A madrugada se estendia como um véu de luto pelas colinas da Sicília. A chuva cessara, mas o céu ainda carregava o peso das nuvens, como se até os deuses observassem em silêncio o que havia acontecido naquela noite.
Dentro do carro, o silêncio entre Alessio e Elena era mais denso que o nevoeiro lá fora.
Ela mantinha os braços cruzados, apertando o paletó de lã que ele lhe dera. O perfume masculino no tecido — amadeirado, discreto — a fazia lembrar de onde estava. Na mira do inimigo. Mas ainda viva. Por algum motivo que ela não compreendia.
— Você não respondeu — murmurou, quebrando o silêncio. — Por que me salvou?
Alessio não desviou os olhos da estrada.
— Talvez porque você não merecia morrer naquela noite.
— E quem decide isso? — Ela ergueu a voz, quase se irritando. — Você? Um assassino de aluguel da sua própria família?
Ele apertou o volante, mas manteve a calma.
— Eu não sou um assassino de aluguel. Eu sou um Mancini.
— Ah, claro. Isso muda tudo — ela rebateu, amarga.
Ele suspirou, e por um instante seus olhos pareceram mais cansados do que frios.
— Você fala como se o seu sobrenome fosse limpo. Elena, a nossa guerra começou antes de você nascer.
— Eu nunca escolhi essa guerra.
— Nem eu.
O silêncio voltou, mas desta vez era menos hostil. Quase... resignado. Como se os dois entendessem, no fundo, que estavam presos no mesmo jogo, em lados diferentes do tabuleiro.
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O carro parou diante de um portão enferrujado. Atrás dele, um casarão de pedras escuras se erguia em meio às oliveiras antigas, como uma fortaleza esquecida pelo tempo.
Alessio digitou um código. Os portões se abriram lentamente com um rangido metálico.
— Onde estamos? — Elena perguntou, olhando ao redor.
— Propriedade da minha família. Ninguém sabe que ainda usamos esse lugar. Aqui, você estará fora do radar… por enquanto.
Ela hesitou antes de sair do carro. Um vento frio soprou pelas árvores, e ela se encolheu involuntariamente. Ele caminhou à frente, mas notou que ela mancava.
— Você está ferida?
— O joelho. Mas não é nada.
Ele não insistiu, apenas abriu a porta da casa e acendeu as luzes. O interior era antigo, mas acolhedor — móveis de madeira escura, tapeçarias empoeiradas, cheiro de lareira adormecida.
— Não é um hotel cinco estrelas, mas é melhor do que um porão — ele disse.
— Eu esperava algo mais... sinistro. Algemas. Correntes.
Alessio arqueou uma sobrancelha.
— Você acha que eu sou o quê, exatamente?
Ela o olhou de cima a baixo.
— Um lobo em pele de lobo.
Ele sorriu pela primeira vez naquela noite. Um sorriso breve, irônico. Mas algo em seu rosto suavizou.
— Vou preparar algo para você comer. O quarto é no andar de cima, terceira porta à esquerda. Tem um banheiro lá também. Pode trancar a porta se quiser.
— Você vai tentar me matar enquanto durmo?
— Se quisesse te matar, já teria feito isso naquela rua.
Ela assentiu, sem mais palavras, e subiu com dificuldade as escadas. Quando entrou no quarto, encostou-se à porta e deixou o corpo escorregar até o chão.
Só ali, sozinha, ela permitiu que as lágrimas caíssem.
Lá fora, Alessio acendeu a lareira e colocou água para ferver. Mesmo tentando afastar o pensamento, a imagem dos olhos dela no chão do galpão voltava à sua mente. Aquela mistura de fúria e vulnerabilidade.
Ele não sabia o que sentia. Só sabia que, ao poupar Elena Ricci, não tinha apenas quebrado as regras da máfia. Tinha iniciado algo que poderia destruir os dois.
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Horas depois, já de madrugada, Elena desceu em silêncio, os pés descalços. A luz da lareira ainda queimava, e Alessio estava sentado no sofá, uma taça de vinho na mão.
Ela hesitou à porta.
— Não consigo dormir — disse, baixo.
Ele olhou para ela, depois apontou para a poltrona ao lado.
— Vinho?
— Só se tiver veneno.
— Ainda não decidi se quero te matar... ou te manter viva pra sempre.
Ela sorriu pela primeira vez. Pequeno, sarcástico.
— A indecisão é perigosa, Sr. Mancini.
— Também é o que faz a gente ser humano, Srta. Ricci.
Eles brindaram em silêncio, olhos nos olhos. Por um momento, o mundo lá fora parecia distante. Os tiros, as ordens, os sobrenomes, as cicatrizes. Nada daquilo importava ali, naquela sala aquecida pelo fogo e pela tensão.
Mas ambos sabiam: o amanhecer traria consequências.
E aquela aliança silenciosa — nascida da hesitação de uma bala — podia ser o começo de algo ainda mais mortal que a guerra entre famílias.
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Atualizado até capítulo 41
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