O silêncio após a batalha era pesado como chumbo. O chão ainda exalava a fumaça quente das energias dispersas, e o cheiro de terra queimada se misturava ao suor e sangue. Zéper olhava ao redor, atento, os olhos ainda vibrando com a adrenalina que não se dissipava. Rúbia tossia ao seu lado, limpando um corte no braço, enquanto Malu se mantinha em pé como uma estátua, olhos fixos no lugar onde o eco havia se desfeito.
— Isso foi só um, né? — Zéper quebrou o silêncio, a voz rouca. — Um só, e já foi esse caos todo.
— Era um arauto — respondeu Malu, como se mastigasse cada palavra. — Um prenúncio do que está vindo.
Rúbia franziu o cenho. — E como você sabe disso?
Malu hesitou. Então encarou os dois.
— Eu escuto... coisas. Desde pequena. Como se a sombra do mundo falasse comigo. Hoje, ela gritou. E me mostrou o rosto daquele que comanda os ecos. Ou pelo menos de quem manda nos que vêm primeiro.
Zéper a olhou com atenção. Estava começando a perceber que sua irmã não era só introspectiva. Ela era um poço fundo e silencioso, cheio de segredos. Como uma mariposa que dança ao redor da morte.
— E esse rosto... — ele começou, mas parou ao ouvir passos apressados vindo pela trilha.
Três pessoas apareceram — dois homens e uma mulher, todos vestidos de preto, com detalhes dourados nos ombros. Um símbolo: uma mão aberta com o polegar oculto. Malu imediatamente recuou.
— Quem são? — Zéper perguntou, já erguendo os punhos, mesmo cansado.
— Calma — disse Rúbia, ofegante. — São da Mão Velada. Eles ajudam... quando não estão vigiando.
— Vigiando? — Zéper murmurou, já menos hostil.
O homem mais velho entre eles se adiantou. Tinha o rosto fino, olhos cansados e um colar feito de madeira e osso.
— Rúbia Silva, Malu Dias... e você deve ser Zéper. Chegamos tarde, mas vimos o rastro. Foi um eco de nível três?
— E um rastro de sangue — Zéper respondeu, seco.
— Isso significa que os véus estão rompendo mais rápido do que previam — disse a mulher do grupo, anotando algo num pequeno bloco de papel antigo.
Malu se aproximou.
— Não é só rompimento. Há algo do outro lado que está empurrando com força. Com raiva. Isso não é só desequilíbrio.
Os membros da Mão Velada se entreolharam.
— Alguém precisa conversar com vocês. Um dos Antigos. Ele já sabia que vocês estavam juntos. Pediu que os levássemos.
Zéper franziu o cenho. — Antigos? Isso está começando a parecer jogo de RPG.
Rúbia sorriu de leve. — Bem-vindo ao mundo real.
O caminho até o esconderijo da Mão Velada parecia mais um labirinto natural. Florestas fechadas, pedras marcadas com símbolos, córregos que cruzavam trilhas em espiral. Durante a travessia, Zéper tentou prestar atenção nas pegadas, mas não havia nada. Era como se o chão apagasse os rastros.
Ao chegarem, entraram por uma abertura quase invisível, disfarçada entre raízes. A caverna parecia viva — pulsava com calor e sons suaves. No centro, um homem sentado em posição de lótus, com longos cabelos brancos e pele escura, abria os olhos lentamente.
— Vocês vieram. Finalmente. Eu sou Moarã.
Malu imediatamente se ajoelhou.
— Eu te vi nos meus sonhos. Três vezes.
Moarã a olhou com ternura. — Porque sua alma está acordada, filha da sombra. E você, filho do ferrão... também sente a pulsação, não sente?
Zéper hesitou. — Sinto. Mas não sei o que é.
— Seu corpo sabe. Seus instintos, mais ainda. A Vespa está em você. Não como animal, mas como essência. Uma das caçadoras mais antigas, nascida para combater e proteger.
Zéper sentiu um frio na espinha.
— E Malu? — ele perguntou.
Moarã olhou para ela com respeito. — Ela carrega a bruxa. A mariposa que dança entre os vivos e os mortos. Que escuta os véus, e os atravessa. Vocês são opostos complementares. Foram separados para sobreviver. Agora estão juntos para lutar.
Rúbia, que se mantinha mais afastada, finalmente se manifestou.
— E eu? Qual é o meu papel nisso tudo?
Moarã sorriu. — Você é o elo. Não tem marca animal, mas tem luz. E às vezes, a luz é a única coisa que impede que o poço engula todos.
O silêncio tomou conta do lugar.
— O que está vindo? — perguntou Malu.
Moarã se levantou com dificuldade, como se cada osso estivesse amarrado ao tempo.
— O primeiro sinal já chegou. O eco era uma isca. Um chamado. Eles queriam medir vocês. E agora sabem: vocês estão vivos... e perigosos.
Zéper rangeu os dentes.
— Que venham. Eu estou pronto.
— Não está — disse Moarã, sem dureza. — Mas estará. Ainda precisam treinar. Aprender a usar o que carregam. A Vespa e a Bruxa. O Ferrão e a Névoa.
Malu ergueu os olhos. — Onde começamos?
Moarã sorriu. — Onde tudo começa: com o passado.
Ele apontou para uma parede onde símbolos antigos começaram a brilhar. Figuras que contavam histórias de guerra espiritual, de caçadores e monstros, de traições e pactos antigos. Em meio aos desenhos, dois símbolos chamavam atenção: uma vespa dourada e uma mariposa preta.
— Vocês são descendentes diretos dos Guardiões das Sombras. Aqueles que impediram que o mundo caísse em trevas, muitos ciclos atrás. Suas famílias foram traídas. Seus pais foram mortos por um dos nossos que cedeu ao medo.
Malu fechou os punhos. Zéper sentiu um calor estranho subindo pelo peito. Raiva, mas também propósito.
— Quero saber quem foi — disse ele, sério.
— Vocês saberão. No tempo certo. Por ora, descansem. Amanhã, começa o verdadeiro treinamento.
Zéper olhou para Malu e depois para Rúbia. Pela primeira vez, sentiu que estava no caminho certo. Que havia algo maior que vingança. Que talvez, só talvez, existisse um legado digno de ser protegido.
E no fundo, uma voz — talvez dele mesmo, talvez da Vespa — sussurrou:
"Caçar é proteger. Proteger é sobreviver. E sobreviver é lembrar."
Naquele santuário oculto, sob a terra e entre véus, começava a verdadeira jornada dos irmãos caçadores.
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Atualizado até capítulo 20
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