Felipe

O despertador toca às 5h30, como sempre. Levanto, tomo um banho frio e visto um terno cinza-escuro, impecável, como minha vida deve ser. A casa está silenciosa, exceto pelo latido baixo de Mingau, a cachorrinha de Luana, em algum lugar no andar de baixo. Penso nela por um segundo — Luana, não a cachorra. A imagem dela nadando na piscina ontem, rindo sozinha, com água brilhando na pele, não sai da minha cabeça. Sacudo a cabeça, irritado comigo mesmo. *Foco, Felipe.*

Na cozinha, Rosa já está preparando o café. Ela me cumprimenta com aquele sorriso maternal que sempre me deixa desconfortável. Não estou acostumado com calor humano.

— Bom dia, Sr. Felipe. Dormiu bem? — ela pergunta, colocando uma xícara na minha frente.

— Como sempre — respondo, seco, tomando um gole. Não durmo bem há anos, mas ninguém precisa saber disso. Meus olhos vagam pela janela, onde vejo Luana no jardim, brincando com Mingau. Ela está de short e camiseta, o cabelo preso num rabo de cavalo bagunçado, rindo enquanto a cachorra corre atrás de uma bola. Por que ela parece tão... viva?

— A Sra. Luana é uma graça, não é? — Rosa comenta, seguindo meu olhar. — Ela passou a manhã ajudando na cozinha ontem. Nunca vi uma patroa descer do salto assim.

— Ela não é patroa. É só... — Paro, sem saber como terminar. Minha esposa? Minha responsabilidade? Um erro que meu pai me obrigou a cometer? — Esquece.

Rosa sorri, como se soubesse algo que eu não sei, e volta pras panelas. Termino o café e sigo pro escritório. O dia é cheio: reuniões com investidores, relatórios pra revisar, e a voz do meu pai, Paulo, ecoando na minha cabeça. *Você precisa de uma esposa, Felipe. Alguém que mostre estabilidade. Nossos parceiros não confiam em um solteiro sem raízes.*

Paulo. Sempre ele. O homem que construiu um império e me criou pra ser sua extensão, não seu filho. Ontem, depois do casamento, ele me ligou. A voz fria, como sempre.

— Não estrague isso, Felipe — ele disse. — Essa garota é sua chance de mostrar que você é mais que um playboy. Se ela te abandonar, ou se você falhar, pode esquecer a presidência da empresa.

— Eu não falho — respondi, apertando o telefone. Mas a verdade é que ele sempre encontra um jeito de me fazer sentir pequeno. E agora, Luana é mais uma peça no tabuleiro dele.

---

No meio da tarde, Diego aparece no escritório, jogando-se no sofá com aquele sorriso de quem sabe que me irrita.

— E aí, casadão? Como tá a vida de homem comprometido? — ele provoca, mexendo no celular.

— Igual a antes, só com mais barulho de cachorro — respondo, sem tirar os olhos do laptop.

— Sei. E a Luana? Já derreteu esse seu coração de pedra? — Ele ri, mas há algo sério nos olhos dele. Diego me conhece desde a adolescência. Ele sabe que eu não acredito em corações derretendo.

— Ela é um contrato, Diego. Nada mais — digo, mas as palavras soam falsas até pra mim. Penso nela na piscina, no jeito que me chamou de Sr. Iceberg ontem. Ninguém nunca me enfrentou assim. É... desconcertante.

— Contrato, sei. — Diego se levanta, batendo no meu ombro. — Só cuidado, cara. Essa menina tem um brilho que pode te bagunçar.

Eu ignoro, mas a ideia fica. Bagunçar. Eu não me bagunço. Nunca.

---

No fim do dia, recebo uma mensagem de Carla. *“Preciso te ver. Urgentemente. No meu apartamento, 20h.”* Reviro os olhos. Carla é uma complicação que eu não preciso agora, mas ela tem o dom de aparecer nos piores momentos. E, contra meu bom senso, eu vou.

