Primeiros passos na Quebrada

Primeiros Passos na Quebrada

(Narrado por Duda)

Acordei com o ronco das motos cortando o silêncio, tipo despertador do morro. Era sábado, mas nessa vibe aqui não existia descanso, não. A casa da Duda já tava em movimento. Do lado de fora, dava pra ouvir um pancadão baixinho vindo de alguma caixa JBL, risada de moleque jogando botão na calçada e o grito de uma criança empinando pipa:

— Solta a rabiola, truta!

Abri os olhos devagar, tentando entender onde eu tava. O teto era diferente. As paredes tinham cor. O ventilador girava forte. A janela escancarada mostrava uma vista absurda da favela Santa Marta. E foi aí que caiu a ficha: eu não tava mais no meu quarto do Morumbi. Mas também não era qualquer canto, não. A Clara botava presença em tudo que tocava.

O quarto tinha o maior charme. Piso frio brilhando, cortina florida, ventilador que parecia turbina de avião. Na sala, sofá antigo mas confortável, uns quadros maneiros, tudo bem ajeitado. Não era ostentação, era carinho. Era estrutura com vida.

Saí do quarto devagar. A cozinha já tava on, cheirinho de cuscuz com queijo coalho dominando o ar. Tia Néia tava no fogão, toda sorridente.

— Cê Dormiu direitinho, minha filha? — perguntou, me entregando um copão de café preto.

— Dormi sim, tia. Brigada.

Ela riu.

— Hoje o bicho pega. Clara falou que vai te apresentar a quebrada. Te prepara.

Dei um gole no café quente, tentando acordar de vez. Minha cabeça ainda tava meio na minha antiga vida, também na empresa, nos relatórios, nas planilhas do estágio. Mas, aquele cheiro, aquela energia, me puxavam de volta minha nova realidade.

Clara chegou logo depois, toda elétrica.

— Bora, princesa! Hoje cê vai sentir o coração da favela batendo de perto.

— Mas segunda tem estágio, hein. Não posso sumir.

— Relaxa, nerd. Segunda cê volta a ser a estrela da firma. Hoje cê é minha guia de turismo reverso.

— Guia de quê?

— Missão de reconhecimento de território. Cê vai conhecer a quebrada de verdade. Sentir o chão.

Me troquei no estilo: short jeans, camiseta simples, tênis no pé. Clara veio com regata colada, shortinho e uma correntinha discreta. Saímos pelos fundos, direto pra laje. E ali, eu vi uma visão incrível.

A favela inteira se escancarava na minha frente, como se fosse um organismo vivo, onde cada barraco era um órgão, cada viela, uma veia. E todo mundo ali fazia parte dessa engrenagem.

Descemos as escadas estreitas. Os sons iam aumentando: bola batendo, chinelo arrastando, panela chiando. Um moleque passou correndo com uma sacola na mão, gritando “pega pega” enquanto dois outros vinham atrás.

— Aqui é assim, Duda. Todo mundo no corre — Clara falou, olhando em volta. — Se não corre, o sistema engole.

— E o sistema, aqui, é o quê?

Ela deu aquele sorrisinho misterioso.

— É o que a gente constrói pra sobreviver. Uns vendem trufa, outros dão aula, outros montam salão em casa. E tem quem… comande a quebrada.

Não precisei perguntar de quem ela falava. Só de pensar no nome, o ar mudava: El Toro. O irmão dela. O tal do chefe. Todo mundo respeitava e temia ao mesmo tempo.

— Hoje cê vai conhecer o bonde. Tem que se enturmar. Aqui ninguém anda sozinho.

— Tipo quem?

— Primeiro, vendinha do seu Zeca. Depois, o sebo da dona Vera — ela precisa de uma força com os números. E mais tarde… cê conhece o QG do PH.

— PH?

— Braço direito do meu irmão. Não se assusta com a cara de mal, ele é suave.

Chegamos na vendinha. Seu Zeca era um senhor de boné, sorriso largo e olhar sagaz.

— Olha só quem apareceu! E trouxe reforço?

— Essa é a Duda, nova no pedaço.

Ele me estendeu a mão.

— Seja bem-vinda, minha filha. Aqui, quem é firmeza, já é da casa.

Senti uma energia diferente. Um acolhimento que não tinha no prédio chique da empresa. Ali, o povo era direto.

Seguimos o rolê. Fomos no barraco da Jéssica, que fazia marmita fitness e entregava de bike; passamos pelo Tico, que consertava ventilador e micro-ondas só na gambiarra; conheci o Rato, pivete nerd que manjava de Excel como ninguém. Cada um no seu corre, todo mundo tentando vencer do jeito que dava.

— Tu tá sacando, né? — Clara comentou, enquanto a gente subia um escadão com cheiro de feijão no ar. — Aqui ninguém é vagabundo. O que falta é alguém que saiba botar ordem. Que ensine o povo a abrir MEI, a calcular imposto, a guardar grana e foi isso que me fez querer ir estudar no asfalto.

Já tava escurecendo quando chegamos na laje do PH. Ele tava largado numa cadeira de plástico, camisa do Flamengo, corrente brilhando e uma risada que dava eco. Quando viu a Clara, abriu os braços.

— Clarex! Chegou quebrando tudo! E essa boneca aí?

— Duda. Trata com respeito. É minha amiga da facul que vai ficar com nós.

Ele me deu aquele aperto de mão firme.

— Bem-vinda, princesa. Se for mente firme, cê já é família. Aqui, quem soma, fica.

Fiquei parada ali, absorvendo tudo. O som do rap batendo, a fumaça da churrasqueira subindo, o povo rindo na laje de cima. E eu, no meio disso tudo. Não como turista. Mas como parte. Como alguém que tava chegando, não só passando.

Ali, naquele chão quente de sol, eu senti: a quebrada podia ser caótica, mas tudo tinha lógica.

 

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