Um Amor, Duas Metades

O tempo parecia correr em dois mundos distintos. Do lado de dentro da maternidade, a equipe médica lutava contra o relógio. Do lado de fora, Henrique enfrentava o tempo do coração — aquele que se arrasta entre a fé e o medo.

Dona Marta estava sentada com Lívia no colo, tentando distraí-la com histórias baixinho. Mas Henrique não conseguia se sentar. Andava de um lado para o outro, os olhos fixos nas portas brancas que nunca se abriam.

Foi quando uma enfermeira surgiu no corredor, segurando uma manta cor-de-rosa.

— Sr. Henrique?

Ele se virou de imediato, o peito disparando.

— Sua filha está pronta para ser amamentada. Mas como a mãe ainda está em cirurgia… gostaríamos que o senhor a segurasse um pouco. O contato ajuda a acalmá-la.

Henrique apenas assentiu, mudo. Caminhou até a enfermeira, que lhe entregou com delicadeza o pequeno embrulho — Aurora.

Ela estava desperta, olhos semicerrados, a boquinha fazendo um biquinho involuntário. O corpinho aquecido pela manta se encaixou contra o peito dele como se sempre tivesse pertencido ali.

Henrique engoliu o choro.

— Oi, filha… papai tá aqui, tá?

Ele se sentou devagar, com Aurora nos braços. A emoção tomou conta. Era tão pequena. Tão indefesa. Tão perfeita. Mas naquele instante, o amor dele era atravessado por uma dor que crescia, silenciosa, como uma sombra encostando devagar na luz.

Dona Marta observava a cena com olhos marejados. Aproximou-se devagar, pousando a mão no ombro do filho. Naquele gesto, Henrique sentiu toda a força do colo que sempre o sustentou.

— Ela vai precisar muito de você agora, meu filho… — sussurrou, referindo-se à neta.

Henrique apenas assentiu, afundando o rosto nos cabelos finos da bebê. Respirou fundo o cheirinho doce e morno de recém-nascido, tentando gravar aquele momento na alma.

De repente, a porta branca se abriu com um rangido discreto, e a médica surgiu. Retirou a touca cirúrgica devagar, como quem carrega um peso, e aproximou-se com um olhar firme, mas gentil.

Henrique se virou, e a postura da médica o paralisou.

— Doutora? A Elisa…?

Ela respirou fundo antes de falar. O silêncio entre uma palavra e outra foi um abismo.

— Sr. Henrique… sua esposa teve uma hemorragia grave logo após o parto. Nós fizemos de tudo. Intervenções rápidas, transfusão, compressão, mas o corpo dela não respondeu como esperávamos. Ela… ela não resistiu.

Por um instante, o mundo ficou mudo. O som do choro de um recém-nascido, os passos no corredor, os barulhos da maternidade — tudo sumiu. Só havia o eco daquelas palavras e o silêncio entre elas.

Henrique encarou a médica sem piscar, como se o cérebro se recusasse a entender.

Depois, baixou os olhos para Aurora. E só então, uma lágrima silenciosa caiu.

— Ela... ela se foi? — a voz saiu trêmula, quase infantil.

A médica assentiu com tristeza contida.

— Ela estava consciente antes da cirurgia. Pediu para ver a filha. Segurou a mãozinha dela. Sorriu. Foi o último gesto que teve. Ela... partiu com paz. Com amor.

Henrique se sentou lentamente, ainda com Aurora nos braços, como se as pernas já não respondessem. A bebê fez um pequeno som, como se pressentisse o peso do ar.

Dona Marta tapou a boca com a mão ao ouvir. Seus olhos se encheram num segundo.

— Não… não a Elisa… — sussurrou, cambaleando, aproximando-se do filho.

Henrique abaixou a cabeça e, num impulso, apertou a filha contra o peito. O corpo dele tremia.

— Por quê? — murmurou. — Ela estava bem… sorrindo hoje de manhã… a gente ia voltar para casa juntos…

A médica se abaixou ao lado dele, sem tocar, apenas presente.

— Eu sinto muito, de verdade. Elisa foi forte. Lutou até o fim. Ela deixou amor por todos os lados. E essa menininha nos braços do senhor… é a maior parte dele.

Henrique chorava em silêncio. Não soluçava. Apenas deixava que as lágrimas caíssem, pesadas, quentes, como se cada uma levasse um pedaço da história deles.

