A madrugada se arrastava pelas paredes do palazzo como uma sombra viva. A tempestade havia cessado, mas o silêncio que restava era ainda mais barulhento. Luna sentava-se na beira da cama, com o caderno da mãe aberto sobre as pernas e os olhos fixos nas palavras que mudariam tudo.
“A serpente não devora sozinha. Ela protege o ninho, mesmo que o ninho esteja sujo.
A corrupção que eu denunciei vai além das fronteiras. Não confie nos uniformes.
A verdade está onde ninguém olha: na família.
Se algo me acontecer, Dante saberá onde me encontrar.”
Dante.
O nome queimava em sua mente como um açoite.
Sua mãe confiava nele? Ou apenas sabia que ele estava no centro da teia?
As páginas estavam cheias de anotações, datas e locais. Algumas em português, outras em italiano. Havia nomes de políticos conhecidos, empresários brasileiros e até uma fundação social no Rio de Janeiro com o selo da Famiglia Moretti Onlus. Ironia cruel: caridade patrocinada pelo crime.
Luna não conseguiu dormir. Ao amanhecer, tomou um banho rápido, prendeu os cabelos e desceu para o salão principal. Não havia ninguém. Exceto ele.
Dante estava no jardim interno, vestindo uma camisa branca dobrada nos cotovelos e calça escura. Estava sozinho, parado diante de uma estátua de mármore que retratava uma mulher ajoelhada, com uma serpente em volta do pescoço. As mãos dele estavam fechadas nas costas, o semblante duro.
— Sua mãe costumava vir aqui — disse ele, sem olhar para trás. — Ela gostava de conversar com essa estátua. Dizia que a serpente representava o poder que sufoca, mas que também pode libertar, se soubermos como usá-lo.
Luna se aproximou devagar.
— Você conheceu mesmo minha mãe... ou está apenas manipulando a memória dela?
Dante virou-se lentamente. Seu rosto estava cansado, mas os olhos… aqueles olhos sempre estavam alerta.
— Sua mãe era inteligente. Corajosa. E, por isso, perigosa. Ela sabia demais. E tentou fazer o certo... em um lugar onde o certo é sinônimo de sentença de morte.
Luna cruzou os braços.
— E você? É só mais uma peça no tabuleiro?
— Eu sou o tabuleiro.
A resposta a surpreendeu. Não pela arrogância, mas pela sinceridade. Havia algo em Dante que a deixava desconcertada — uma mistura de poder, dor e lucidez. Ele não era apenas um mafioso. Era um sobrevivente de um mundo que ela mal começava a compreender.
— Por que ela escreveu no diário que você saberia onde encontrá-la?
Dante suspirou. Deu um passo à frente.
— Porque ela me contou que, se tudo desse errado, deixaria pistas para você. Ela acreditava que você era forte o suficiente para terminar o que ela começou.
— Eu não sou minha mãe.
— Não. — ele respondeu, com um sorriso quase imperceptível. — Você é ainda mais teimosa.
Luna cerrou os punhos.
— Eu quero a verdade. Toda. E você vai me contar. Ou eu vou arrancar de outra forma.
Ele caminhou até uma mesa de ferro sob a pérgola, pegou uma pequena caixa de madeira e abriu. Lá dentro, cigarros artesanais. Acendeu um com calma, como se fosse um ritual. Depois, estendeu a caixa a ela. Luna recusou com um olhar.
— A verdade é uma faca de dois gumes, Luna. Pode cortar o inimigo... mas também quem empunha.
— Eu quero correr esse risco.
— Então sente-se.
Ela hesitou por um segundo, depois se sentou à frente dele, mantendo a postura ereta e os olhos atentos.
— Há dez anos, meu pai foi assassinado. Disseram que foi um acerto de contas. Mas não foi. — Dante começou. — Ele tentou sair da máfia. Queria transformar tudo em algo legítimo. Criar uma fundação, ajudar os bairros mais pobres da Calábria e do Brasil. Acharam que ele estava ficando fraco.
Que era uma ameaça. E o mataram. Minha mãe morreu dois meses depois. Oficialmente, de overdose. Mas eu sei que foi envenenada.
— Quem fez isso?
Dante olhou para o jardim, como se visse fantasmas.
— O próprio sangue. Meu tio Marco. E alguns aliados do governo brasileiro que usavam a máfia como intermediária para lavagem de dinheiro e tráfico de influência.
— Isso é monstruoso.
— Bem-vinda ao meu mundo.
Silêncio.
Luna engoliu seco.
— Então por que você faz parte disso?
— Porque sair vivo exige pactos com o diabo. Eu fingi lealdade. Subi na hierarquia. E agora sou herdeiro de um império que eu odeio. Mas se quero mudá-lo...preciso parecer que sou parte dele.
Luna o encarou por longos segundos.
— Então por que me trouxe aqui? Por que o casamento? O sequestro?
Dante apagou o cigarro. Sua voz soou mais baixa.
— Porque eles estavam te caçando. O nome da sua mãe voltou aos arquivos dos traidores. Você era a próxima. Eu fiz o único acordo que te manteria viva.
Tornar você uma Moretti. Nem que fosse só no papel.
— Então isso tudo é só... encenação?
— O casamento é real. Os sentimentos... não sei ainda.
Luna corou, mas disfarçou com raiva.
— Não pense que uma aliança vai me transformar em cúmplice.
— Eu não quero uma cúmplice, Luna. Quero uma aliada. Alguém que me ajude a derrubar esse império... por dentro.
Luna levantou-se devagar. A cabeça girava. A raiva, a confusão, o medo. Mas no fundo… algo nela queimava. Um senso de justiça herdado, talvez. Ou a semente de algo novo.
— Eu vou pensar.
— Pense rápido. — ele disse. — O casamento será em dez dias. E eles já desconfiam que você tem algo da sua mãe.
Ela o encarou uma última vez antes de sair.
No corredor, sentiu as pernas tremerem.
Dante Moretti não era apenas seu inimigo.
Era o único homem capaz de salvá-la.
Ou destruí-la por completo.
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Atualizado até capítulo 44
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