O número desconhecido

O número desconhecido tocou novamente. A vibração do telemóvel quebrou o silêncio do carro como uma sirene distante. Ji olhou o visor. Pela terceira vez, aquele mesmo número.

Dessa vez, atendeu.

— Alô? Olhe, acho que está a ligar para o número errado e também... — começou, já preparado para desligar.

Mas foi interrompido.

— Sou eu, filho.

A voz era grave, pausada, com uma rouquidão que Ji não ouvia há anos. O silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor do que qualquer discussão que pudessem ter tido.

Ji ficou paralisado por um segundo. A mão apertou o celular com mais força.

— O quê...? — sussurrou, quase sem voz. — Pai?

Do outro lado da linha, silêncio. Mas não o silêncio vazio de antes. Era um silêncio carregado. De coisas que não foram ditas. De presenças ausentes. De uma história inacabada.

— Preciso de falar contigo. Amanhã. Rua da Liberdade, número trinta e um. Às dez.

— Porquê agora? — disparou, a voz trémula entre a raiva e o espanto. — Passaram-se tantos anos.

— Porque agora é a tua vez de escolher. — respondeu simplesmente.

A chamada terminou.

Ji ficou com o telefone na mão, o ecrã escuro. Como o céu. Como o passado. Como tudo o que tinha deixado em suspenso.

O nome que nunca dissera em voz alta. O homem que era metade de quem ele era. Estava de volta.

E ele sabia, no fundo, sempre soube, que esse dia ia chegar.

— É bem cara dele fazer esse tipo de coisa!

No dia seguinte, Ji acordou antes do despertador tocar. Passou a madrugada a ouvir o tique-taque invisível da ansiedade. Não dormiu, apenas fechou os olhos, por momentos, tentando convencer-se de que aquilo era uma má ideia. E, ainda assim, vestiu-se, pegou nas chaves, e saiu.

Foi ao encontro com um pé atrás. Um mundo inteiro de pés atrás.

A Rua da Liberdade ficava no centro antigo da cidade. Prédios baixos, fachadas restauradas, cafés ainda fechados a essa hora da manhã. O número 31 era uma antiga casa convertida em escritório. Portas altas, madeira escura, um intercomunicador antigo com botões gastos. Ji parou diante da entrada. Respirou fundo. Tocou à campainha. A porta destrancou com um estalido seco. Entrou.

O cheiro era o mesmo de outros tempos, uma mistura de tabaco velho, couro e café frio. Como se o tempo ali dentro tivesse parado à espera dele. E então, lá estava ele.

Sentado num cadeirão junto à janela, com um casaco de cabedal escuro e os olhos fixos em Ji, como se já o tivesse visto entrar mil vezes em sonhos que nunca contou a ninguém.

O mesmo rosto de traços duros. Cabelos grisalhos nas têmporas. Rugas vincadas como mapas de uma vida sem descanso.

— Você veio. — falou, sem se levantar.

Ji manteve-se de pé, sem saber se estava a sentir raiva, desconforto ou apenas cansaço.

— Disse que vinha. — respondeu, curto.

O pai assentiu.

— Preciso da tua ajuda. E tu precisas da minha.

Ji cerrou os dentes.

— E só por isso decide lembrar que tens um filho?

O silêncio entre eles foi denso.

O pai levantou-se devagar. Caminhou até uma mesa baixa e abriu uma pasta.

De lá, retirou um envelope grosso e uma folha de papel.

— Isto vai pagar a clínica da tua mãe. — pousou o envelope sobre a mesa. — Mas tem um preço. E um nome.

Ji olhou o envelope. Depois, os olhos do pai.

— Que nome?

O pai empurrou-lhe o papel.

Uma palavra escrita em letras grandes e pretas.

SALVATORE.

Ji não tocou no envelope. Os dedos ficaram tensos ao lado do corpo, como se bastasse um gesto para tudo explodir.

Olhou fixamente para o homem à sua frente, aquele que um dia chamara de pai, e que agora mais parecia um estranho com um plano.

— Não confio em você. — falou, a voz firme, embora baixa. — Por que ajudaria de repente? Depois de anos sem aparecer, sem perguntar nada sobre mim, sobre ela?

O pai manteve-se imóvel por um momento. Depois, respirou fundo, afastando um pouco a cadeira para o lado.

— Porque estou a tentar consertar o que posso antes que seja tarde. — respondeu, com um olhar que não desviava. — E porque esta situação... — apontou para o papel com o nome “Salvatore” — Pode servir os dois.

Ji deu um passo em frente, quase sem perceber.

— E quem é esse Salvatore? Por que está me metendo nisso?

O pai passou a mão pelo rosto, como quem carrega o peso de várias décadas nas pálpebras.

— Salvatore é um homem perigoso. Não aparece em lado nenhum, mas comanda mais do que se imagina. Tem uma filha doente. Precisa de um médico. Um que saiba calar a boca e fazer o que lhe mandam. — Fez uma pausa. — E eu preciso de alguém lá dentro. De alguém de confiança.

— Confiança? — Ji riu sem humor. — Ainda sabes o que isso significa?

— Sei. E por isso escolhi você. Porque sei que não és como eu.

O silêncio ficou entre os dois, pesado e amargo.

— O que queres de mim… é ilegal? — perguntou Ji, já conhecendo a resposta.

