Terapia

Minha vida estava um completo caos. Meu corpo ainda carregava marcas dos hematomas, mas as feridas mais profundas não eram visíveis. O que Ethan fez comigo não ficou apenas na minha pele, estava gravado na minha mente, no meu coração, na minha alma.

O tratamento psicológico havia se tornado parte da minha rotina, mas por mais que tentasse seguir em frente, um medo constante me assombrava. Ethan estava preso. Por enquanto. Mas eu sabia que não ficaria assim para sempre. Com um bom advogado, ele voltaria para as ruas, e quando isso acontecesse... ele voltaria para me encontrar.

- Kiara?... Kiara.

A voz suave da psicóloga me trouxe de volta. Pisquei algumas vezes, tentando afastar os pensamentos que me envolviam como um pesadelo interminável.

- Sim? - murmurei, sentindo minha perna balançar inquieta.

Ela me observou por alguns segundos antes de perguntar:

- O que planeja fazer?

Respirei fundo. Minha garganta estava seca, mas eu não hesitei.

- Ele vai voltar. Mais cedo ou mais tarde, ele vai sair daquela prisão.

A psicóloga manteve a calma, como sempre fazia.

- Kiara, Ethan está preso. Ele não pode te machucar.

Soltei uma risada amarga, sem humor.

- Ele vai. - Minha voz saiu firme, determinada. Mas dessa vez, eu não vou deixar.

Seus olhos demonstravam preocupação quando ela inclinou levemente a cabeça.

- O que pretende fazer?

Eu já sabia a resposta. Já havia pensado nisso inúmeras vezes. Era a única opção.

- Sumir. Ninguém nunca mais ouviria falar de Kiara.

A psicóloga respirou fundo, avaliando minha expressão. Então, com um tom cuidadoso, disse:

- Se essa é realmente a sua decisão, existe um recurso policial que pode te ajudar. Ele permite que vítimas sob risco recebam uma nova identidade. Você poderá recomeçar do zero, como quiser.

Meus dedos apertaram o tecido da calça. Um novo nome. Uma nova vida.

- Mas para isso, eu preciso mudar de faculdade... - minha voz saiu hesitante. Estudar sempre foi meu sonho, meu único plano para um futuro melhor. Eu perderia tudo?

A psicóloga sorriu, um sorriso encorajador.

- Isso não será um problema. Suas notas são excelentes, Kiara. E com o dinheiro da indenização, você poderá pagar uma boa faculdade.

Olhei para minhas mãos trêmulas. Uma parte de mim ainda tinha medo, mas outra... outra começava a sentir algo novo.

Esperança.

Eu teria que deixar tudo para trás. Meu passado. Meu nome. Minha história.

Mas era um preço que eu estava disposta a pagar. Porque dessa vez, ninguém mais me encontraria.

[...]

O zíper da mala deslizou com um som seco enquanto eu a abria sobre a cama. O quarto estava silencioso, mas na minha cabeça, as vozes do passado ainda ecoavam.

Minhas mãos tremiam levemente enquanto dobrava uma blusa e a colocava dentro da mala. Meu corpo ainda doía. Cada movimento lembrava os hematomas espalhados pelos meus braços, minhas costelas, meu rosto. Marcas que Ethan deixou em mim.

Passei os dedos sobre o roxo no meu pulso, onde ele me segurou com força na última vez. A dor já não era tão intensa, mas as lembranças eram.

Eu amei Ethan. Ou pelo menos, achei que amava.

Nos primeiros meses, ele era perfeito. Atencioso, carinhoso, dizia que eu era tudo para ele. Fazia planos, falava sobre o futuro, sobre como eu nunca estaria sozinha.

E eu me agarrei a isso.

Meus pais haviam morrido quando eu ainda era nova. Eu não tinha irmãos, não tinha parentes próximos. Passei a vida me sentindo sozinha, sem ninguém para me proteger. Então, quando Ethan apareceu, eu quis acreditar que ele era minha segurança.

Mas com o tempo, as palavras doces viraram gritos. O carinho virou controle. E o amor... o amor virou medo.

Coloquei um jeans na mala e fechei os olhos, respirando fundo. Lembrei da primeira vez que ele me empurrou. Foi um acidente, ele disse. Eu acreditei.

Depois veio o tapa. O puxão de cabelo. As desculpas. Os presentes depois das brigas. A culpa era minha, ele dizia. Eu o fazia ficar bravo. Eu o provocava.

E eu... eu pedi desculpas.

Abri a gaveta e peguei algumas fotos. Fotos antigas. Fotos onde eu sorria sem medo. Eu não era mais aquela garota.

Mas eu poderia ser.

- Não dessa vez. - murmurei para mim mesma, dobrando os papéis e colocando dentro da bolsa.

