Reencontrou e sinais

A manhã na cidade de Linus começava abafada, como se o ar tivesse engolido um segredo pesado demais para ser contado. O colégio Dom Marcos, velho e de arquitetura europeia, mantinha suas paredes manchadas pelo tempo, mas em seus corredores ecoavam ecos do passado que insistiam em não morrer.

Zéper andava lado a lado com Rúbia, seus passos ecoando nas tábuas de madeira do corredor. Não falavam nada. Desde o sonho da noite anterior, algo o inquietava, e ele sabia que a sensação não ia passar tão cedo. Era como se o mundo estivesse prestes a lembrar quem ele era — antes mesmo que ele soubesse disso.

Na sala da diretoria, Solange, a diretora do colégio, os observava com atenção demais. Tinha os olhos de alguém que já viu demais e aprendeu a fingir que não viu nada.

— Então... Zéper e Rúbia, certo? — ela disse, olhando por cima dos óculos.

Rúbia respondeu com um simples “sim”. Zéper apenas assentiu.

— Bom, suas matrículas foram aprovadas e já estão em turmas definidas. Coincidência ou não, vocês dois estão na mesma sala.

"Coincidência", pensou Zéper. O universo não trabalhava com isso.

Acompanhados pela diretora, seguiram até a sala 203, no segundo andar. Enquanto subiam as escadas, Zéper sentia uma pressão estranha na nuca. Era a mesma de sempre — a que aparecia em sonhos e pesadelos — mas agora vinha acordado. Ele coçou a marca no pescoço, aquele desenho que nunca desaparecia, que parecia pulsar às vezes.

— Está tudo bem? — perguntou Rúbia, notando o desconforto.

— Só uma sensação estranha... deve ser o calor. — mentiu.

Ao entrarem na sala, os olhares se viraram todos para os dois. A professora, uma mulher de voz doce e postura firme, pediu silêncio.

— Alunos novos. Apresentem-se, por favor.

— Zéper. — disse ele, sem firulas.

— Rúbia. — respondeu ela, entediada.

Zéper procurou onde sentar e seus olhos foram direto para ela. Mila.

Ela estava sentada na penúltima fileira, próxima da janela. Tinha um olhar calmo, mas que escondia algo intenso. Seus olhos âmbar o encararam como se já soubessem quem ele era.

E naquele segundo, ele também soube.

Ela era a garota do sonho. Aquela do lenço. Aquela que precisava ser encontrada.

Sentou-se duas carteiras atrás dela. Durante a aula, nada mais fez sentido. Os professores falavam, os colegas cochichavam, mas tudo virou ruído de fundo.

Até que um bilhete chegou até sua mesa.

“Você também ouve a voz?”

Zéper congelou por um momento. Olhou ao redor, depois para Mila. Ela estava virada para frente, imóvel, mas ele sabia que fora dela.

Ele pegou a caneta e respondeu:

“Desde sempre.”

O bilhete foi passado de volta. Ela não respondeu mais nada, mas seus ombros ficaram tensos. O resto da aula passou como um borrão.

No intervalo, Zéper foi até o bebedouro, tentando acalmar o turbilhão na mente. Sentiu alguém se aproximando. Era ela.

— Seu nome é mesmo Zéper? — perguntou, com a voz calma.

— É o único que eu conheço. — respondeu ele, tentando sorrir.

— Você tem... marcas? — ela perguntou, olhando discretamente para o pescoço dele.

Ele hesitou, mas assentiu. Abaixou o colarinho, mostrando parte da marca em forma de espiral com sete pontas.

Mila tirou o lenço do pescoço, e uma marca semelhante estava ali — só que invertida, como um reflexo.

— Eu sabia. — ela disse, baixinho. — Somos os dois.

— Os dois o quê?

— Os dois sobreviventes.

Zéper tentou organizar o pensamento, mas as palavras dela cortavam como vento gelado.

— Sobreviventes de quê? — ele perguntou, embora sentisse que já sabia a resposta.

