Distraída, com os fones nos ouvidos, ouvindo Three Days Grace no volume máximo, mal noto qualquer coisa ao meu redor. Por isso, sou pega de surpresa quando me puxam com força para o lado e me derrubam no chão.
Bato o quadril no chão, sentindo minhas mãos arderem ao ralarem no concreto. Um gemido baixo escapa da minha boca e antes que eu consiga me levantar, sou cercada por um bando de garotas que me seguram pelos pés e pelas mãos.
- Ei! – eu grito, com mais desespero na voz do que eu queria. Vejo um borrão de rostos em cima de mim, tampando a luz do dia e rindo com maldade.
- Olha, ela está assustada! – uma delas diz.
- Ela quer chorar! – diz outra.
- Aposto que vai fazer xixi nas calças de medo! – solta uma terceira, fazendo todos caírem na gargalhada.
Demora para que minha visão se focalize, e possa identificar quem são. Enquanto luto para me soltar, olho para a cara de cada uma. Lá está a grandona de pele morena e cabelo crespo, Kelly. A asiática baixinha de aparelho nos dentes, e mais duas garotas que já vi de relance com Eliza, uma negra de trancinhas coloridas e uma ruiva de farmácia. Todas elas rindo da minha cara.
Me contorço com toda a força que tenho, mas ela são mais fortes e apertam meus braços e minhas pernas com intensão de me machucar.
- Calma, viuvinha! – elas dizem, apertando os corpos no meu para diminuir o meu espaço e minhas chances de me libertar.
Grunho com raiva. Tentar me soltar não está dando certo, então eu grito.
- Nada de gritos! – a grandona me repreende, colocando a mãozona suja na minha boca. Ela consegue apertar meu braço com um dos seus braços e tapar minha boca com o outro sem esforço.
Tento gritar mesmo assim e minha voz sai abafada e baixa. Não desisto, e continuo gritando, me contorcendo e virando a cabeça de um lado para o outro. Se o medo me paralisa, pelo menos o desespero pode me fazer agir.
- Fica quieta! – a grandona me repreende mais uma vez. Alguém dá um puxão no meu cabelo para me calar.
- Vamos acabar com isso – ouço uma voz nova surgindo atrás de mim. Outro puxão no meu cabelo. Dessa vez ele é mantido, fazendo minha cabeça tombar para trás e meus olhos encontrarem a cara horrorosa de Eliza, sorrindo diabolicamente para mim.
- Achou que iria fazer aquela brincadeirinha idiota comigo e sair impune, viuvinha? – ela rosna para mim, dando um puxão tão forte no meu cabelo que sinto meus olhos arderem – chegou a hora de você pagar!
Com um sorriso sinistro, ela me mostra um canivete com uma lâmina reluzente e um cabo preto. As outras garotas riem e uivam de forma assustadora. Eliza encosta a ponta do canivete no meu rosto e isso as deixam mais excitadas. Elas me puxam e me balançam de um lado para o outro sem dó nem piedade.
Mais uma vez tento me libertar e não consigo. Tenho consciência de que é inútil - elas estão em cinco e eu sou só uma - mas não posso me entregar, não posso me abandonar, isso seria muito pior.
A grandona aperta a mão com tanta força na minha boca que sinto meus dentes afrouxando, ao mesmo tempo que Eliza puxa tanto os meus cabelos, presos por sua mão numa espécie de rabo de cavalo, que meu pescoço está rígido e dolorido pelo esforço.
Eliza brinca com o canivete, passeado com ele pelo meu rosto, fazendo contornos por minha testa e meu queixo, pressionando-o perto do meu olho, me torturando de forma perversa com sua risada e de suas companheiras, que é tudo o que eu posso ouvir, obstruindo meus pensamentos.
- Como será que a viuvinha vai ficar depois que eu retalhar a cara dela? – ela me provoca, dando um beijo molhado na minha testa.
Esse gesto me causa tanto asco que tenho um acesso de adrenalina que quase me liberta. A garota que está segurando minha perna esquerda a deixa escapar e eu dou um chute cego nela. Impulsiono o corpo para frente, e minhas agressoras afrouxam um pouco os apertos.
No entanto, não demora para elas recuperarem o controle sobre mim, me apertando ainda mais do que antes, se é que isso é possível.
- Alguém está impaciente! – diz Eliza, o canivete retornando para a minha bochecha – não se preocupe, vou acelerar as coisas.
Com isso, ela arrasta a lâmina da faça por minha bochecha. Solto um grito abafado pelo mão da grandona, virando o rosto e sentindo uma ardência no local.
O tempo todo eu estive com os olhos abertos. Nessa hora, eu os fecho, com força, prometendo a mim mesma que não vou chorar. Meu corpo está tremendo, não tenho mais forças. Estou me segurando por um fio mais fino do que um fio de cabelo. E, quando ele se partir, já era.
- Ei, vocês! Soltem ela! – ouço uma voz a distância, mas não tenho certeza se é real. Acho que estou perdendo a consciência, e não consigo reagir.
