Sorrisos que Enganam

O céu estava quase completamente alaranjado quando Henrique soltou um leve sorriso, puxando Cláudia para um breve abraço. Ele não sabia exatamente por que, mas sentia que ela precisava daquele gesto. Talvez fosse apenas cansaço… ou o peso da tentativa de começar de novo. De recomeçar a vida com alguém.

— Está tudo bem — murmurou ele. — Eu entendo. É muita coisa pra assimilar. Você está se esforçando, e isso já é muito.

Cláudia suspirou aliviada contra o peito dele, escondendo um sorriso vitorioso sob a expressão doce de gratidão.

Henrique era assim. Sempre tinha sido. Um coração bom demais. Confiava demais. Perdoava fácil. Não era tolo — mas era gentil. E essa gentileza era o que, aos poucos, Cláudia começava a saber exatamente como usar.

— Papaaaai! — Aurora gritou do playground, com o rosto suado e sorridente. — Posso tomar mais um sorvete?

Henrique riu, se afastando do abraço.

— Mais um? Você vai virar sorvete, pequena!

Aurora fez um biquinho encantador, os olhos brilhando de expectativa.

— Prometo que é o último!

Henrique fingiu pensar um pouco, então assentiu.

— Tá bom… mas só porque hoje é um dia especial. Eu vou lá pegar. Quer vir comigo?

Aurora balançou a cabeça, ainda animada, mas logo avistou Cláudia sentada no banco.

— Não, vou esperar aqui com ela.

Henrique acenou e seguiu para o balcão. Quando se afastou, a atmosfera em volta da mesa mudou.

Cláudia permaneceu com o olhar no celular, como se Aurora sequer estivesse ali. Não disse uma palavra, não devolveu o sorriso tímido que a menina deu ao se aproximar. Nem mesmo levantou os olhos.

Aurora, que havia se sentado ao lado dela, ajeitou seu uniforme com as mãozinhas pequenas e esperou… talvez uma pergunta, talvez um gesto. Mas o silêncio permaneceu. Um silêncio que dizia muito sem dizer nada.

Depois de um minuto, Aurora tentou:

— Você gosta de sorvete de flocos? Eu gosto. Mas hoje eu escolhi o de morango porque é rosa.

Nenhuma resposta.

Cláudia deslizou o dedo na tela do celular, fingindo não ouvir. E mesmo com o mundo ao redor cheio de cores, risos e música baixa, Aurora sentiu um pequeno nó no peito. Aquele silêncio não era como o do luto, ou o da saudade de sua mãe. Era um silêncio que fazia a alma se encolher.

Pouco depois, Henrique voltou com o copinho de sorvete, sorridente.

— Aqui está a princesa do sorvete de morango!

Aurora se animou de novo — e no mesmo instante, Cláudia guardou o celular, sorriu e passou o braço com leveza pelas costas da menina.

— Essa pequena aqui estava me contando que ama rosa — disse ela, rindo com doçura. — Não é uma fofa?

Henrique olhou a cena com ternura. O coração se aqueceu por dentro.

— Vocês duas juntas assim… é tudo o que eu queria ver.

Aurora sorriu, mas ficou em silêncio. O doce do sorvete não disfarçava o sabor amargo do que acabara de sentir.

Naquele momento, algo cresceu dentro dela. Ela não saberia nomear, porque tinha apenas nove anos… mas era como se, lá no fundo, algo dissesse que aquela mulher não era exatamente quem parecia ser quando o papai estava por perto.

Já era noite quando Henrique estacionou o carro na frente do prédio onde Cláudia morava. Ela tirou o cinto com um suspiro cansado, mas antes de sair, se inclinou e deu um beijo no rosto dele.

— Obrigada pelo dia. Foi… diferente. Intenso — disse, sorrindo.

Henrique segurou sua mão por alguns segundos.

— Você foi incrível, Cláudia. De verdade. Eu sei que não é fácil se aproximar da Aurora. Ela é doce, mas tem um mundo próprio, entende? Ainda sente muita falta da mãe…

Cláudia assentiu, com expressão compreensiva, quase triste.

— Eu entendo. E quero respeitar o tempo dela… e o seu também.

Ele sorriu, encantado com a aparente sensibilidade dela. Cláudia então saiu do carro, se despediu com um aceno e esperou ele dar a volta com o carro até sumir da esquina.

Foi só depois de garantir que estava sozinha que tirou o celular da bolsa e ligou para alguém.

— Oi, Lu... Já cheguei. Menina, você não faz ideia do esforço que foi — disse em um tom completamente diferente. — A filha dele é um desafio. Fica ali… olhando, quieta. Mas sabe aquela criança que parece te analisar o tempo inteiro? Me dá um arrepio.

