operar sem luva, meu amigo. Isso aí que você tá sentindo é tesão com uma pitada de culpa católica.
Silêncio.
— Além disso — completou Rodrigo — ela é linda. Inteligente. E deixou de ser uma adolescente há anos. Você acha que ela não sabe exatamente o efeito que causou com aquele vestido?
Eduardo suspirou, passando a mão pelos cabelos.
— Eu não posso, Rodrigo. Mesmo que... mesmo que eu quisesse.
— Você quer, Eduardo. E ela também. Tá escrito nos olhos dela. E se eu enxerguei, o Armando logo vai enxergar também. Então te digo só uma coisa: ou você põe um fim nisso agora, ou aceita que tá ferrado. Porque desejo, meu amigo... não tem freio. E essa menina vai te atropelar com salto e tudo.
Eduardo não respondeu.
Mas o silêncio já tinha a resposta.
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Atualizado até capítulo 77
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