cocô de cachorro

Domingo de manhã, e eu finalmente tinha um dia só pra mim. Ou quase. Desde que comecei a dar aula naquela escola de elite — onde até a merenda era mais cara que meu almoço da semana — minha rotina ficou de cabeça pra baixo. Os dias passaram rápido desde minha estreia desastrada como professora da primeira série, e o milagre maior aconteceu: eu estava me dando bem com a turma.

Até a diretora, Socorro — aquela mulher de coque apertado e olhos que pareciam farejar caos a quilômetros — me elogiou. Disse que nunca viu alguém colocar ordem naquela sala. Eu, meio doida, mas com um certo dom natural pra lidar com crianças, dei conta do recado. Em uma semana, os alunos já estavam me chamando de “tia Júlia” com sorrisos verdadeiros. E a Bia… ah, a Bia era um amorzinho. Tão esperta, carinhosa, daquelas crianças que a gente se apaixona no primeiro olhar. Ela sempre vinha com desenhos e bilhetinhos doces. Uma verdadeira luz.

Mas hoje era domingo. Acordei com a casa silenciosa. Joyce já tinha saído — essa mulher não para, mesmo de folga. Gosta de trabalhar, e o Leonardo ainda é o chefe dela. Os gêmeos estavam no quarto, provavelmente armando alguma. Fui até a cozinha e encontrei minha avó sentada, tomando café.

— Ué, a senhora tá mais quieta que o normal hoje, vó — comentei, puxando uma cadeira.

— Tô cansada, menina. Esses dois dão trabalho. E ontem eu fui dormir tarde vendo minha novela turca. O Mustafá me estressa.

— A senhora se empolga mais com esse Mustafá do que com a própria vida — ri, mas notei que ela tava mais abatida.

Resolvi dar um descanso pra ela e sugeri:

— Vou levar os meninos lá no parquinho. Tá sombra agora de manhã, bom pra eles correrem e gastarem energia.

Meia hora depois, lá estava eu, sentada num banco de cimento, celular na mão, enquanto os gêmeos se penduravam no escorregador como dois macaquinhos. O cheiro de grama molhada misturado com o perfume de dama-da-noite que vinha das jardineiras me deixava quase relaxada.

Quase.

— Professora Júlia!

Levantei os olhos e vi a Bia vindo na minha direção, sorridente, segurando uma florzinha caída de uma árvore.

— Bia! Que surpresa! — me levantei. — Você mora aqui?

— Sim! No oitavo andar. No 805! E você?

— No 804.

— Mentira! A gente é vizinha!

Sorri, surpresa. O universo tinha dessas.

— Que coincidência boa. E você já fez amizade com esses dois? — apontei pros gêmeos.

— A gente tava brincando de pique-esconde! Eles correm rápido!

— Correm sim. E só param quando dormem — suspirei, pegando a flor que ela me oferecia. — Obrigada, Bia. Você é um docinho mesmo.

Ficamos ali mais um pouco, até que o sol começou a apertar. Decidi subir com as crianças. E foi aí que minha desgraça aconteceu.

Pisei.

No cocô.

E não foi qualquer cocô.

Foi uma bomba fedorenta de um cachorro abençoado que provavelmente se alimentava de carniça.

— Ah, não! — gritei, olhando pro meu pé. — Não é possível! EU EXPLODI UM COCÔ!

— Hahahaha! — os gêmeos se acabavam de rir, apontando pra mim como se eu fosse um meme ambulante.

— Ai, que nojo! E agora, caralh… — parei no meio da palavra, percebendo tarde demais que tinha três crianças ao meu redor.

— Papai! — Bia gritou, olhando pra entrada do prédio.

E foi nesse exato momento que ele apareceu.

Alto. Ombros largos. Cabelo escuro bagunçado no estilo “acordei gostoso”. Camiseta justa, calça jeans e uma garrafa de água na mão. Ele olhou pra cena: eu parada com o pé no ar, rosto vermelho, gêmeos gargalhando, e a filha dele segurando uma florzinha e sorrindo.

— Essa é a minha professora — Bia anunciou com orgulho.

Ele ergueu uma sobrancelha. Me analisou de cima a baixo. E, meu Deus… nunca senti um arrepio tão forte só por ser observada.

Ele se aproximou sem dizer uma palavra, pegou meu braço com firmeza — sem grosseria, mas com aquela segurança que faz a gente derreter por dentro — e me levou até um cantinho do jardim.

— Que que você tá fazendo?! — protestei, ainda meio em choque.

Ele se agachou, abriu a garrafinha e começou a lavar meu pé.

Eu. Com. Cocô. No. Pé.

E ele. Lindo. Lavando.

O cheiro ruim se misturava com o cheiro dele. Um perfume amadeirado com fundo cítrico, de tirar o fôlego. Senti meu rosto esquentar. E não era só de vergonha.

Depois que terminou, ele se levantou, me encarou com os olhos mais intensos que eu já vi na vida, e soltou, seco:

— Tô vendo que você é pior que as crianças. Pelo menos é formada?

— Eu… sim! — gaguejei, ainda em transe.

— Sou o pai da Bia. Vou ficar de olho.

Virou as costas e foi embora.

Me deixou ali, plantada, com o coração disparado, o pé molhado, e a dignidade despencando do oitavo andar.

E eu só consegui pensar:

“Quem é esse homem, meu Deus do céu?”

E por que diabos ele tinha que ser tão gostoso?

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