O apartamento dela é puro luxo, como sempre. Velas acesas, música baixa, e ela me esperando com um vestido preto que não deixa nada pra imaginação. *Ela se aproxima, o perfume doce demais invadindo o ar. “Saudade de você, Felipe,” ela murmura, deslizando as mãos pelo meu peito. Eu deveria empurrá-la, dizer que agora sou casado, mas a verdade é que não sinto nada além de vazio. E o vazio é familiar. Seguro a cintura dela, puxando-a pra mim. *Os beijos são urgentes, quase raivosos, como se ela quisesse marcar território. Roupas caem no chão, e logo estamos na cama, os corpos se movendo num ritmo que não tem nada de amor, só necessidade. *Ela geme meu nome, mas eu mal ouço. Minha mente está em outro lugar — na risada de Luana, no jeito que ela olhou pra mim ontem, como se pudesse ver através da minha armadura.*

Quando terminamos, Carla se deita ao meu lado, traçando círculos no meu peito. — Você não vai ficar com essa garotinha pra sempre, né? — ela pergunta, a voz carregada de veneno. — Ela não é nada, Felipe. Só uma caipira que sua mãe escolheu.

— Meu pai — corrijo, me levantando e vestindo a camisa. — E não é da sua conta, Carla.

— É sim — ela retruca, sentando-se na cama. — Eu te amo, Felipe. Sempre amei. E você sabe que ela nunca vai ser o que eu sou pra você.

Eu paro, a mão na maçaneta. — Você não é nada pra mim, Carla. Nunca foi. — As palavras saem mais duras do que pretendo, mas são verdadeiras. Ela fica em silêncio, os olhos brilhando com lágrimas que sei que são mais raiva do que tristeza.

Saio sem olhar pra trás.

---

Quando chego em casa, a chuva voltou, batendo forte nas janelas. A mansão está quieta, mas vejo uma luz na sala. Luana está lá, encolhida no sofá, Mingau no colo. Ela está com um pijama velho, o cabelo molhado, e parece... pequena. Vulnerável. Algo aperta no meu peito, mas eu empurro a sensação pra longe.

— Você tá molhando o sofá de novo — digo, parando na porta.

Ela levanta o olhar, surpresa, e sorri de leve. — Desculpa, Sr. Iceberg. Prometo secar tudo amanhã.

O apelido de novo. Não sei por que, mas ele não me irrita tanto quanto deveria. — Por que tá acordada? — pergunto, me aproximando.

— Não conseguia dormir — ela responde, acariciando Mingau. — Essa casa é grande demais. E... silenciosa. Tô acostumada com o Zayn gritando e a Mingau bagunçando tudo.

Eu me sento no outro canto do sofá, mantendo distância. — Você vai se acostumar.

— Será? — Ela me encara, os olhos grandes e sinceros. — E você, Felipe? Tá acostumado com isso? Comigo aqui?

A pergunta me pega desprevenido. Eu deveria dizer que sim, que ela é só parte do plano. Mas, por algum motivo, as palavras não saem. Em vez disso, digo: — Não. Mas eu não me acostumo com nada. É mais fácil assim.

Ela ri, um som baixo, quase triste. — Você é tão... complicado. Sabe que pode sorrir de vez em quando, né? Não vai te matar.

— Não conte com isso — retruco, mas há um traço de humor na minha voz que nem eu reconheço. Ela sorri de novo, e por um segundo, o vazio dentro de mim parece menor.

— Boa noite, Sr. Iceberg — ela diz, se levantando com Mingau nos braços.

— Boa noite, Luana — respondo, e fico olhando enquanto ela sobe as escadas, o som da chuva abafando meus pensamentos. Pela primeira vez em muito tempo, não sei o que sinto. E isso me assusta mais do que qualquer coisa.

Mais populares

Comments

Cida Santos

Cida Santos

A Luana esta começando a derreter o gelo

2025-06-05

0

Cida Oliveira Alves

Cida Oliveira Alves

q cara babaca traíra

2025-06-13

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!