O pai não respondeu de imediato.

— O que quero de ti é simples: cuida da filha dele. Ganha o acesso. E quando te pedirem para confiar... confia em mim, uma vez na vida.

Ji olhou para o envelope. Dentro, o preço da dignidade. Ou talvez o valor da vida da mãe.

Ji mantinha o olhar fixo, como se quisesse furar a couraça daquele homem com os olhos. As palavras saíram duras, mas contidas.

— Por que eu? — deu um passo em frente, a voz carregada de raiva e incredulidade. — Você não é policial? Por que não envia um dos seus? Por que mete o seu próprio filho em algo tão perigoso?

O pai não se mexeu. O silêncio antes da resposta foi quase ofensivo.

— Porque nenhum dos meus tem acesso como tu.

— respondeu. — É um médico. Um bom médico. Discreto. Impecável. Consegues entrar onde nenhum agente entraria vivo.

Ji riu, mas era um riso curto, vazio.

— Então é isso? Me usar como isca? Como infiltrado?

— Usar você como solução. — respondeu, com frieza. — A única pessoa que Salvatore aceita dentro daquela casa… é alguém que ele próprio escolha. E ele pediu referências. Alguém de confiança, mas sem passado criminal. Alguém com cara limpa.

Ji sentiu o sangue a pulsar nas têmporas. A cabeça cheia. O coração dividido.

— E se eu disser que não?

O pai assentiu, lento.

— Leva a tua mãe para casa. Pagas o que conseguir. E ver ela definhar, dia após dia, até não reconhecer mais ninguém.

Ji fechou os olhos por um instante. Lá estava o peso da escolha. O tipo de escolha que nunca é justa, porque já vem envenenada de origem.

Quando voltou a abrir os olhos, a expressão tinha mudado.

— Uma condição. — falou.

O pai ergueu o sobrolho.

— Fala.

— Depois disto... desaparece da minha vida. De vez.

O pai encarou-o com olhos cinzentos, cansados, mas não respondeu.

Apenas estendeu o envelope e E Ji pegou nele.

— O que tenho que fazer e quanto vou ganhar?

Ji segurava o envelope, mas ainda não o tinha aberto. Olhou-o por um segundo, depois ergueu os olhos para o pai. A voz saiu fria e prática.

— O que tenho que fazer e quanto vou ganhar?

O pai não hesitou.

— Vai para Tróia. Será o médico particular da filha de Salvatore. Uma adolescente. Ninguém sabe exatamente o que ela tem e ninguém quer fazer demasiadas perguntas. Vai tratá-la, acompanhá-la, garantir que não morre e ficar calado.

Ji franziu ligeiramente a testa.

— Só isso?

— À superfície, sim. — o pai recostou-se na cadeira. — Mas vai observar. Ouvir. Anotar. E quando for preciso, vai me passar informações. Apenas o que for essencial.

— Informações? — Ji apertou o envelope com mais força. — Isto é espionagem, não medicina.

O pai ignorou a provocação.

— Não quero que faça perguntas. Só quero que sobreviva. Tu e ela. E que a tua mãe tenha a melhor hipótese possível.

Ji inspirou fundo, a mente a girar com tudo o que aquilo implicava.

— E quanto?

O pai deu um número.

Ji não respondeu de imediato. Era muito. Mais do que alguma vez ganhara num ano inteiro. Dinheiro suficiente para pagar a clínica e ainda ter margem para emergências.

Mas naquele instante, o valor parecia tão sujo quanto necessário.

— Quando parto?

— Amanhã. Às oito. Um carro vai buscar. Usa nome falso. Nada de documentos pessoais. É apenas o "doutor" agora.

Ji olhou para a pasta sobre a mesa. Depois, para o pai.

— E se eu morrer lá dentro?

O pai não hesitou.

— Então a tua mãe morre aqui. Se ganhar a confiança desse homem para ser o médico particular da filha dele, já conseguirá o dinheiro. Essa é a primeira meta. Assim que chegar, eles vão testar. Não vão dizer que é uma entrevista, mas é. — Fez uma pausa e apontou-lhe com o queixo. — Já começa com uma vantagem.

Ji franziu o sobrolho.

— Que vantagem?

— Você é asiático. — falou, sem rodeios. — De cara, vai chamar atenção. A filha dele… bem, dizem que ela não fala com ninguém. Mas interessou por você só pelas fotos que mostrámos. Isso já te dá entrada. O resto depende da tua capacidade de ficar calado e parecer confiável.

Ji baixou os olhos. A ideia de estar a ser usado como peça de xadrez fazia o estômago revirar.

— Já mostraram a minha cara a eles? — perguntou, com frieza.

— Claro. — respondeu o pai, como se fosse óbvio. — Tinha que parecer um profissional legítimo. E tu és. Só está a ser colocado onde podes fazer o que sabes e ajudar alguém no processo.

Ji respirou fundo, tentando manter a compostura.

— E se me perguntarem quem me indicou?

— Diz que foi recomendado por um intermediário. Que não conheces o nome. Que te ofereceram bem. E que aceitaste pelo dinheiro.

Ji ficou em silêncio por um longo momento. Depois, com voz controlada.

— Eu vou. Mas o que está a pedir de mim… Tem um preço mais alto do que esse envelope. Só espero que esteja preparado para pagá-lo.

O pai não respondeu. Apenas assentiu.

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