Capítulo 4 — Estilhaços Invisíveis

A manhã começou como todas as outras, mas Elisa já não era a mesma. O despertador tocou, Clara pediu o laço rosa para o cabelo, Arthur saiu às pressas com o celular no bolso. A diferença estava dentro dela, na forma como cada detalhe parecia carregado de outro sentido.

O café, antes um gesto de afeto, agora era apenas repetição. O beijo na testa de Clara, antes um ritual doce, agora soava como pedido de desculpas por um lar que já não era inteiro. Até o uniforme da filha parecia mais gasto, como se a rotina tivesse sugado a cor do tecido.

Arthur falou pouco no café da manhã. Comentou algo sobre uma reunião, respondeu rápido a duas mensagens e saiu. Elisa observou o carro sumir na esquina com a sensação de que não era apenas a distância física que crescia entre eles.

Na escola, Clara correu para os colegas sem olhar para trás. Elisa ficou parada, segurando a mochila vazia, pensando em quantas vezes havia se perdido entre ser esposa e ser mãe, sem lembrar quem era além disso.

No caminho de volta, passou em frente a uma vitrine e se deteve diante do próprio reflexo. A mulher que viu parecia cansada. Havia olheiras fundas, um traço de amargura no canto da boca, e os cabelos, presos às pressas, mostravam fios soltos em desalinho. Elisa se aproximou do vidro, quase num sussurro:

— Quem é você?

Mas não houve resposta. Apenas a imagem de uma mulher que já não reconhecia.

Em casa, tentou se ocupar. Lavou roupas, organizou armários, passou pano no chão. Tudo para afastar a imagem daquela mensagem que queimava em sua memória: “Foi perfeito. Já com saudade.”

À tarde, Marina ligou novamente.

— Como você está? — perguntou, a voz firme, como quem pressente que a amiga não diria a verdade.

Elisa forçou um sorriso que Marina não podia ver.

— Estou bem. Só cansada.

— Elisa… — Marina suspirou do outro lado. — Você não precisa fingir comigo.

As palavras ficaram presas na garganta. Por um instante, Elisa quis contar tudo. Mas a imagem de Clara surgiu em sua mente: a filha desenhando o sol com nove braços, pedindo o “abraço do tamanho do elevador”. A menina não merecia a destruição repentina de um lar.

— Depois a gente se fala — cortou, antes que as lágrimas a denunciassem.

À noite, Arthur chegou mais tarde do que o habitual. Clara já dormia, e a casa estava silenciosa. Ele entrou com passos cautelosos, como se quisesse evitar qualquer confronto. Elisa, porém, o esperava na sala, sentada com os braços cruzados.

— Onde você estava? — perguntou, a voz calma, mas firme.

Arthur hesitou por uma fração de segundo, apenas o suficiente para que Elisa percebesse.

— Reunião. Você sabe como é.

Ela assentiu devagar, sem contestar. Não precisava. O silêncio era mais eloquente do que qualquer resposta.

Arthur subiu as escadas, e Elisa ficou sozinha novamente. Olhou para a mesa de centro, onde o celular dele piscava com mais uma notificação bloqueada. Não tocou. Não queria provas que confirmassem o que já sentia.

A noite avançou, e ela se deitou ao lado dele sem trocar palavras. O corpo de Arthur estava ali, mas a presença já não.

A madrugada avançava, e Elisa já não conseguia dormir. O corpo imóvel de Arthur ao lado, respirando pesado, parecia um lembrete cruel de que a intimidade entre eles se resumia a dividir o colchão.

Ela se levantou em silêncio, desceu as escadas e foi até a cozinha. Acendeu apenas a luz fraca sobre a pia, a mesma que usava para preparar o café nas manhãs. O ambiente estava quieto demais, quase sufocante.