De repente, as mãos que me seguravam me soltam, e eu caio como um tijolo no chão. Um grito sufocado na garganta. Minha cabeça se choca com tanta força no chão que meu corpo inteiro formiga. Me envolvo em posição fetal, esperando a dor passar.
Registro vagamente o som de gritos e as passadas pesadas de gente correndo. E aí, silêncio.
Não abro os olhos, não tenho coragem. Elas podem estar aqui ainda. Podem ter ficado quietas, esperando que eu abra os olhos para eles poderem ter um prazer sanguinário de furar meu olho aberto.
- Oi, Samantha – uma voz de homem me chama e sinto uma mão no meu ombro. Me debato, com medo de quem quer que seja. Seria muita sorte sair das mãos das psicopatas, para cair nas de um estuprador.
Dou cotoveladas e bicadas do melhor jeito possível no estado em que estou, sem forças.
- Espera! Calma! Sou eu! – a pessoa fala, segurando meus braços para me deter.
Enfim tomo coragem de abrir os olhos e encontro os olhos castanhos de Eric fitando-me diretamente.
O alívio toma conta do meu ser. Diferente daquela primeira vez em que o vi e pensei que ele representava perigo, dessa vez eu fico verdadeiramente feliz de encontrá-lo ali. Agarro o seu pescoço com os braços, me pendurando nele. Na verdade, o meu gesto acaba por trazer ele para o chão.
- Tudo bem, tudo bem – ele me tranquiliza, voltando a se levantar, sem que meus braços desgrudem dele – está tudo bem. Elas se foram.
Ele afaga as minhas costas, me sentando no chão. Permito que ele faça isso, ainda que meu corpo estremeça com seu toque.
Ficamos um tempo desse jeito, esperando que eu recupere o fôlego e as forças.
- Você consegue levantar? – ele me pergunta de forma gentil.
Abro a boca para responder, e só o que sai é um guincho estridente que precede uma choradeira descontrolada.
Não quero chorar.
Aperto os olhos e assinto.
Eric me levanta e eu cambaleio, minhas pernas trêmulas vacilando. Ele me segura pela cintura para que eu não caia.
- Vem, vamos entrar no mercado para você tomar um copo de água – ele fala, passando a mão levemente por meu rosto.
Olho em volta, sendo levada aos tropeços pelo Eric para a entrada dos fundos do supermercado. Não tinha reparado que esse tempo todo eu estava no beco sem saída atrás do supermercado.
Eric empurra uma porta de correr para o lado e a fecha depois que entramos. Passamos por um cômodo grande com várias caixas de tamanhos variados. Alguns funcionários andam por ali, ocupados demais para nos notarem. Saímos por uma porta do outro lado com uma cortina de plástico dividida ao meio e caímos nos fundos do mercado, onde ficam os pacotes de arroz, feijão e outros alimentos não perecíveis.
- Fica aqui, eu vou pegar água para você – Eric me coloca sentada em um banquinho de plástico branco que está a venda no mercado e entra novamente pela porta com cortina de plástico, que farfalha com o movimento.
Uns segundos mais tarde, ele volta com um copo de vidro contendo água com açúcar, para me acalmar. Aceito a água, mesmo sabendo que água com açúcar é um verdadeiro placebo.
- Obrigado – agradeço com a voz fininha, bebendo um gole de água.
Bebo a água de uma vez só, um gole atrás do outro. O tempo todo ignorando que Eric olha para mim.
- Então... O que estava acontecendo lá fora? – ele me pergunta, ao me ver terminar de beber a água.
Finjo mais um pouquinho que estou bebendo, sem ter nada no copo. Placebo ou não, consegui me acalmar. Meu corpo parou de tremer e o bolo na minha garganta diminuiu.
- Não... – minha voz falha e eu pigarreio para ela voltar – não pareceu óbvio? Elas estavam me atacando.
- Sim. O que eu quero dizer é, por que elas estavam te atacando?
Não digo nada. As imagens do que acabara de acontecer reprisando em minha mente e me fazendo estremecer.
- Eram as mesmas garotas que queriam bater na Julia e em você naquele dia? – ele conclui sem que eu precise dizer nada.
Assinto vagarosamente.
- Elas vieram terminar o que começaram – digo, segurando firmemente o copo nas mãos, olhando para baixo.
- E quase conseguiram – ele acrescenta.
Se não fosse por você, penso, e não tenho coragem de dizer. Mais uma vez vejo as imagens delas em cima de mim e meu corpo todo se arrepia com o que poderia ter acontecido.
- Elas fizeram isso com você? – ergo a cabeça e o vejo apontando para o meu rosto.
Toco a minha bochecha, sentindo-a arder e latejar no local aonde Eliza me cortou. Tinha me esquecido desse corte.
- Foi – respondo e faço uma careta para a dorzinha chata do machucado.
- Deixa eu ver – Eric tira a minha mão do rosto e ergue meu queixo para avaliar o corte. Espero que ele não note minhas bochechas corando, seu toque me causando um arrepio que não sei explicar.
- Não precisa se preocupar. O corte foi superficial. Vai desaparecer em alguns dias – declara ele, tirando a mão do meu queixo – você devia denunciar essas meninas.
