####O DOM

Ele não olhou para ninguém. Não precisava. O caminho estava aberto. O centro estava livre. O X aguardava. Ele parou diante da cruz como quem encontra um velho conhecido — não com ternura, mas com uma objetividade quase íntima. Bastou um aceno mínimo, e duas assistentes surgiram das sombras, posicionando-se a dois passos de distância, mãos às costas, olhos baixos. O mestre de cerimônias, no canto, inclinou a cabeça em saudação. A noite tinha começado.

Chamar a mansão de “casa de prazeres” era empobrecer sua gramática. Havia prazer ali, sim, mas domesticado pela liturgia do controle. Havia dor, talvez; mas era uma dor que não se confundia com violência, do mesmo modo que um bisturi não se confunde com uma faca de cozinha. Havia beleza, uma beleza estranha — dessas que alguns rejeitam por não saber onde colocá-la na estante da alma.

No alto, quase invisível, uma ventoinha movia o ar com gentileza. A seda de um vestido sussurrou, um colar tilintou, a ponta de um sapato bateu uma vez, leve, no piso. Alguém molhou os lábios. Alguém apertou mais forte a própria gargantilha — gesto automático de quem, diante do altar, se lembra do credo.

A Sala de Sodoma e Gomorra, ironicamente, era um lugar onde quase nada se perdia. Ao contrário do mito, ali o fogo não destruía — iluminava. Era um fogo controlado, posto em lampadários de bronze. Era um fogo que não queimava casas nem cidades, mas acendia olhos, dedos, vontades que, do lado de fora, tinham aprendido a viver de joelhos diante de outras liturgias: e-mails, metas, acionistas. Talvez por isso a mansão fosse tão procurada: porque, entre máscaras, alguns se sentiam, enfim, vistos.

Quando o Dom tirou, com um gesto minúsculo, o relógio do pulso e o entregou à assistente, o público recuou a respiração por um instante. Era o primeiro rito de desapego da noite: largar o tempo. Em seguida, retirou as luvas com a mesma paciência com que um restaurador toca uma pintura de trezentos anos: dedo por dedo, costura por costura, sem pressa, deixando o couro ceder em silêncio. Não havia pressa naquela casa. Havia cadência.

A música ganhou um fio de gravidade, como se alguém passasse a mão por baixo das notas e as sustentasse por um segundo a mais. O espelho, do outro lado, devolveu o perfil do homem com máscara com uma leve distorção — a mesma com que a água amplia uma figura dentro de um lago. Alguém sorriu. Alguém fechou os olhos. Alguém, sem perceber, pousou a mão sobre o próprio peito, onde, do lado de fora, usava um crachá com nome e cargo; ali dentro, nenhum crachá dizia nada — e, por isso mesmo, dizia tanto.

Quando a porta lateral se abriu, por fim, foi como se a sala soltasse um soluço contido. Ela entrou. A pulseira vermelha brilhou uma única vez, sob a luz de uma vela. Não era brilho de joalheria. Era sinal. O suficiente para que o semicírculo inteiro registrasse. A gargantilha, fina e firme, desenhava a curva do pescoço com uma precisão que beirava a caligrafia. A tatuagem, discreta, parecia uma assinatura escondida sob um traço de renda. Não havia vulgaridade. Havia um cuidado quase litúrgico no modo como duas mãos — as das assistentes — a conduziram até a cruz, como quem deposita um livro antigo sobre um suporte de leitura.

Nada foi apressado. Nada foi arrancado. Tudo foi concedido — e essa era a sacralidade da casa.

A primeira fivela fechou com um som pequeno, preciso, que quem ama relógios reconheceria. A segunda, no outro pulso, respondeu como um eco. O público não respirou mais alto nem mais baixo; apenas mudou a qualidade do ar dentro do peito. A sala, de repente, pareceu menor. O Dom, a dois passos de distância, inclinou a cabeça com um respeito que não era elogio — era pacto. E, por um segundo que não se pode medir em relógios, a mansão inteira ficou suspensa sobre o fio invisível que segura uma queda.

A queda, ali, tinha outro nome: começo.

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