Afastando sensações.

Os sorrisos eram os mesmos.

Alguns vazios, outros tentando parecer sedutores, confiantes.

Homens quebrados fingindo que ainda têm controle.

Passei pela porta com minha pasta de anotações, óculos ajustados no rosto e o cabelo solto.

Postura ereta. Expressão neutra.

A muralha que me separa deles. Que me protege de mim.

Foi quando o vi.

Sentado mais ao fundo. Encostado na parede como quem não confia nem no próprio corpo.

Novo demais para ter aquele olhar.

Aquele olhar.

Bonito demais, intenso demais. Amanda.

Pensei e engoli seco.

Corrigi a respiração. Corrigi a coluna. Corrigi a mim mesma.

— Bom dia. — minha voz saiu firme, treinada. — É bom ver tantos rostos recorrentes aqui hoje. Isso significa que vocês ainda estão tentando. E isso é o que importa.

Alguns assentiram.

Outros fingiram que ouviram.

Meus olhos voltaram para ele.

O novo.

O que estava quieto demais.

— Vejo um rosto novo hoje. Daniel? — falei, direta. — Quer se apresentar?

Ele me olhou.

Nada no rosto dele se moveu.

O olhar era firme. Invasivo. Profundo, todos os rostos se viraram para ele.

E a voz…

— Não.

Grave.

Baixa.

Segura.

Era uma negação sem agressividade. Mas com tanta força que senti o impacto onde não devia.

Pressionei as pernas sob a mesa, sutilmente, tentando afastar aquela resposta do meu corpo.

Eu estava no comando. Era o papel que sabia cumprir.

Mas ele...

Ele levantou sem aviso, empurrou a cadeira devagar e saiu da sala.

Não falou mais nada.

Nem olhou para trás.

Eu também não disse nada.

Virei de volta para o grupo.

Tirei a tampa da caneta. Abri a pasta.

Rotina.

— Tudo bem. — continuei. — Alguém quer compartilhar como foi a semana?

Trey foi o primeiro a falar. Sempre é.

— Eu fiquei limpo. Quase recaí terça, mas lembrei da frase que você falou sobre "lidar com o vazio, não fugir dele". Então... fui correr. Vomitei depois, mas funcionou.

Sorrisos tímidos surgiram ao redor.

— Isso é progresso, Trey. — comentei. — Você enfrentou o impulso. Isso importa.

Outro rapaz, Jonah, ergueu a mão.

— Minha ex apareceu. Queria que eu visse meu filho. Fiquei sóbrio cinco dias, Amanda. Foi o máximo em dois anos. Mas ontem… — ele baixou os olhos. — Ontem eu fumei.

— E mesmo assim veio. — eu disse. — Não apagou cinco dias por causa de um. Estamos trabalhando com passos, não perfeição.

Eles falavam.

Eu ouvia.

Mas minha cabeça…

Estava na porta.

No silêncio que ele deixou.

Na pergunta que não me deixava desde então:

Por que ele saiu?

Pedi licença para ir ao banheiro.

O grupo já estava mais disperso. Uns indo embora. Outros só esperando a desculpa certa para não voltar mais.

Mas ele?

Ele não voltou.

A água estava fria. Joguei no rosto. No pescoço.

Mãos apoiadas na pia. Olhos nos próprios olhos no espelho.

“É só um paciente.”

“Você já viu de tudo.”

“Você é profissional.”

Mentiras repetidas para silenciar o que latejava no corpo.

Suspirei. Abotoei novamente a camisa no alto.

Fechei os olhos. Mais uma respiração. Equilíbrio.

Ao sair, distraída, esbarrei em alguém no corredor estreito.

Meus olhos subiram.

E lá estava ele.

Daniel.

Encostado casualmente na parede oposta, como se estivesse ali o tempo todo.

Um passo para trás. Devagar. Mas o olhar fixo no meu.

