Nova Iorque, 9h01 da manhã
Eu estava sentada na beirada de uma poltrona de couro que certamente custava mais do que minha mensalidade inteira em Columbia, com as mãos entrelaçadas no colo e o suor da palma grudando nos meus dedos. A cidade se estendia diante da sala como um quadro vivo, arranhando o céu com suas torres, e eu tentava me concentrar em algo além do reflexo do meu nervosismo no vidro.
A sala era limpa, precisa, silenciosa. O tipo de ambiente que não perdoa erros — nem passos em falso. A mesa à minha frente parecia um altar. Um altar de decisões, de autoridade, de verdades que não são ditas com palavras, mas com silêncio. O vaso de orquídeas era a única coisa viva ali dentro além de mim. Pétalas brancas, perfeitas, suspensas com uma delicadeza que parecia ironizar minha própria inquietação.
Tentei ajeitar o casaco no ombro, mas tudo parecia desalinhado. Minhas pernas balançavam discretamente, e eu as forcei a parar. Lembrei das instruções da Vanessa — postura firme, queixo erguido, nada de roer a unha, e pelo amor de Deus, Eva, não faça piadas nervosas.
O tempo parecia não passar. Cada minuto escorria lento como se o mundo tivesse entrado em câmera lenta só para me testar. Quis beber água, mas havia um copo único e intocado sobre a mesa. Achei que poderia ser do dono da sala e preferi continuar com a garganta seca a correr o risco de cometer meu primeiro erro antes mesmo de abrir a boca.
Não sabia exatamente o que esperar. Meu cérebro passava por todos os possíveis cenários: uma entrevista formal, uma conversa descontraída, um teste técnico, talvez uma humilhação velada do tipo “vamos te colocar no seu lugar, mocinha recém-formada”. Nada ali era previsível. Nada ali me parecia seguro.
Minha ficha ainda não havia caído por completo. Aquilo não era só um escritório de arquitetura. Era o escritório. D’Angelo & Marchand não contratava estagiários. Eles selecionavam. Escolhiam. Caçavam talentos em prêmios internacionais, nas capas de revistas, nas universidades mais disputadas do mundo. E mesmo assim, ali estava eu. A filha do meio, do Bronx, tentando não borrar o batom caro com o nervoso.
Foi quando ouvi os passos. Dois, precisos. Não rápidos. Não arrastados. Apenas... decisivos.
Minha espinha enrijeceu no instante. A maçaneta girou sem pressa, e meu coração respondeu com um salto que ecoou até a garganta. A porta abriu.
E tudo dentro de mim silenciou.
Eu soube. No instante em que ele entrou, soube que aquele momento mudaria alguma coisa. Que aquela entrevista não seria como nenhuma outra.
Mas naquele primeiro segundo, antes de qualquer palavra, antes até do meu nome ser pronunciado, a única coisa que consegui pensar foi:
"Ele é real."
E Deus, como ele parecia perigoso.
A figura que entrou parecia ter sido desenhada pelo próprio espaço que o recebia — sóbrio, afiado e perfeitamente inserido naquele cenário de linhas limpas e silêncio calculado. Ele vestia um terno escuro, cortado com uma precisão quase cirúrgica, sem nenhum adorno, sem exageros, como se a simplicidade fosse uma declaração de poder. Alto. Ombros largos. Movimentos contidos, mas implacáveis. Como se cada passo tivesse sido medido antes de acontecer.
Seus olhos — os mais intensos que já cruzaram os meus — pareciam avaliar tudo em milésimos de segundo. Não só o que eu era, mas o que eu fingia ser, o que eu não dizia, e talvez até o que eu própria ainda não sabia que carregava. Eles não me olhavam apenas. Eles me liam.
— Eva Santiago. — Sua voz era baixa, grave, um sussurro que parecia fazer reverberar o ar ao meu redor.
Assenti, levantando-me com cuidado. Acalmei as mãos antes de oferecer a direita. Ele apertou com firmeza controlada, nenhum traço de cordialidade exagerada. Era só o necessário. Medido. Como tudo nele.
— Senhor D’Angelo. Obrigada pela oportunidade.
