O Começo de um Novo Mundo.

O Começo de Um Mundo Novo

(Narrado por Duda)

Eu já tinha estudado de tudo na faculdade: ativo, passivo, lucro, prejuízo, DRE, balanço patrimonial. Mas nada me preparou pra viver o que eu tava vivendo ali no morro. A vida real não tem manual. E naquela manhã eu tava aprendendo com os verdadeiros professores: o povo da quebrada.

Clara e eu continuamos rodando. Ela me apresentava geral como se eu fosse da casa. Eu me sentia meio deslocada, é claro, branquela do Morumbi, com cara de quem nunca tomou enquadro da polícia, andando pelo beco onde cada rosto carregava uma história dura. Mas ninguém me tratou mal. Pelo contrário. O olhar era de curiosidade, não de julgamento.

— Tu tem um jeito diferente — disse a Jéssica, a que fazia marmita num fogão de duas bocas encostado na laje. — Mas dá pra ver no teu olho que cê é gente fina, ligeira.

Sorri sem graça.

— Tô tentando entender como tudo funciona.

— Aqui é sobrevivência, Duda. A gente não escolhe luxo. A gente escolhe viver.

Essa frase bateu forte. Eu tinha saído de casa por não aguentar minha madrasta mandando e desmandando, por me sentir um peso na minha própria casa. No Morumbi tinha piscina, empregada e café da manhã com suco detox. Mas não tinha afeto. Não tinha alguém perguntando se eu dormi bem. Aqui, com o calor do sol na pele e o som do funk vindo do beco, eu me sentia mais viva do que nunca.

Atravessamos uma viela apertada, com roupas penduradas em varais improvisados. Um grupo de crianças corria entre os chinelos e bicicletas quebradas. Um moleque passou por mim gritando “golaaaaaço!” enquanto chutava uma garrafa PET. Quase me acertou. Eu ri. Era caos, mas era vida.

Paramos num bequinho onde uns moleques jogavam dominó numa mesinha improvisada, equilibrada em dois tijolos. Um deles gritou:

— Ô Clarex! Chega aí!

Ela sorriu e puxou minha mão.

— Vem, bora sentar com eles. Só não se assusta, esses aí são boca suja.

— Ah, tô de boa — respondi, meio na defensiva. — Já ouvi coisa pior no meio dos engravatado.

O cara que tava de frente pra gente deu uma risada alta.

— Ih, a novinha é resenha! Gostei dela.

Me chamaram de “novinha”, “patricinha do bem”, até de “Bruna Surfistinha do Excel” — esse último foi o PH, rindo alto, do jeito debochado.

Mas eu levei tudo na esportiva. Não era zoeira maldosa. Era o jeito deles me testar. Tipo ritual de entrada. E quanto mais eu respondia com humor, mais eles me acolhiam.

— E aí, tu tá morando com a Clarex? — perguntou um outro, o que tava ganhando no dominó.

— Tô, por enquanto. Só até eu me ajeitar.

— Se tu já tomou café da Jéssica e sobreviveu ao dominó do PH, tá pronta pro morro — disse ele, rindo.

Aos poucos, fui pegando o ritmo. O morro tem seu próprio idioma. Aqui ninguém “vai embora”, eles “vazam”. Ninguém “conversa”, eles “trocam ideia”. E ninguém “trabalha”, todo mundo “faz o corre”.

— E o teu corre é o quê, Duda? — perguntou o Rato, o moleque nerd dos cabos e computadores, com óculos torto e um sorriso tímido.

— Tô no estágio numa empresa de auditoria de Contabilidade, planilhas, essas coisas.

Ele arregalou o olho.

— Cê manja de Excel?

— Bastante. Faço macro, formatação condicional, fórmula aninhada, Tabela Dinâmica...

O moleque quase caiu da cadeira.

— Cê é tipo uma maga do Excel!

Clara riu alto.

— Falei que ela era braba.

Naquele momento, foi como se algo clicasse. Pela primeira vez, percebi que aquele conhecimento que eu carregava — que tanta gente via como coisa chata, técnica, burocrática — podia virar ouro ali. Na quebrada, onde todo mundo faz conta na cabeça ou em papel de pão, eu podia ajudar. Sem dar uma de salvadora. Só somando.

Mais tarde, subimos de volta pra casa da Clara. O sol já começava a descer e o céu do morro ficava todo alaranjado. Era bonito demais. Um contraste surreal com o concreto cinza de onde eu vim. O vento batia no rosto e trazia cheiro de comida feita na hora

— E aí, princesa? Sobreviveu ao batismo? — Clara me perguntou, jogando o corpo no sofá rasgado, mas confortável.

— Sobrevivi. E curti.

Ela sorriu, os olhos brilhando.

— Sabia que cê ia se amarrar.

— Foi intenso. Mas bom. Diferente. Verdadeiro.

Ficamos ali jogadas um tempo, rindo das histórias do dia. Clara me contou como aprendeu a se virar desde pequena, como o El Toro sempre protegeu ela, mas sem passar a mão na cabeça. Como ela ralou pra entrar na faculdade e ainda rala pra manter as notas.

— A quebrada me ensinou a ser forte — ela disse. — Mas a faculdade me ensinou a pensar fora da caixa. Juntei os dois mundos.

— E eu tô tentando entender como faço isso agora. Porque... sei lá, senti algo aqui — falei, batendo de leve no peito.

Ela me olhou com carinho.

— Relaxa. Você vai entender com o tempo. O morro tem esse poder. Ele te tira da bolha. Mostra o que importa.

Fui dormir pensando nisso. Ainda não sabia o que viria pela frente. Mas sabia que alguma coisa tinha mudado em mim

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