" vidas perdidas"

Espelhos Partidos

Prólogo — G. Sandles

"A liberdade tem muitos rostos. Alguns ferem, outros salvam."

Alicia correu.

A plataforma da estação estava quase vazia, tomada pela névoa da manhã e pelos sons mecânicos do trem prestes a partir. O capuz escondia os cabelos desgrenhados, os olhos fundos e os lábios rachados. Carregava uma mochila leve — e um mundo inteiro de dor nas costas.

Seu corpo tremia, mas ela não parava.

Não podia.

Tinha fugido de novo. Mas, dessa vez… não havia para onde voltar.

Seu marido não batia em público. Ele sabia como e quando ferir. Dizia que ela era louca. Que ninguém a ouviria. Que ninguém a ajudaria.

E ele quase estava certo.

Mas ela correu mesmo assim.

Sem destino.

Apenas com o desejo absurdo de viver.

Na mesma estação, a poucos metros dali, Isabel descia de um carro preto com ar-condicionado e música alta. Ela vestia uma jaqueta de couro cara, óculos escuros e um sorriso que não alcançava os olhos. Era bonita. Jovem. Livre.

Tinha deixado para trás um marido que a amava, uma filha pequena que dormia com uma boneca feita à mão, e uma casa com cheiro de bolo e lençóis limpos.

Mas nada disso bastava.

Ela queria mais — mais noites, mais bebidas, mais homens. Mais tudo.

Ser esposa e mãe nunca coube nela.

Ela tentara. Deus sabe que sim.

Mas, no fundo, ela era feita de vento.

E vento não cria raízes.

O bilhete comprado dizia “segunda classe”. Ela odiava isso. Mas estava de ressaca e sem paciência para discutir. Entrou no vagão e colocou os fones de ouvido, ignorando o mundo.

O trem partiu.

Durante os primeiros quilômetros, foi silêncio.

Um silêncio denso.

Como se o destino estivesse respirando fundo...

antes de fazer sua jogada.

A colisão veio num estrondo.

Gritos. Vidro. Chamas.

Fumaça.

Ferros retorcidos. Vidas despedaçadas.

Quando os bombeiros chegaram, havia apenas uma sobrevivente — inconsciente, ensanguentada, com o rosto desfigurado e os documentos de Isabel Nogueira no bolso.

A outra mulher estava irreconhecível. Morta.

Sem nada que a identificasse.

Dias depois, em um hospital, Alicia acordou.

Dopada. Ferida. Confusa.

— Isabel… está me ouvindo? — disse uma enfermeira, com ternura na voz.

Ela tentou protestar. Mas sua boca não respondeu.

Seu corpo parecia alheio.

Naquela mesma manhã, uma menina de olhos castanhos entrou no quarto. Segurava uma boneca pela perna, arrastando-a como quem já sabia do peso do abandono.

— Mamãe?

Alicia olhou para a menina.

Algo apertou dentro do peito.

Não era sua filha.

Mas o olhar... o olhar era.

A imprensa divulgou:

“Jovem mãe sobrevive a acidente trágico de trem. Isabel lucchese segue hospitalizada sob cuidados especiais. Família aguarda com esperança.”

Na cidade pequena onde Isabel morava, Dante lucchese aguardava. No fundo com o coração na mão

Um ex-fuzileiro. Treinado para reconhecer mentiras.

Mas vulnerável ao amor.

E à esperança de que Isabel estivesse viva.

Alicia não sabia o que fazer.

Dizer a verdade? Ser internada, presa, julgada?

Ou aceitar aquela nova vida que, mesmo sendo um engano, era também um abrigo?

Aquela menina chamava por amor.

A casa tinha cheiro de paz.

E talvez, apenas talvez… aquele homem ainda soubesse amar.

Mas quanto tempo uma mentira pode ser sustentada…

quando a verdade já está viva e caminhando em sua direção?

****

Espelhos Partidos — G. Sandles

A cidade estava quieta demais para quem carrega tanto ruído por dentro.

O vento soprava pelas vielas estreitas, misturando o cheiro de terra molhada com lembranças.

Aquela hora da noite era a única em que eu conseguia respirar.

Meu nome é Dante Lucchese.

E se você está esperando um herói, pode parar por aqui.

Na infância, fui espancado por um homem que insistia em se chamar de pai.

Vi aquele desgraçado bater na minha mãe com a mesma facilidade com que acendia um cigarro.

Pior que os socos, eram as humilhações.

Ele a obrigava a sair com outros homens — só pelo prazer de destruí-la.

Quando ela tentou fugir comigo, ele a encontrou.

E o que fez...

Quebrou o braço dela de um jeito que o osso estufou sob a pele — como se tentasse escapar também.

Na última surra, ela me empurrou para trás, tentando me proteger.

Morreu nos meus braços.

Foi ali que prometi:

nunca mais seria fraco.

Fui para o exército porque precisava de disciplina.

Ou talvez só de um lugar onde minha raiva tivesse alguma utilidade.

Ele dizia que assim eu me tornaria homem.

Na verdade...

me tornei uma máquina de matar.

Quase matei aquele desgraçado antes de partir.

Só não o fiz porque precisava de uma ficha limpa para ser aceito.

Mas...

não posso dizer o mesmo depois.

Quando conheci Isabel, por um tempo, eu acreditei que talvez... só talvez... houvesse redenção para monstros como eu.

Mas a vida adora nos lembrar quem realmente somos.

E ela se foi.

Simplesmente partiu.

Deixando para trás uma garotinha de três anos chamando pela mãe todas as noites.

Mas ela queria liberdade.

Seis meses atrás, o divórcio saiu.

Ela nunca ligou para saber da filha.

Agora, aqui estou eu...

Segurando o telefone, sem saber se desejo que o inferno a engula ou se devo vê-la no hospital.

O monstro dentro de mim acordou.

O ódio que sinto por essa mulher — só por ter feito minha filha sofrer — é gigantesco.

E o pior...

é que, desta vez...

eu não quero segurá-lo.

E agora ela está ali.

Dizendo que é minha mulher.

Olhando para minha filha.

E sorrindo como se nada tivesse acontecido.

Mas eu nunca fui bom em esquecer.

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