— Vamos ver se ela é merecida.
A resposta não veio com arrogância. Veio com exatidão. Como se a entrevista já estivesse em andamento antes mesmo que eu me sentasse. Ele contornou a mesa e ocupou a cadeira oposta com a mesma frieza impecável com que um rei ocuparia seu trono. Não me mandou sentar. Não precisou. O gesto breve de seu queixo foi o suficiente.
— Você se formou em Columbia. Primeira da turma.
— Sim, senhor.
— Projetou para a Bienal de Veneza como parte do grupo independente da pós-graduação.
— Também sim. E fui responsável pela coordenação de renderização e modelagem 3D da equipe, além da logística de transporte da instalação final.
— Isso não estava no portfólio.
— Achei que mostrar o projeto fosse mais importante do que listar o esforço. Mas, se quiser, posso detalhar tudo em ordem cronológica.
Ele me lançou um olhar curto, cortante, e algo no canto de sua boca se mexeu. Não era um sorriso. Era... reconhecimento.
— Presunção ou estratégia?
— Economia de tempo.
O silêncio que se seguiu foi quase palpável. E, por um segundo, temi ter passado do limite. Mas os olhos dele brilharam com algo que parecia muito próximo de interesse.
Ele puxou uma pasta preta, simples, com meu portfólio impresso em papel de gramatura alta. Passou os olhos pelas páginas como quem folheia um relatório de guerra.
— Projeto de revitalização urbana em Crown Heights. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Um bairro que não está na moda.
— Justamente por isso o escolhi. O desafio era criar algo que não deslocasse os moradores, mas que ainda assim elevasse o espaço. Quis aplicar soluções de arquitetura social com identidade — iluminação pública, painéis solares acessíveis, áreas comuns reaproveitadas com materiais de baixo custo e impacto ambiental mínimo.
— Isso soa... idealista.
— Idealista seria se eu dissesse que isso mudaria o mundo. O projeto foi pensado para mudar um quarteirão. Talvez dois. A arquitetura precisa ter ambição, mas não pode ser cega.
Ele fechou a pasta com um gesto tranquilo. Me olhou de novo. Como se, pela primeira vez, estivesse realmente me vendo.
— E o que você acha que vai encontrar aqui, senhorita Santiago?
Essa era a pergunta que importava. E eu sabia disso.
— Uma estrutura com excelência técnica, alcance global e padrões absurdamente altos. Um ambiente onde a margem de erro é mínima e a cobrança, constante. Sei que não estou entrando pela porta da frente com sobrenome famoso nem com prêmios europeus. Mas entrei aqui com consciência de onde estou pisando. Eu não vim para ser mais uma. Vim para crescer, e para justificar cada segundo da minha presença.
Ele apoiou os cotovelos na mesa. Os olhos não se desviaram dos meus nem por um segundo.
— Muitos dizem isso. Poucos sustentam.
— Então me dê a chance de sustentar.
A tensão entre nós era feita de aço, polida e afiada. Ele não sorria. Eu também não. Mas havia uma conversa ali acontecendo além das palavras, feita de ritmo, controle e... algo que eu ainda não sabia nomear.
Ele se levantou. Caminhou até a janela que se projetava sobre Nova Iorque como uma plataforma de observação de outro mundo. Ficou ali por alguns segundos, de costas. E depois, virou-se devagar.
— Você começa amanhã.
Meu estômago deu um salto que quase destruiu minha compostura. Mas tudo o que fiz foi endireitar a postura e assentir.
— Às sete.
— Estarei aqui.
Ele me observou mais um instante. Um silêncio que dizia coisas que palavras não teriam coragem de pronunciar. Então apenas assentiu, de leve.
Entendi. Estava dispensada.
Caminhei até a porta. Toquei a maçaneta com dedos firmes. Não olhei para trás.
Quando saí da sala de vidro, as pernas ameaçaram ceder, mas o coração batia firme. Eu tinha entrado naquele escritório como uma aposta. E saía de lá como um nome gravado — mesmo que ainda em rascunho — no projeto de algo muito maior.
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Atualizado até capítulo 58
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