Frio. Implacável. Lúcido demais para quem veio se tratar.

— Fugir não resolve nada. — disparei antes de pensar quando ele foi se afastar.

Por que você está falando, Amanda? Cala a boca.

— Faz parte do processo… esse impulso de evitar… — continuei, tentando vestir a terapeuta de novo. — É normal. Acontece com outros também…

Ele deu um passo à frente.

Lento.

E sorriu.

Um sorriso perigoso.

Não charmoso. Não sedutor.

Diabólico.

— Eu não fugi, doutora. — a voz dele era grave, baixa demais para ser ignorada. — Me afastei para que você pudesse trabalhar. Achei... legal da minha parte.

— O quê? — vacilei.

Ele inclinou a cabeça, olhos ainda cravados nos meus.

— A pressão nas suas pernas... mostrou que alguma coisa não estava certa. — murmurou. — Eu sou o paciente. Não deveria estar provocando reações assim, certo?

Meu rosto ardeu.

Merda.

— Você... do que está falando? — sussurrei, mas me arrependi no instante seguinte.

— Não se nega a leitura de um corpo, Amanda. Nem quando finge estar no controle.

— Você é um arrogante. — falei com a voz mais firme do que esperava. — Não preciso disso.

Virei de costas e caminhei a passos firmes, como se ele não estivesse colado nos meus pensamentos.

Atrás de mim, ouvi o som das botas dele ecoando no corredor.

Ele veio.

Entrou logo depois na sala, com aquela expressão de quem já sabia que tinha vencido.

Mas isso era só o começo.

Ele não sabia do que eu era capaz.

Ou talvez…

Soubesse.

— Hoje eu quero falar sobre o que significa persistir, mesmo quando tudo em você diz para parar. — comecei, sem olhar para a pasta. — Porque há momentos em que a recaída não é com a substância. É com a vida. Com o passado.

Alguém bufou. Outro mexeu na perna. O normal.

Mas ele estava parado. Atento.

— Eu tinha 25 anos quando me vi sozinha, com um filho pequeno e a autoestima em ruínas. Meu ex-marido era... — engoli seco — um homem de fachada impecável. E de portas fechadas, uma tormenta. Foram sete anos de medo disfarçado de amor.

Alguns me olharam com surpresa. Eu nunca me abria daquele jeito.

Mas continuei.

Sem controle.

Como se não fosse por eles.

Como se fosse por ele.

— E um dia, percebi que não dava mais para justificar traições e agressões, por uma criação errada ou pelos traumas que ele dizia ter. Eu precisava sair. Não por mim. Mas pelo meu filho. Pela chance de ensinar a ele o que é respeito.

Minha mão tremia ao lado do corpo.

Estava indo longe demais.

— Foi difícil. Eu não tinha dinheiro. Dormi no sofá de uma amiga por semanas. Estudava à noite, trabalhava durante o dia. Chorei de cansaço mais vezes do que consigo lembrar. Mas valeu. Cada dor. Cada migalha de progresso. Porque no fim, eu não estava só fugindo de alguém… — respirei fundo. — Eu estava lutando para me tornar alguém melhor.

Silêncio.

Um silêncio espesso.

E então percebi.

Cada palavra…

Cada detalhe.

Eu havia dado a ele tudo o que precisava saber sobre mim.

Quando era.

Com quem.

Onde me atingia.

E ele?

Ele me olhava com um leve movimento nos lábios.

Não era um sorriso.

Era algo entre surpresa e reconhecimento.

Como se dissesse: agora estamos quites.

Maldito.

Afastei o olhar. Voltei à mesa.

— Alguém quer compartilhar algo?

Mas ninguém respondeu.

Talvez porque o que eu disse… fosse muito mais do que deviam ter ouvido.

Ou talvez…

Porque, de todos ali, só um realmente tinha entendido.

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Marilia Carvalho Lima

Marilia Carvalho Lima

😔😔

2025-08-03

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