Sentou-se à mesa com uma caneca vazia nas mãos. Apertava o objeto como se fosse uma âncora, algo que pudesse impedi-la de se perder dentro dos próprios pensamentos. A mensagem que vira — “Foi perfeito. Já com saudade” — martelava em sua mente. Podia fingir que não sabia, mas o corpo dela já tinha absorvido aquela verdade amarga.

Enquanto olhava para a madeira da mesa, notou algo diferente. Sobre a cadeira de Arthur, esquecida, estava uma pasta de couro. O fecho mal encaixado deixava à mostra papéis dobrados, e entre eles um cartão de visita feminino, com uma marca de batom bem no canto.

O coração de Elisa disparou. As mãos tremeram. Aproximou-se, puxando o cartão com cautela, como se fosse uma peça proibida. O nome escrito ali não lhe dizia nada, mas a marca deixada não precisava de explicações. Era um símbolo que falava mais alto do que qualquer justificativa.

Ela o segurou por longos segundos, até sentir os olhos marejarem. Pensou em subir, jogar o cartão na cara dele, gritar, exigir a verdade. Mas Clara dormia no quarto ao lado, inocente, respirando tranquila. A filha não merecia o estilhaço daquela guerra.

Com o peito em chamas, Elisa guardou o cartão de volta, exatamente como o encontrou. Subiu devagar as escadas e parou diante da porta do quarto da filha. Abriu apenas uma fresta. Clara estava virada para o lado, abraçada à boneca favorita, um fio de cabelo grudado na testa suada.

Elisa sorriu entre lágrimas. Por ela, eu ainda aguento, pensou.

Entrou no próprio quarto, deitou-se sem fazer barulho, e fechou os olhos. Arthur se mexeu de leve, mas não acordou. O perfume adocicado ainda impregnava o ar, misturado ao peso do silêncio.

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Comments

Luciana Ferreira De Sousa Ferreira de Sousa

Luciana Ferreira De Sousa Ferreira de Sousa

Pelo jeito a autora gosta de enrolar!
Nesses 5 capítulos não houve nada 🤭

2025-09-06

1

lua 🌙

lua 🌙

autora amo histórias desse tipo de enredo. só dando uma dica, não delonga demais no mesmo tópico

2025-09-07

0

Sandra Camilo

Sandra Camilo

idiota demais , ninguém merece passar por isso, pensando só nos filhos, tem que se amar primeiro ❤️

2025-09-06

0

Ver todos
Capítulos
1 Prefácio — As regras invisíveis
2 Capítulo 1 — A Fenda na Rotina
3 Capítulo 2 — O Silêncio das Portas Fechadas
4 Capítulo 3 — O Peso do Não-Dito
5 Capítulo 4 — Estilhaços Invisíveis
6 Capítulo 5 — A Primeira Ruptura
7 Capítulo 6 — A Primeira Centelha
8 Capítulo 7 — O Mundo Além das Paredes
9 Capítulo 8 — A Porta Entreaberta
10 Capítulo 9 — O Primeiro Sim
11 Capítulo 10 — Entre Vidros e Silêncios
12 Capítulo 11 — O Olhar por Trás do Vidro
13 Capítulo 12 — Depois do Vidro, a Cidade
14 Capítulo 13 — Entre o Rigor e o Acaso
15 Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (I)
16 Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (II)
17 Capítulo 15 — O Jogo das Aparências
18 Capítulo 16 — As Máscaras em Ruína
19 Capítulo 17 — A Brecha no Muro
20 Capítulo 18 — A Arma do Silêncio
21 Capítulo 19 — O Peso das Provas
22 Capítulo 20 — As Peças em Movimento
23 Capítulo 21 — Entre Linhas e Olhares
24 Capítulo 22 — Frestas no Concreto
25 Capítulo 23 — Quando o Vidro Respira
26 Capítulo 24 — O Desespero Bate à Porta
27 Capítulo 25 — O Coração Entre Linhas
28 Capítulo 26 — O Fim das Correntes
29 Capítulo 27 — O Peso da Rotina e a Luz por Trás do Vidro
30 Capítulo 28 — A Linha que se Rompe
31 Capítulo 29 — O Incêndio Silencioso
32 Capítulo 30 — A Noite que Rompeu o Vidro
33 Capítulo 31 — Segredos em Chamas
34 Capítulo 32 — A Noite Inteira
35 Capítulo 33 — O Amanhecer das Consequências
36 Capítulo 34 — Quando as Sombras Gritam
37 Capítulo 35 — A Confrontação
38 Capítulo 36 — O Escândalo
39 Capítulo 37 — A Outra Verdade
40 Capítulo 38 — O Último Golpe de Arthur
41 Capítulo 39 — Vozes no Tribunal
42 Capítulo 40 — O Julgamento do Silêncio
43 Capítulo 41 — Entre Verdades e Promessas
44 Capítulo 42 — O Sopro da Paz
45 Capítulo 43 — Entre o Amor e os Restos da Guerra
46 Capítulo 44 — Asas de Liberdade
47 Capítulo 45 — Epílogo: Asas Abertas
Capítulos