A pior parte foi quando descobri que estava grávida. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti feliz de verdade. Eu teria alguém. Não estaria mais sozinha.

Mas Ethan não pensou da mesma forma. Ele me bateu. Ele me espancou.

E eu perdi meu bebê.

Minha garganta apertou, e pisquei rapidamente para afastar as lágrimas. Não. Eu não choraria mais por ele.

Peguei os últimos pertences e fechei a mala. O peso dela parecia pequeno comparado ao peso que eu carregava dentro de mim.

Abaixei-me e puxei o zíper até o final, ouvindo o som do tecido se fechando. Assim como eu estava fechando essa parte da minha vida.

Ethan ainda estava preso, mas um dia sairia.

E quando esse dia chegasse... ele nunca mais me encontraria.

Eu estava indo embora. Para sempre.

Os dias seguintes foram preenchidos com a burocracia do meu desaparecimento. Documentos, assinaturas, reuniões com policiais. Mas entre tudo isso, eu continuava indo à terapia.

Era um compromisso silencioso que eu fazia comigo mesma.

Na sala aconchegante da terapeuta, me sentava sempre na mesma poltrona, cruzava os braços sobre o peito e tentava ignorar o aperto no estômago.

- Como está se sentindo hoje, Kiara? - a voz calma dela me alcançou.

Pensei por um instante. Como eu estava me sentindo? Exausta? Perdida? Talvez um pouco menos assustada.

- Ainda meio confusa. Parece que minha vida inteira está se desfazendo.

Ela me observou com paciência, esperando que eu continuasse.

Suspirei, deslizando as mãos sobre os joelhos.

- Ethan nem sempre foi assim, sabe? - minha voz saiu mais baixa do que eu esperava. - No começo... ele era incrível.

Fechei os olhos e me permiti voltar no tempo.

Lembro da primeira vez que o vi. Ele era forte, bonito e tinha aquele sorriso fácil, do tipo que fazia qualquer um se sentir à vontade perto dele. E o humor dele... sempre leve, sempre brincalhão. Eu me apaixonei tão rápido.

Ele me fazia rir, me fazia sentir especial. Lembro das mensagens de bom dia, dos beijos roubados enquanto caminhávamos pela rua, das noites em que assistíamos filmes e ele me puxava para perto, me envolvendo nos braços como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo.

- Morar com ele era bom, no começo. - continuei, sentindo um nó na garganta. - Eu nunca me senti tão segura antes. Ele dizia que me protegeria de tudo, que eu era o amor da vida dele.

A terapeuta assentiu levemente, me incentivando a continuar.

- Eu acreditei em cada palavra.

Abri os olhos e encarei as próprias mãos. Meus dedos apertavam o tecido da calça sem que eu percebesse.

- Era tudo perfeito, até que... começou a mudar.

A primeira vez que ele gritou comigo, eu gelei. Mas ele se desculpou depois, me abraçou, beijou meus cabelos e disse que estava estressado.

Depois veio a primeira vez que ele me segurou com força demais. Os dedos dele ficaram marcados no meu braço por dias, mas ele me trouxe flores, chorou, disse que nunca mais faria aquilo.

E então, um dia, ele bateu em mim.

A terapeuta manteve seu olhar sereno em mim, mas eu vi a sombra de tristeza nos olhos dela.

Engoli em seco.

- Eu sabia que estava presa em algo errado. Mas cada vez que ele dizia que me amava... eu queria acreditar.

Pisquei rapidamente, sentindo a dor se misturar com a saudade do que um dia foi bom.

Porque, no fundo, não era só o medo que eu sentia.

Era o luto.

O luto pelo homem que eu achei que ele fosse.

O silêncio se estendeu entre mim e a terapeuta. Minha respiração estava pesada, como se cada palavra dita tivesse drenado um pouco da minha força.

Ela não me pressionou, apenas me deu espaço para processar tudo o que eu acabara de dizer.

- É difícil aceitar que ele nunca foi quem eu pensei que fosse. - minha voz saiu quase como um sussurro.

Ela inclinou levemente a cabeça, me observando com empatia.

- Talvez ele tenha sido essa pessoa, no começo. Mas o amor de verdade não se transforma em medo, Kiara. Amor não machuca.

Olhei para minhas mãos, tentando absorver aquilo.

- Eu ainda me pergunto... se eu tivesse feito algo diferente, será que ele não teria mudado? Será que ele ainda me amaria do jeito que eu o amei?

- Você deve aprender a se amar, antes mesmo de amar outra pessoa, aprendendo isso, você vai aprender a não receber o mínimo. Você se contenta com migalhas de amor, Kiara, e não é assim que o amor funciona.

- E como é?

- Kiara, quando você aprender a se amar, você vai descobrir.

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