Capítulo 2

Acordo como se ontem nunca tivesse existido. Como se a palavra “malformação” não estivesse martelando no fundo do meu cérebro, e o aviso de “você pode morrer a qualquer momento” não estivesse colado na minha testa como post-it desesperado.

Mas eu escolho ignorar. Pelo menos por enquanto.

Se tem uma coisa que eu aprendi com a vida é que a gente não pode parar. Mesmo quando o mundo gira errado, você tem que continuar. E eu continuo. Porque o que eu quero agora é um milagre. Ou dinheiro, o que vier mais rápido.

Me arrasto até o banheiro e ligo o chuveiro no gelado, quase um ritual de sobrevivência. A água gélida me desperta com violência, como se dissesse: “Ei, você ainda tá viva, então se mexe!”

Me encaro no espelho. Pele pálida, olheiras gritando, expressão de quem foi atropelada por um trem chamado Realidade. Ótimo.

Respiro fundo, passo base, corretivo, blush, delineador — quase uma operação estética de emergência. Maquiagem feita, armadura posta. Agora sou a Bruna profissional, irônica e imbatível. Ninguém precisa saber que por trás disso tudo tem uma garota com o coração literalmente em colapso.

Escolho uma roupa: colete preto, calça social cinza, e tênis branco. Elegante o bastante pra parecer CEO de mim mesma, confortável o suficiente pra correr caso o mundo desabe (de novo). Prendo meus cachos num coque alto e encaro o espelho uma última vez.

— Que comece mais um episódio dessa série que se recusa a ser cancelada — digo pra mim mesma, com um sorriso torto.

Arrumo o quarto, porque bagunça externa alimenta caos interno, e saio. A casa está silenciosa, o que significa uma coisa: minha tia não dormiu em casa.

Pego o celular e mando mensagem:

“Sobreviveu à caçada do cowboy ou fugiu com ele pra outro estado?”

Dois segundos depois, ela responde:

“Dormiu aqui não, more. Mas acordei melhor que nunca 😘”

Sorrio. A mulher é um evento. Provavelmente está tomando café com glitter em algum lugar, dizendo para um estranho que é dançarina aposentada da Broadway. Ela sempre inventa alguma coisa. É impossível ficar triste por muito tempo quando se vive com um furacão de salto alto.

Pego as chaves do meu carro — um HB20 guerreiro, meu batmóvel dos tempos modernos — e sigo rumo à Hermes, a empresa onde trabalho há sete anos. Sete. Anos.

Entrei como estagiária, tomando café ruim e levando bronca até por respirar fora do ritmo da firma. Hoje, sou o braço direito do CEO. E que braço forte, diga-se de passagem. Me tornei essencial. Me tornei indispensável. Me tornei... um pouco viciada nisso.

Porque no meio de uma vida incerta, o trabalho é o único lugar onde tenho algum controle. Onde posso ser sarcástica sem culpa, resolver pepinos como se fossem desafios de um reality show e lidar com Lorenzo — o chefe mais insuportável e ao mesmo tempo fascinante do planeta.

Lorenzo é feito de aço escovado, sotaque italiano e olhos que te examinam como se pudessem desmontar tua alma em partes. Herdeiro de uma fortuna, arrogante até a raiz do cabelo, e ainda assim... existe algo nele. Algo que não se explica.

Conheci o pai dele antes de tudo desandar. Um senhor elegante, firme, mas com um sorriso que parecia guardar segredos. A morte dele foi um baque — e um mistério. Encontrado morto no escritório da Hermes, sem sinal de violência, sem bilhete, sem explicação.

Ricos. Sempre têm passados tão limpos quanto suas roupas de marca... e tão sujos quanto os bastidores que escondem.

Estaciono em frente ao prédio de vidro fumê da Hermes, ajeito o coque com a dignidade de uma guerreira e respiro fundo.

— Vamos lá, coração... aguenta mais um dia.

E entro no campo de batalha com salto imaginário, sarcasmo carregado e a força de quem sabe que o tempo está correndo — mas ainda assim, se recusa a parar.

Cumprimento Ariane na recepção com um aceno rápido. Ela me oferece um sorriso gentil e preocupado — talvez meu “bom dia” não tenha saído tão convincente quanto imaginei. Sigo até o elevador, apertando o botão com a elegância exausta de quem sobreviveu a um apocalipse emocional e ainda está com o batom intacto.

Quando as portas começam a se fechar, eu o vejo.

A silhueta imponente atravessando o saguão com a calma de quem sabe que o mundo gira ao redor do próprio eixo — ou melhor, ao redor dele. Terno impecável, relógio que custa mais que meu carro e aquele andar que mistura poder e desprezo em medidas exatas. Lorenzo.

Ao lado dele, claro, Davi Nunes — o braço esquerdo, o escudeiro, o irmão de alma. Cresceram juntos, enfrentaram internatos e negócios de família. Onde um está, o outro está logo atrás, sempre com alguma piada ou comentário afiado.

Seguro o elevador no último segundo.

— Obrigado, senhorita Nogueira — diz Lorenzo, com aquela voz grave, precisa, que parece feita pra dar ordens e arrepiar peles (não que eu vá admitir isso em voz alta).

— De nada — respondo, firme, educada, sem perder a compostura.

— Bom dia, Bruninha. Dormiu bem? — pergunta Davi com um sorriso doce demais pra ser permitido antes das nove da manhã.

Reviro os olhos e lanço meu melhor olhar de censura. O tipo que diz: "Nem ouse bancar o irmão mais novo fofo comigo agora, Davi."

Ele sorri ainda mais. A audácia tem nome e sobrenome.

— Dormi muito bem, obrigada — respondo com a calma sarcástica de quem passou a noite encarando o teto e dialogando com a própria ansiedade.

Seguimos em silêncio pelo resto do trajeto. Mas não é um silêncio qualquer. É o silêncio Hermes: carregado de tensão, subentendidos e aquele leve perfume amadeirado que Lorenzo sempre usa — e que, irritantemente, fica grudado no elevador como provocação.

Assim que as portas se abrem, cada um segue para sua respectiva sala. Eu caminho com passos firmes, mesmo que meu coração esteja pedindo socorro em código Morse.

Trabalho. É nisso que vou focar. Porque se tem algo que me salva todos os dias é saber que aqui dentro, eu sou boa. E ninguém — nem mesmo o Lorenzo e seus olhos de raio-X — vai perceber que estou quebrando por dentro.

Não hoje.

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