Atualizado até capítulo 47

1
Prefácio — As regras invisíveis
2
Capítulo 1 — A Fenda na Rotina
3
Capítulo 2 — O Silêncio das Portas Fechadas
4
Capítulo 3 — O Peso do Não-Dito
5
Capítulo 4 — Estilhaços Invisíveis
6
Capítulo 5 — A Primeira Ruptura
7
Capítulo 6 — A Primeira Centelha
8
Capítulo 7 — O Mundo Além das Paredes
9
Capítulo 8 — A Porta Entreaberta
10
Capítulo 9 — O Primeiro Sim
11
Capítulo 10 — Entre Vidros e Silêncios
12
Capítulo 11 — O Olhar por Trás do Vidro
13
Capítulo 12 — Depois do Vidro, a Cidade
14
Capítulo 13 — Entre o Rigor e o Acaso
15
Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (I)
16
Capítulo 14 — O Desconforto dos Acostumados (II)
17
Capítulo 15 — O Jogo das Aparências
18
Capítulo 16 — As Máscaras em Ruína
19
Capítulo 17 — A Brecha no Muro
20
Capítulo 18 — A Arma do Silêncio
21
Capítulo 19 — O Peso das Provas
22
Capítulo 20 — As Peças em Movimento
23
Capítulo 21 — Entre Linhas e Olhares
24
Capítulo 22 — Frestas no Concreto
25
Capítulo 23 — Quando o Vidro Respira
26
Capítulo 24 — O Desespero Bate à Porta
27
Capítulo 25 — O Coração Entre Linhas
28
Capítulo 26 — O Fim das Correntes
29
Capítulo 27 — O Peso da Rotina e a Luz por Trás do Vidro
30
Capítulo 28 — A Linha que se Rompe
31
Capítulo 29 — O Incêndio Silencioso
32
Capítulo 30 — A Noite que Rompeu o Vidro
33
Capítulo 31 — Segredos em Chamas
34
Capítulo 32 — A Noite Inteira
35
Capítulo 33 — O Amanhecer das Consequências
36
Capítulo 34 — Quando as Sombras Gritam
37
Capítulo 35 — A Confrontação
38
Capítulo 36 — O Escândalo
39
Capítulo 37 — A Outra Verdade
40
Capítulo 38 — O Último Golpe de Arthur
41
Capítulo 39 — Vozes no Tribunal
42
Capítulo 40 — O Julgamento do Silêncio
43
Capítulo 41 — Entre Verdades e Promessas
44
Capítulo 42 — O Sopro da Paz
45
Capítulo 43 — Entre o Amor e os Restos da Guerra
46
Capítulo 44 — Asas de Liberdade
47
Capítulo 45 — Epílogo: Asas Abertas

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