Papo torto e sorrisos certos

Camila tava de short jeans rasgado, camiseta velha do Flamengo e um coque malfeito que nem tentava ser bonito. Mas mesmo assim, tinha uma aura que gritava: “eu sou o problema que você vai querer resolver”.

A rua principal do morro tava num calor infernal, daquele que derrete até pensamento ruim. E Davi, com a maleta de ferramentas na mão e a testa suando como quem tá no meio do Saara, tentou manter o foco. Só que foco era uma palavra que evaporava toda vez que ela passava perto.

— Vai mexer no poste ou tá esperando a luz divina cair do céu? — Camila perguntou, apoiada na grade da própria varanda, com um copo de suco na mão e um sorrisinho de canto.

Davi olhou pra cima, depois pra ela. Teve que rir.

— Se cair do céu, melhor ainda. Menos serviço pra mim.

— Hmm… desconfio que cê dá mais trabalho do que resolve — ela retrucou, cruzando os braços e encarando ele como se lesse pensamentos.

Ele se virou de volta pro poste, fingindo que tava conferindo os cabos. Mas por dentro, tava tentando entender por que o coração acelerava desse jeito por uma desconhecida com cara de quem manda prender e soltar com um olhar.

Camila desceu da varanda. Pé descalço, andar tranquilo, olhar atento. Se aproximou como quem não queria nada.

— Tu é novo aqui, né? Nunca te vi nesse pedaço.

— É... tô fazendo uns trabalhos aqui no morro. Técnico, manutenção de rede, essas coisas. — Ele falou sem enrolar muito, mas também sem se entregar demais.

Ela deu uma risada curta, debochada.

— Técnico? Só isso?

— Ué, o que mais seria?

— Vai saber… nesse morro ninguém é só o que parece. Uns dizem que vendem DVD, mas andam de Land Rover. Outros dizem que tão de passagem e somem com três da facção rival.

Davi deu um sorriso amarelo. Tava achando o papo leve, mas também sabia que aquilo ali era um teste. Camila jogava verde pra colher informação. E ele? Jogava humildade pra disfarçar a farda.

— Relaxa, moça. Eu só tô aqui pra ligar o Wi-Fi da galera.

Ela riu alto dessa vez. Gargalhada livre, sem vergonha de ser escandalosa.

— Eita, então tu é o salvador da internet! Faz milagre, é?

— Faço. Por uma taxa de boa vontade e um copo d’água — ele disse, encarando ela com uma ousadia que nem sabia que tinha.

— Copo d’água eu tenho. Boa vontade… depende da tua cara.

Camila se aproximou mais. Davi sentiu o cheiro de sabonete barato misturado com perfume doce. Aquela combinação real, humana, que grudava na memória.

— Já que cê é o técnico, vê se consegue consertar meu sinal. Tá uma porcaria — ela disse, entregando o celular na mão dele como quem entrega uma arma.

— Posso tentar. Mas tem que me levar até onde tá o roteador.

— Claro, vem comigo. Só não repara na bagunça. A casa tá do jeito que a vida me deixou.

Davi seguiu. A casa era simples, mas tinha cor, tinha cheiro de café e tinha fotos nas paredes. Foto da mãe, de uma criança pequena com ela no colo — devia ser sobrinho, ou talvez irmão — e uma imagem de São Jorge ao lado de uma vela derretida.

Ela apontou o roteador, e ele se ajoelhou pra conferir os cabos.

— Tá com sinal fraco porque tá escondido atrás da geladeira — ele explicou, meio rindo. — O Wi-Fi precisa respirar, sabia?

— Ah, então o segredo é deixar ele solto? Tipo homem?

— Depende. Tem homem que, se respirar demais, vira problema.

— E tem mulher que, se tu tentar prender, vira furacão.

Os dois riram. Era como se já se conhecessem há anos. Mas por dentro, os dois tavam armados até os dentes. Ele, com um passado que não podia contar. Ela, com um presente que era melhor esconder.

— Tá funcionando agora — ele disse, se levantando. — Vai lá, testa.

Camila pegou o celular, entrou no Instagram, deu um scroll rápido.

— Tá voando. Merece até café por esse milagre.

— Não recuso.

Ela foi até a cozinha e voltou com duas xícaras. Sentaram na varanda, como dois desconhecidos que já sabiam que o outro ia mudar a vida deles — só não sabiam como ainda.

— E aí, técnico, tem nome?

— Davi.

— Nome de santo. Será que combina?

— E você?

— Camila. Mas aqui todo mundo me chama de Mila.

Mentira. Ali todo mundo chamava de “Dona Mila”, “Patroa”, “Rainha”, “Arlequina do Morro”. Mas Davi não precisava saber disso ainda.

— Camila... bonito. — Ele encarou ela com mais coragem dessa vez.

— Tu já disse isso pra quantas, hein?

— Pra nenhuma que estivesse com a camisa do Flamengo e cara de que pode me derrubar com um olhar.

Ela gargalhou de novo.

— Tá se achando, hein?

— Tô só sendo sincero.

Camila levantou, bateu na própria coxa duas vezes, como quem dá sinal pro cachorro vir.

— Então vamo ver se tu aguenta essa sinceridade quando descobrir onde tá pisando.

— Eu não tenho medo fácil, Mila.

Ela olhou por cima do ombro, sorriso quase desafiador.

— Não tem medo... ainda.

Davi ficou parado ali, encarando a xícara vazia e o coração acelerado. Não sabia se tinha consertado um roteador ou se tinha acabado de entrar numa rede onde o sinal era fraco, mas o perigo... esse tava forte demais.

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