Kael
A noite caiu sobre a cidade como um véu espesso. As luzes da oficina recém-reformada brilham com força, iluminando a calçada e atraindo os convidados como mariposas.
Eu ando de um lado para o outro, como uma fera em sua jaula. O cheiro de graxa misturado ao perfume caro dos convidados me incomoda. Nenhum rosto chama atenção. Até que...
Vejo o garoto de mais cedo entrando, o mesmo que agarrei pela gola no início do dia. Está com um senhor de olhar cansado, provavelmente seu pai. O moleque me vê e automaticamente ajusta os óculos, o rosto ficando vermelho. Quase sinto o pavor escorrer de sua pele. Sorrio de canto — ele lembra.
Mas então... tudo ao meu redor silencia.
Meus olhos são puxados como ímãs para a entrada do salão. E lá estão eles. Primeiro vejo o homem: postura ereta, terno escuro, olhar severo. O mesmo de mais cedo. Ao seu lado, uma mulher elegante, que carrega em si a mesma frieza refinada de uma joia que nunca sai da caixa. E então...
Mariá.
Ela caminha um passo atrás da mulher, os ombros curvados, o olhar colado ao chão como se carregasse o mundo nas costas. Há algo de quebrado nela... e ainda assim, é como se cada rachadura brilhasse mais forte que qualquer outra presença aqui. Ela não tenta se destacar — e talvez por isso seja impossível ignorá-la.
— Olha só. Parece que é ele mesmo o tal prefeito — diz Dylan, surgindo ao meu lado, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, a expressão cautelosa de sempre.
Assinto, sem desviar o olhar dela.
— Vamos dar as boas-vindas ao nosso anfitrião e sua... encantadora família. — Minha voz sai baixa.
Dylan me olha de lado, o cenho franzido.
— Kael, Kael... eu te conheço. Nem vem com suas gracinhas. — A voz dele é firme. — Precisamos ser cautelosos. Observar primeiro. Descobrir como esse prefeito pensa, quais são seus segredos. E a menina... Mariá... ela claramente está sob algum tipo de pressão. Não é hora pra impulsos.
Mas eu já dou o primeiro passo.
— Relaxa, Dylan — digo por cima do ombro, com um sorriso malicioso. — Você pensa demais, irmão.
E sigo em direção a eles.
Cada passo é calculado, embora eu finja despreocupação. Sei que estou prestes a entrar em um território minado — mas é aqui nesta noite, que eu sei com todas as células do meu corpo: Mariá não é apenas uma ligação, uma marca do destino. Ela é um enigma... e eu pretendo decifrá-lo.
Mesmo que isso nos leve direto para o coração do perigo.
Meus passos ecoam no piso de cimento polido da oficina, agora transformada em um salão de recepção improvisado. Cada clique do meu coturno é como um aviso: estamos chegando. Dylan vem logo atrás, silencioso como uma sombra — mas sei que seus olhos estão analisando cada detalhe.
O prefeito conversa com um pequeno grupo de empresários locais. Sua postura é rígida, o sorriso ensaiado demais para ser sincero. A mulher ao seu lado mantém-se composta, observando tudo com o olhar de quem julga em silêncio. E Mariá... ela não parece exatamente presente. Parece presa. Presa dentro de si mesma.
Nos aproximamos, e quando ele finalmente nota nossa presença, sua expressão muda sutilmente. Seus olhos pousam em mim com algo entre desconfiança e reconhecimento.
— Senhor prefeito — digo, forçando uma cordialidade que quase me arranca a pele. Estendo a mão. — Kael. É um prazer recebê-lo na inauguração da nossa oficina.
Ele aperta minha mão com firmeza, o olhar cravado no meu como se quisesse decifrar um enigma.
— Emiliano Duarte. O prazer é meu — responde com uma voz grave, calculada. — Esta é minha esposa, Marta. E nossa filha, Mariá.
Dylan também estende a mão, a voz controlada, precisa:
— Dylan. Somos os irmãos Moraes. Viemos de longe, mas decidimos investir por aqui.
— Uma boa escolha — diz Emiliano, estreitando os olhos. — Esta cidade pode ser pequena, mas tem muito potencial... desde que se saiba onde está pisando.
A ameaça disfarçada é clara como o dia. Sorrio mais largo, com a calma de quem já viu esse tipo de jogo antes.
— Ah, nós sabemos exatamente onde pisar, senhor prefeito. E, com todo o respeito, sabemos reconhecer o que realmente vale a pena.
É então que meus olhos encontram os dela.
Ela ergue o olhar devagar, como se cada movimento fosse um esforço. E quando nossos olhos se tocam, algo pulsa — como uma corrente elétrica, viva, crua.
Então ela olha para Dylan. E sinto a mesma energia os atravessando. Mas logo seus olhos se abaixam de novo, como se uma força invisível a empurrasse para baixo.
— Bem, com licença... precisamos cumprimentar o pastor Paulo — diz Emiliano, encerrando a conversa.
Assentimos. Eles começam a se afastar. Mas eu não consigo evitar. A voz escapa, mesmo baixa, mesmo contida.
— Ei... Mariá...
Ela mal tem tempo de reagir. Sua mãe aperta sua mão com força e a puxa, quase como uma coleira invisível.
— Mas você é um jumento mesmo, não é, Kael? Que merda você pensa que está fazendo? Quer arrumar confusão logo de cara? — diz Dylan, me repreendendo com seu tom baixo e cheio de raiva controlada.
Sinto a irritação subir como fogo no peito. Me viro para ele, a voz baixa, mas cortante:
— Que merda você, Dylan. Está na cara que esse prefeito é um filho da puta perigoso. Sabe o que eu acho? Acho que essa tal conexão não aconteceu porra nenhuma com você. Tá calminho demais, irmão, pra quem encontrou a própria companheira.
Os olhos dele escurecem, e ele dá um passo à frente. A raiva transborda, crua e quente. Ele me encara como se quisesse me atravessar com o olhar.
— Cala essa maldita boca! Você acha que eu tô calmo? Acha que não percebo o que está acontecendo? Que não sinto essa ligação queimando dentro de mim? — Ele dá uma leve batida no próprio peito. — Eu sinto, Kael. A diferença é que eu sei me controlar, seu idiota. Não vou colocar tudo a perder só porque não consigo manter o pinto nas calças por cinco minutos.
Ficamos aqui, frente a frente, um instante que parece se esticar demais. O mundo ao redor continua, a música toca, as pessoas falam — mas para mim, para ele, tudo está suspenso. Porque no fundo, ambos sabemos...
Essa confusão está apenas começando.
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Atualizado até capítulo 43
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