- Eu não vou fazer isso! – disparo, com a voz esganiçada.
- Você precisa. O que elas fizeram é muito grave – ele fala com intensidade.
Sei que ele está certo. Mas não posso fazer isso. Denuncia-las só as deixariam mais furiosas. Se uma brincadeirinha inocente fez com quem que elas quase retalhassem a minha cara, o que uma denuncia séria poderia desencadear? Um tiro? Não duvido de mais nada.
Balanço a cabeça em negativa.
Eric suspira, desanimado, não querendo iniciar uma discussão.
Uma mulher rechonchuda com um carrinho grande entra no corredor em que estamos e para perto da seção do arroz. Não tinha reparado até então que o corredor estava vazio.
Levanto do banquinho e entrego o copo para Eric.
- Obrigada pela água – ajeito a mochila nas costas, pensando banalmente que minhas barras de chocolate devem estar em migalhas a essa altura.
Contorno ele e uma mesa com vários utensílios de cozinha e aí paro. Daqui posso ver a entrada, com sua rua movimentada do lado de fora onde um carro passa atrás do outro.
E se elas estiverem lá fora, em algum lugar, esperando por outra oportunidade de me pegar? Talvez em uma rua mais erma, onde ninguém apareça do nada para me salvar.
Nunca tive medo de andar sozinha. Neste momento, não posso nem sair do lugar de tão apavorada que estou.
- Você gostaria que eu te acompanhasse até sua casa? – Eric se oferece atrás de mim – você mora perto daqui?
Me viro, e aperto os lábios. Estava pensando nisso. E que sorte que ele se ofereceu, porque eu não teria coragem de pedir.
- Sim, minha casa fica a uns 10 minutos daqui.
- Tudo bem, eu vou com você – ele põe as mãos nos bolsos na calça jeans e começa a andar.
- Espera, você não tem que trabalhar? – eu o lembro andando ao seu lado, tentando acompanhar seu passo, porque me esforçar muito dói.
- Eu vou tirar uma pausa – ele fala simplesmente.
Atravessamos o mercado. Chegando perto da entrada, Eric para num balcão, onde uma mulher com cabelos curtos e cacheados e pele bronzeada, está mexendo em alguns papéis.
- Ângela! – ele chama a atenção da mulher, que veste um camisa do mercado semelhante a dele.
Ângela ergue os olhos dos papéis para Eric, e sorri. Um sorriso autenticamente simpático.
- Oi, Eric. Algum problema?
- Então, a minha amiga aqui, foi assaltada aqui no beco de trás e está com muito medo de ir para casa sozinha. E eu queria saber se posso tirar uma pausa para acompanhá-la até lá – ele dá um sorrisinho que é uma mistura de respeito e humildade.
Ângela arregala os olhos, com essa notícia
- Ai, meu Deus! Ela foi assaltada? Você está bem? – ela se dirige a mim, segurando no meu ombro por cima do balcão com ternura e uma preocupação evidente em sua voz.
- S-sim – gaguejo, não sabendo bem o que falar. Não sabia que Eric iria inventar essa mentira, e não sou muito boa em improvisar. De qualquer forma, isso pode demonstrar que estou abalada por ter sido assaltada, o que é praticamente a verdade.
- Ela está bem – Eric vem em meu socorro - só levaram o celular dela. Já lhe dei um copo de água com açúcar. Ela só precisa de alguém para acompanhá-la. Posso ir?
Ângela pondera, batucando a caneta que está na sua mão no balcão e torcendo a boca pintada de rosa fúcsia.
- Tudo bem. Pode tirar uma pausa – ela concede – mas é só dessa vez, e só porque sua amiga foi assaltada. Não se acostuma – ela aponta um dedo pra ele, para não perder sua autoridade – e volte rápido!
- Valeu, Ângela – ele se inclina sobre o balcão e dá um beijo na bochecha dela, com um sorriso enorme na cara – pode deixar. Volto já.
Ele põe a mão nas minhas costas e me conduz para fora do mercado.
- Vai ficar tudo bem, querida – ela me garante, com doçura.
- Obrigado – digo, contagiada por sua simpatia. Dou tchau para ela antes de sair.
Fora da região do mercado, me afasto da mão do Eric.
Percorremos o caminho para minha casa em silêncio. Lado a lado, porém, a uma certa distância um do outro. 10 minutos se assemelham a uma hora.
Entramos na minha rua e eu paro a meio caminho de chegar na minha casa.
- Ali fica a minha casa – aponto para a casa no final da rua sem saída – vou ficar bem a partir daqui. Pode voltar para o seu trabalho. E... Obrigada por... Me salvar – minha voz sai meio grossa, como se eu estivesse com raiva do que ele fez ao invés de agradecida.
Ele assente, com as mãos no bolso.
- Não foi nada – ele chuta uma pedrinha no chão, meio acanhado – tchau.
Eric acena e se vira de costas, refazendo o caminho para o supermercado.
- Tchau – falo com a voz baixinha, seguindo adiante.
Falta pouco para chegar em casa. Mais uns passos. Mais uns passos e posso me jogar na minha cama e desatar a chorar.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Comments