Dona Marta ajoelhou-se ao lado, envolveu o filho num abraço contido e forte, enquanto Aurora, alheia à tragédia, dormia serena no centro daquele luto.

— Eu tô aqui, meu filho… — disse a mãe, com a voz embargada. — Eu tô aqui com você. E com elas.

Henrique encostou o rosto nos cabelos da filha e fechou os olhos. Naquele momento, parte dele havia morrido. Mas outra parte, pequena e frágil, respirava no seu colo — esperando por tudo que ele ainda seria capaz de oferecer.

Henrique, então, com uma filha nos braços e outra encostada no joelho, sentiu a dor mais profunda e o amor mais inteiro que já conhecera. A vida havia dividido sua alma em duas.

Pouco depois, com o coração ainda em pedaços, ele foi levado pela enfermeira para um dos quartos da maternidade. Aurora já havia sido alimentada por sonda, estava limpa, cheirosa e enrolada em uma manta rosa de lã macia. O berço aquecido emitia uma luz suave e reconfortante. Henrique a acomodou ali, devagar, com cuidado redobrado, como se ela fosse feita de vidro soprado.

Minutos depois, Dona Marta entrou no quarto, com Lívia pela mão.

A menina hesitou ao passar pela porta.

— Papai… — disse baixinho, os dedos apertando os da avó.

Henrique se virou com suavidade, forçando um sorriso enquanto se ajoelhava diante dela.

— Vem cá, princesa…

Ela correu até ele e o abraçou forte, o rosto encostado no peito do pai. Ele fechou os olhos, sentindo-se ancorado naquele pequeno abraço.

— Cadê minha irmãzinha? — perguntou, erguendo o rosto com uma curiosidade doce.

Henrique se levantou, segurando a mão dela, e a levou até o bercinho.

Lívia se aproximou, de pontinha de pé, e espiou por sobre a borda. Seus olhos se arregalaram.

— Ela é tão pequenininha! Parece uma bonequinha de verdade.

— É a nossa bonequinha — respondeu Henrique, com um sorriso triste. — Mas de verdade mesmo. E sabe o que ela é?

Lívia olhou para ele, esperando.

— Um pedacinho da mamãe… que vai viver com a gente todos os dias.

A menina ficou em silêncio por um instante. Depois se aproximou ainda mais, apoiando os bracinhos no berço. Aurora se mexeu levemente, fazendo um biquinho.

— Ela é linda, papai. Posso tocar nela?

— Pode, mas bem de leve, tá?

Lívia esticou o dedinho com delicadeza e encostou na mãozinha da irmã. Aurora agarrou o dedo sem nem abrir os olhos. Lívia deu um sorriso encantado.

— Ela me segurou!

Henrique sentiu os olhos encherem de novo. Do lado, Dona Marta também se emocionava em silêncio.

— Ela já te ama, Lívia — disse o pai, com a voz embargada. — E vai precisar muito de você.

A menina assentiu com firmeza.

— Eu vou cuidar dela. Igual a mamãe cuidava de mim.

Henrique se abaixou para abraçá-la mais uma vez, agora com a cabeça encostada à da filha mais velha. Três corações em silêncio, tentando aprender a bater de um novo jeito.

E naquele pequeno quarto de hospital, onde a dor e o amor conviviam como irmãos, a vida seguia — frágil, mas pulsante.

Porque Aurora tinha acabado de chegar.

E porque Lívia já estava pronta para amá-la por dois.

Lívia estava sentada no colo da avó, com os olhinhos fixos no berço onde Aurora dormia. O silêncio da sala era denso, cheio de ausências. Henrique se aproximou devagar e sentou-se ao lado das duas.

A menina puxou a manga da camisa do pai, olhando para ele com um franzido de confusão na testa.

— Papai… a mamãe já viu a Aurora?

Henrique respirou fundo. Passou a mão nos cabelos da filha.

— Viu, sim, meu amor. Ela segurou a mãozinha dela… e sorriu.

Lívia sorriu também, aliviada.

— Então… por que ela ainda não voltou? A mamãe não vai vir com a gente pra casa?

Henrique hesitou. O nó na garganta queimava. Dona Marta apertou levemente os ombros da neta.

— A mamãe… — ele começou, engolindo em seco —... a mamãe teve que ir pra um lugar muito especial. Um lugar que a gente não pode visitar agora.

Lívia franziu a testa.

— Ela foi viajar?