— Do primeiro ciclo. — ela disse, olhando para os lados, como se alguém pudesse estar ouvindo. — Há doze anos, quando a primeira ruptura aconteceu.

Zéper sentiu um arrepio. Ele se lembrava dos sonhos, das vozes, das imagens de um incêndio que nunca vira acordado. Mas nunca pensou que pudesse ser real.

— Eu achei que era só... imaginação. Trauma, talvez. — ele murmurou.

Mila balançou a cabeça.

— Não é. Nós vimos o que ninguém devia ver. Por isso estamos marcados. Por isso estamos sendo vigiados.

— Vigiados?

Ela assentiu.

— A escola está cheia deles. Gente que parece normal, mas não é. Repare nos olhos, no jeito que se movem. Eles sabem o que procuramos, e querem impedir que a gente se lembre.

Antes que Zéper pudesse responder, o sinal tocou. Alunos começaram a sair do pátio, e Mila se afastou como se nada tivesse acontecido.

De volta à sala, Zéper sentou-se no mesmo lugar. A professora entrou pouco depois, mas algo estava errado. Seus olhos... estavam escuros demais, como se tivessem perdido a luz. Quando ela falou, sua voz soava levemente distorcida.

— Abram os livros na página 36. — disse, mas não parecia ela. Soava oco, artificial.

Rúbia cutucou Zéper.

— Você sentiu isso? — sussurrou.

— Senti. — ele respondeu, já se preparando para o que viesse.

A aula seguiu num ritmo bizarro. Alguns alunos pareciam sonolentos, outros estavam fixados na professora como se hipnotizados. Mila estava imóvel, olhando para frente sem piscar. Quando Zéper tentou chamar por ela, ela sequer reagiu.

Então aconteceu.

A professora parou de falar no meio da frase. Seu corpo começou a tremer e, de repente, uma energia densa tomou conta da sala. As luzes piscaram e uma sombra se projetou atrás dela — uma forma humanoide, alongada, como se a própria escuridão tivesse criado vida.

Zéper se levantou de imediato.

— Rúbia, cubra os olhos dos outros!

— Entendido. — ela respondeu sem hesitar, como se já estivesse treinada pra isso.

Zéper caminhou até a frente da sala, sentindo o ar ficar pesado. A marca em seu pescoço queimava, como se estivesse viva.

— Você não pertence a este lugar. — disse ele à sombra.

A entidade riu. Um som que parecia vir de dentro da parede.

— Nem você, criança do fogo. Seu ciclo devia ter terminado.

— Mas não terminou. — Zéper respondeu, os punhos fechados.

Mila levantou de súbito, como se despertasse. Os olhos dela estavam brilhando em âmbar. Estendeu a mão e um símbolo apareceu no ar, feito de luz tremeluzente.

— Zéper, usa o nome! — ela gritou.

Ele hesitou por um segundo, mas então gritou:

— ZARAEL!

O símbolo de luz reagiu, explodindo em uma onda de energia que atingiu a sombra em cheio. A criatura gritou — um som desumano — antes de se desintegrar no ar como poeira levada pelo vento.

A professora desmaiou no mesmo instante. Os alunos despertaram lentamente, como se nada tivesse acontecido.

Zéper estava ofegante. Sentia os joelhos tremerem.

— O que foi isso? — perguntou ele, olhando para Mila.

— Um Sentinela da Névoa. Estão por toda parte agora. Sentem o cheiro da lembrança. Da verdade.

Rúbia chegou ao lado dos dois.

— A diretora vai subir. Precisamos sair daqui.

— Pra onde? — Zéper perguntou.

— Pra onde tudo começou. — respondeu Mila. — O orfanato. Lá estão as respostas.

Antes que pudessem se mover, Solange apareceu à porta, acompanhada por dois homens de terno. Seus olhos não sorriam.

— Crianças... que confusão foi essa?

Zéper trocou olhares com Mila e Rúbia. Era hora de correr.

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