BIANCA
O pátio estava decorado demais para um lugar que vive de giz e promessas. Balões brancos e azuis, palco improvisado, microfones com falhas técnicas e professores tentando parecer menos cansados que de costume.
— Você vai apresentar os alunos destaque no fim da cerimônia — avisou a coordenadora, ajustando os óculos.
Meus pés congelaram no lugar.
— Eu?
— Sim. Confio em você. Tem boa oratória e... — ela baixou a voz —... o “benfeitor” do patrocínio vai estar presente. Vamos causar boa impressão.
O “benfeitor”.
Meu estômago virou.
Quando ele chegou, tudo em mim apertou.
Santiago.
A multidão parecia se afastar naturalmente para dar passagem à sua presença. Ele estava impecável. Paletó preto, olhos mais verdes do que eu lembrava, expressão entediada como quem assiste a um espetáculo abaixo das suas expectativas. Mas bastou nossos olhos se cruzarem, e ele... sorriu.
Aquele meio sorriso inclinado.
Aquele que parecia dizer “eu me lembro de você, e sei que você se lembra de mim.”
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SANTIAGO
Ela estava no palco.
A mesma garota de olhos intensos, segurando um microfone com mãos firmes demais para uma garota que deveria apenas estar estudando.
A voz dela preencheu o espaço com uma doçura que ninguém ali parecia notar. Mas eu notei. Cada palavra soava como poesia mal contida.
— Gostaria de agradecer, em nome dos alunos, ao senhor Ravelli, pelo apoio ao nosso futuro — disse ela, os olhos sem piscar nos meus.
Ela me provocava. Sem saber.
Ou talvez soubesse. E isso era ainda mais perigoso.
Ao final da cerimônia, cruzei o caminho até ela com passos lentos. Como quem já sabe que vai provocar uma guerra ao chegar.
— Agora seu nome faz mais sentido, Bianca — murmurei.
Ela levantou o rosto, sem recuar.
— O senhor gosta de ser cortejado em público?
Soltei uma risada curta. Surpresa e vício ao mesmo tempo.
— Não. Gosto de ser provocado por alguém que sabe exatamente o que está fazendo.
Os olhos dela vacilaram por um segundo. Mas não cederam.
Ali, entre flores plásticas, diretoria fingindo cortesia e fotógrafos distraídos, algo mais silencioso — e violento — nascia entre nós.
Desejo.
Fúria.
Perigo.
A NOITE
BIANCA
O cheiro veio antes da dor.
Abri a porta do apartamento com uma das chaves tortas que sempre emperravam na fechadura, carregando a bolsa caída no ombro e a cabeça cheia do dia. Só queria tomar um banho, deitar com meu caderno e esquecer o nome dele — Santiago. Mas o destino me ensinaria que existem tragédias que não pedem licença.
A televisão estava ligada. As luzes apagadas. O cinzeiro transbordava.
— Pai...? — chamei, a voz quase falhando.
Nenhuma resposta.
Meus olhos correram pelo sofá. As pernas dele pendiam pesadas sobre o tapete. A cabeça caída. Os dedos imóveis ao lado de uma seringa.
O tempo parou.
Meu corpo quis correr, mas a alma ficou presa.
— Pai! — gritei, ajoelhando ao lado dele, sacudindo o ombro com desespero, como se a vida pudesse voltar com força de vontade. — Pai, por favor...
Nada.
O som que preencheu o silêncio foi apenas o do meu choro rasgado, sem elegância, sem controle. Só dor. Dor demais para caber em alguém tão jovem, tão cansada.
Liguei para a ambulância sem pensar. Mas no fundo, eu sabia. Ele já não estava mais ali.
Horas depois...
Na sala fria do hospital, alguém me entregou uma sacola com os poucos pertences dele. Um isqueiro, uma carteira vazia, e um papel amassado com anotações de dívidas vencidas. Nada mais. Nenhuma herança. Nenhum alívio.
Eu estava oficialmente sozinha.
Sem mãe.
Sem pai.
Sem dinheiro para o velório.
Fiquei sentada na calçada por horas, abraçada aos joelhos, tentando entender como a vida podia tirar tudo assim — de uma vez. E foi ali, naquela madrugada suja e úmida, que senti uma presença.
E, como se fosse parte do destino desde o começo, ele apareceu.
Santiago Ravelli.
Seu carro estacionou diante de mim como uma sentença. Ele saiu devagar, terno impecável, expressão sem surpresa. Como se já soubesse.
— Bianca — disse, com a voz grave e contida.
Levantei os olhos vermelhos e cansados.
— Como você soube? — sussurrei.
— Eu sempre sei... quando alguém importante pra mim sofre.
E, pela primeira vez, eu não o odiei por ter poder.
Eu só desejei que aquele poder me protegesse do mundo — nem que fosse por uma noite.
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Atualizado até capítulo 50
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