Dona Marta respondeu com a voz doce, mas firme:

— Foi, meu anjo. Uma viagem para um céu cheio de amor. Mas mesmo de lá… ela vai estar com vocês. Sempre.

A menina ficou quieta por alguns segundos, olhando para o chão.

Depois ergueu o rosto:

— Então... ela vai ver a gente de lá de cima?

Henrique assentiu, com os olhos marejados.

— Vai sim. E vai ficar muito orgulhosa da sua irmãzinha. E da menininha incrível que você é.

Lívia encostou a cabeça no ombro do pai e sussurrou:

— Eu vou cuidar da Aurora.

Henrique a abraçou apertado, deixando o silêncio falar por ele. E, por um instante, entre lágrimas contidas e promessas silenciosas, eles se deixaram consolar pelo amor que ainda restava.

A madrugada envolvia o quarto da maternidade com sua penumbra suave. Aurora dormia em silêncio no bercinho aquecido. Lívia, finalmente vencida pelo cansaço, repousava no colo de Dona Marta, que cochilava na poltrona ao lado, com a cabeça pendendo levemente para frente.

Henrique estava na poltrona reclinável, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas sobre o rosto. O corpo doía. A mente, mais ainda. Cada segundo do dia parecia girar dentro dele, como um filme de memórias e despedidas entrecortadas.

Os olhos ardiam. Ele piscava devagar, tentando se manter acordado, como se dormir fosse deixá-la ir de vez.

Mas o corpo já não obedecia.

Quando adormeceu, foi como cair num outro tempo.

No sonho, o quarto não existia mais. Ele estava em um campo aberto, de grama verde e céu alaranjado, como o fim de uma tarde de verão. O ar era leve. Tudo parecia calmo.

Ele estava em um campo aberto, de grama verde e céu alaranjado, como o fim de uma tarde de verão. O ar era leve. Tudo parecia calmo.

E ali, de pé, como se o esperasse há muito tempo… estava Elisa.

Vestia um vestido branco simples, os cabelos soltos ao vento, o sorriso doce de sempre — o sorriso que fazia o mundo dele parar.

Henrique se aproximou num passo hesitante, como se tivesse medo que ela desaparecesse.

— Eli...? — sussurrou, incrédulo.

Ela assentiu, sorrindo com os olhos.

— Você tá aqui… — ele disse, num sussurro embargado.

— Estou. Por um instante só — respondeu ela, com a voz baixa, mas cristalina.

Henrique parou diante dela, a respiração presa no peito. As lágrimas já escorriam.

— Por quê? Por que você se foi?

Elisa tocou o rosto dele com delicadeza, como quem acalma um passarinho ferido.

— Porque era a minha hora. Às vezes, amor, a vida muda os planos. Mesmo quando a gente ainda tem tanto pra viver.

— Não é justo — ele murmurou, com raiva e tristeza no mesmo tom. — Você… você ia voltar comigo. A gente tinha uma vida inteira ainda…

Ela segurou as mãos dele entre as suas.

— Eu volto, Henrique. Em cada pedacinho da Aurora. No jeito que ela vai franzir a testa quando se concentrar. No som do riso dela. E no cuidado que você vai dar. Você vai me ver nela. Todos os dias.

Ele desabou num abraço, apertando o corpo dela com a urgência de quem sabe que é a última vez. E ela o acolheu, firme, doce, segura como sempre.

— Cuida das nossas meninas — sussurrou no ouvido dele. — E deixa que eu cuido de você, de onde eu estiver.

Henrique tentou dizer algo, mas tudo se desfez em silêncio. A imagem dela começou a se esvair como névoa sob o sol.

— Elisa! Espera! Não vai!

Mas ela apenas sorriu uma última vez.

— Você não está sozinho.

E desapareceu.

Henrique acordou com um sobressalto, os olhos úmidos, o peito apertado. Por um instante, olhou ao redor sem saber se tinha sonhado mesmo.

Mas Aurora resmungou baixinho no berço, como se sentisse a ausência e a presença ao mesmo tempo. E no rosto dela, havia algo — um contorno, uma expressão, um calor — que parecia, por um segundo, o mesmo sorriso de Elisa.

Henrique limpou o rosto com as costas da mão e se inclinou para perto da filha.

— Eu vou cuidar de você, minha pequena. Por mim… por ela… por nós.

E, naquele sussurro, a noite pareceu menos escura.

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