Acordei com uma almofada na cara. Não era uma metáfora — era literalmente uma almofada. E uma risada infantil vindo logo depois.
— Levanta, dorminhoca! — gritou Lucas, pulando na cama como um cabrito hiperativo.— Te pego, moleque! — rosnei, ainda com um olho fechado e a boca seca.
apareceu do outro lado da cama com um travesseiro em riste, pronta pra mais um ataque. Estavam formando uma emboscada. Eu tava num campo de guerra.
— Gente, pelo amor de Deus… são o quê? Sete da manhã? — resmunguei, tentando puxar o cobertor.
— Já são oito, tia Júlia. — disse Lívia, com aquele tom de quem sabe que tá incomodando e adora.
Desisti. Me levantei parecendo uma zumbi desidratada e fui direto pra cozinha. O cheiro de café me guiou como um farol da salvação.
Joyce já tava lá, de avental, pão na torradeira e cara de quem já tinha vivido três turnos antes das nove.
— Eles acordaram pulando hoje, hein? — falei, pegando a caneca mais limpa da prateleira.
— Todo dia é isso. — ela respondeu. — Você vai se acostumar.
— Acostumar, não. Me adaptar pra sobreviver.
— Que bom que veio. — disse a vó, entrando na cozinha com um cigarro apagado no canto da boca. — Agora temos uma Supernanny oficial.
— Eu devia receber adicional de insalubridade por morar aqui. — retruquei, me servindo do café.
— Eu acho que você tá é com inveja. — Joyce sorriu, mexendo o achocolatado da Lívia. — Vai dizer que não sente falta de uma casa cheia?
— Sinto falta do silêncio. Isso eu sinto.
Leonardo entrou logo depois, camisa meio abotoada e cabelo ainda molhado. Parecia um CEO saído direto de uma sitcom.
— Na próxima leva de filhos, eles virão com a minha personalidade de CEO. — disse, se servindo de café como se estivesse num comercial.
— Só se for por cima do meu cadáver! — gritou Joyce da pia. — Depois desses dois, nem pensar. Fecha a fábrica, amarra os canos!
— Vocês terminam todo dia. — comentei, rindo.
— E voltam na mesma noite. — completou a vó, tampando os ouvidos. — Mas não quero ouvir essas baixarias! Que nojo, credo.
— Vó, o que é “baixaria”? — perguntou Lucas, encostado na porta.
— É o que sua mãe e seu pai vivem fazendo com os olhos um pro outro. — retruquei, tampando os ouvidos dele. — Finge que não ouviu.
— Eu não me admiro que a primeira palavra deles não tenha sido um palavrão. — falei.
— A primeira da Lívia foi “chocolate”, a do Lucas foi “tá bom”, mas com tom de deboche. — Joyce riu.
Lívia surgiu atrás do irmão, com os cabelos bagunçados e a camiseta do Hulk arrastando pelo joelho.
— Tia Júlia, você vai trabalhar com a gente agora?
— Com vocês, não. Vou ser professora. E vocês vão se comportar, porque agora eu sei tudo que vocês fazem.
— Mentira. — Lucas cruzou os braços. — Eu escondi um pirulito atrás da televisão ontem.
— Tá vendo? — falei, olhando pra mãe dele. — Já tô tirando confissão sem nem tentar.
Sentei no sofá e puxei a conversa com Leonardo, mais tranquila.
— E tua mãe, como tá?
Ele ficou sério por um segundo. O olhar foi pro chão.
— Tá bem agora. Depois de tudo o que aquele desgraçado fez… — ele pausou. — Ela só quer saber de viajar, curtir a vida. Vive indo pra praia, cachoeira, retiro de ioga. Já me mandou três fotos essa semana com um filtro de flores na cabeça.
Joyce olhou por cima do ombro.
— Depois de ter vivido com aquele canalha, ela merece o mundo. O que ela passou com teu pai foi criminoso.
— Literalmente. — Leonardo assentiu. — Foi preso. Cárcere privado, tentativa de homicídio, agressão. Se não fosse a Joyce meter a polícia na casa dele, ninguém ia ter feito nada.
— Eu tava com sangue nos olhos aquele dia. — Joyce falou, sem remorso.
— Eu lembro. — disse. — E fico grato até hoje.
A vó só assentiu em silêncio, mas deu um meio sorriso. Como quem sabia que, apesar de tudo, a gente tava inteiro.
— Então… — me virei pra Leonardo. — Como é que vai ser segunda?
— Eu te deixo na escola antes de ir pra empresa. Vai falar com a Socorro, a diretora. A vaga é pra professora do meio período. É fácil, os alunos adoram uma professora nova.
— Eles adoram testar professora nova, isso sim.
— Já começa ameaçando. — Joyce comentou, rindo.
— Vai ver, nasci pra isso. — disse, olhando pela janela da sala. Lá fora, o sol batia na grama, e os brinquedos estavam espalhados pelo quintal. Era uma bagunça viva. Barulhenta. Caótica. Mas com cheiro de lar.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu senti que era exatamente onde eu devia estar.
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Atualizado até capítulo 38
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