Do outro lado da linha, a amiga disse algo que fez Cláudia rir.

— Claro que eu sorri! Fingi a doçura todinha. Se eu não fizer isso, como é que vou conquistar o homem de vez? Mas te juro… aquele olharzinho dela me incomodou. Só que ele… ah, ele tá no papo. Tão bobinho, tão carente. Acha que sou um presente do destino.

Ela revirou os olhos com leveza.

— Enfim. Um passo de cada vez. Primeiro, o coração dele. Depois… o que vier. Agora deixa eu subir, que tô exausta.

Cláudia desligou o celular com um leve sorriso frio e entrou no prédio.

No caminho de volta, no banco de trás do carro, Aurora observava as luzes da cidade passarem pela janela. Henrique dirigia cantarolando baixinho, com um sorriso nos lábios, de coração leve.

— Foi um dia legal, né, filha?

Aurora hesitou por um instante. Ela olhou para o pai, que parecia realmente feliz. Não queria apagar aquele sorriso. Não queria magoá-lo.

Então, sorriu também.

— Foi… foi sim, papai. Eu gostei.

Henrique estendeu a mão para trás e Aurora a segurou com carinho. Ele a apertou com ternura, achando que tudo estava perfeito. Que estavam todos bem. Que, finalmente, a vida estava tomando um novo rumo.

Mas, no silêncio do banco de trás, com os olhos fixos nas luzes da cidade, Aurora sentia — mesmo sem saber explicar — que havia algo errado no meio de tudo aquilo.

Ela só não sabia ainda o quê.

Aurora empurrou a porta de casa com um leve empurrão dos ombros, equilibrando o potinho do último sorvete que Henrique insistira para ela trazer. As luzes amareladas da sala pareciam mais suaves àquela hora da noite, aconchegantes como um abraço silencioso.

Ela entrou devagar, tirando os sapatinhos de verniz azul marinho que agora marcavam o dia especial — tão especial quanto confuso — que acabara de viver. Colocou-os no cantinho do tapete da entrada, onde sempre deixava. Depois pendurou a pequena bolsinha de unicórnio no cabide da parede, exatamente como Elisa a ensinara a manter a casa organizada.

— Pode deixar as coisas aí, meu amor — disse Henrique, entrando logo atrás com as chaves e o casaco nas mãos. — Vou tomar um banho rapidinho. Daqui a pouco a gente vê um filminho, que tal?

Aurora assentiu com um sorrisinho discreto.

— Tá bom, papai.

Henrique caminhou em direção ao banheiro, cantarolando baixinho. Ela seguiu até o sofá, se jogando com cuidado sobre as almofadas.

A porta de entrada se abriu de novo com um baque seco e uma energia completamente diferente tomou o ambiente.

Lívia entrou com a mochila jogada em um ombro, fone de ouvido em um dos lados e o celular na outra mão. O rabo de cavalo bagunçado e o tênis desamarrado anunciavam que ela viera direto da escola — e que não estava muito a fim de conversa.

— Oi. — disse secamente, sem tirar os olhos do celular.

Aurora ergueu o olhar e deu um pequeno aceno.

— Oi, Lívia.

Lívia atravessou a sala com passos arrastados, largando a mochila no chão com um baque abafado e se espreguiçando como se estivesse exausta do mundo inteiro. Foi até a cozinha, pegou um copo d’água e então, como quem decide prestar atenção só porque quer saber do que perdeu, voltou à sala e olhou para a irmãzinha.

— Então? Foi hoje o passeio com o papai?

Aurora assentiu, ainda segurando o potinho de sorvete quase derretido.

— Foi sim.

Lívia se jogou no outro canto do sofá, puxando uma almofada para o colo.

— E... conheceu a nojenta?

Aurora franziu a testa, surpresa.

— Quem?

Lívia rolou os olhos, como se fosse óbvio.

— A namoradinha dele, ué. Aquela Cláudia. Falsiane. Rosto de boazinha, alma de víbora. Ele te levou para isso, né?

Aurora mordeu o lábio inferior. Não sabia se podia — ou devia — concordar. Também não gostava de como Cláudia a ignorara, mas não queria magoar o pai.

— Eu... a gente tomou sorvete. Foi só isso.

Lívia bufou.

— Hm. Aproveita, então. Porque essas aí vêm com sorriso, mas sempre acabam estragando tudo.

Ela puxou de novo o celular, como se encerrasse o assunto. Aurora ficou ali, abraçada ao próprio potinho de sorvete, pensativa.

Ela não entendia tudo, mas sentia.

Algo estava mudando… e talvez não da melhor maneira.

Ao fundo, a ducha do banheiro foi desligada e Henrique cantarolava, distraído, como quem não fazia ideia da tempestade que poderia estar germinando bem debaixo do seu próprio teto.

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