( Valentina )
Tem dia que a gente acorda e sente que tem coisa esquisita no ar. Nem precisa previsão do tempo. O galo canta torto, a chaleira não chia, e até o feijão parece cozinhar com tristeza. Pois foi bem assim que meu dia começou.
Chego na casa grande da fazenda Santiago com meu avental florido, o cabelo preso num coque meio troncho e o sorriso de sempre. Paula, a patroa, já me recebe com aquele jeitinho de anjo:
— “Bom dia, Tina! Aceita um café com leite? Fiz aquele biscoitinho que Júlia adora.”
— “Aceito sim, dona Paula. Mas só se a senhora não contar pro Geraldo que eu comi três... ou sete.”
A gente ri. Paula é dessas que trata a gente com respeito, sabe? Já salvou a pele da minha menina várias vezes, dando brinquedo, roupa, até colchonete quando a Júlia teve febre. Júlia vive grudada nela, chama até de “tia Paula” com aquele jeitinho sem-vergonha de puxar saco.
Agora, Otávio… o patrão… misericórdia. O homem tem cara de quem nunca soltou uma gargalhada. Parece que nasceu sério e foi ficando pior. Anda com a mão pra trás e só fala com frases cortadas:
— “Bom dia.”
— “Tá limpo isso?”
— “Mais café.”
— “Sai o Geraldo comigo hoje.”
Foi nessa última que meu zoinho arregalou.
— “Como é, seu Otávio?” — Pergunto.
— “Vou viajar. Negócios. Preciso do Geraldo comigo. Segurança. Confio nele. Ponto.”
Desse jeito. Ponto final em tudo, como se tivesse ditando telegrama. Nem me deu tempo de perguntar pra onde era, nem quanto tempo iam ficar.
Geraldo, coitado, ficou todo bobo com a confiança. Se arrumou com a camisa boa que só usa pra casamento e enterro (às vezes é o mesmo evento, depende da sogra). Me deu um beijo na testa, abraçou a Júlia apertado e disse:
— “É rapidinho, meu amor. Cuida das plantas e da menina. Quando eu voltar, trago notícia boa.”
Eu ri, mas meu coração ficou meio miúdo. Sabe quando a gente sente o cheiro da encrenca antes dela bater na porta? Pois é.
Passam-se dois dias… depois quatro… depois uma semana.
Nada.
Sem notícia. Sem ligação. Sem sinal de fumaça.
Ligo pro celular do Geraldo, e só escuto aquela bendita voz irritante da operadora dizendo que “o número encontra-se desligado ou fora de área”. Ah, se eu pego essa operadora, dou nela com o chinelo que tá aqui no meu pé desde 2007.
Fico nervosa. Ando de um lado pro outro com a pá da horta na mão, parecendo que vou cavar um túnel até a casa de Otávio. A Júlia, com os olhos assustados, pergunta:
— “Mamãe, o papai foi raptado pelos ET?”
— “Não, filha. E se foi, eles vão ter que devolver. Ele ronca demais pra viver em nave espacial.”
Naquele dia, depois de pensar, rezar, e comer meio bolo de fubá só pra não surtar, tomo uma decisão: vou procurar o Geraldo com as minhas próprias pernas.
Passo na casa da Paula. Ela me atende toda preocupada:
— “Tina, você tá pálida. O que houve?”
Conto tudo, chorando feito bezerro desmamado. Ela abre os braços, me abraça e diz:
— “Deixa a Júlia comigo. Eu cuido dela como se fosse minha.”
Fico emocionada. Júlia abraça a tia Paula e diz:
— “Mamãe, volta logo. E traz meu pai, viu? Ele prometeu me ensinar a laçar porco!”
Engulo o choro, dou um beijo na testa da minha menina, pego minha bolsinha surrada, amarro os cabelos e vou. No fundo, sinto um aperto estranho no peito. O tipo de aperto que nem chá de boldo resolve.
As galinhas me encaram de longe, como se soubessem. O cachorro late pro nada. E o céu… o céu fecha como se dissesse: “segura, Tina, que lá vem chumbo”.
E eu vou. Porque mulher do sertão não corre do problema. A gente vai com medo mesmo, mas vai.
Só não sabia que o que me esperava era muito mais do que eu imaginava…
Continua...
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Atualizado até capítulo 32
Comments
Celina Daltro
A Paula é mulher do Olavo e não está preocupada?? E Tina vai procurar aonde se nunca saiu da fazenda?
2025-05-20
2
Maria Isabel
Que história maravilhosa parabéns Autora já gostei deste o primeiro capítulo
2025-05-20
1
Jabass Silva
pois é ainda mais angustiada do jeito que está
2025-05-21
0