Capítulo 02

  Quando eu e a Thalita chegamos na França… tava frio e o céu era todo cinza. O nome da cidade era Brest. Nunca tinha ouvido esse nome, parecia nome de brinquedo. A Thalita tava de mãos dadas comigo o tempo todo. Ela não falava quase nada, só olhava pra baixo e apertava meu braço com força.

  Eu achei que ia ser igual na Itália, quando a gente ficava com a vovó Tatiane e com a Bisa Rosângela e ganhava panqueca em formato de coração no café da manhã. Mas não foi assim.

  Quando chegamos na casa, a Bisa Rosângela abriu a porta bem devagar, com um sorrisinho no rosto.

— Bem-vindas, meninas — ela disse com a voz suave. — Aqui, vocês vão se tornar mulheres de honra.

  Eu franzi a testa e olhei pra Thalita, que agarrou minha cintura e escondeu o rosto no meu casaco.

— Vovó… o que tá acontecendo? — perguntei, bem baixinho.

  A vovó Tatiane olhou pra mim, séria. Ela usava um vestido escuro e tava com o cabelo todo preso pra cima, elegante.

— A partir de hoje, não é mais “vovó”, Gabriela. — Ela fez uma pausa e disse bem firme: — Agora é Abuela.

  Eu engoli seco. Nem sabia o que era ser “mulher de honra”. Mas a Abuela e a Bisa pareciam levar isso muito a sério.

  E foi assim que tudo começou.

  Aulas. Muitas aulas.

  De etiqueta, de dança, de luta, de línguas, de lógica, de estratégia… Até como andar sem fazer barulho elas ensinavam! Eu tinha sete anos e já tinha mais rotina que muito adulto. Tinha horário até pra dobrar minha escova de cabelo.

  No começo, eu e Thalita só queríamos voltar pra casa. Eu chorava escondido debaixo do cobertor e a Thalita dormia agarrada no meu braço. Mas com o tempo, a gente foi ficando forte. A Abuela dizia:

— Vocês são Amarante. E isso significa algo.

  Quase um ano, conheci três primos. O Hugo, que tinha minha idade. Ele era calado, mas legal. A Sara, um ano mais nova, que falava muito. E a Nathyely, que tinha a idade da Thalita, cinco aninhos, mas parecia um computador ambulante. Ela já sabia digitar sem olhar!

  Nas festas, os tios e tias apareciam, nossa mãe nem vinha. Só nessas datas os netos podiam comer doces. Eu ficava esperando esse dia igual quem espera Papai Noel. A Bisa fazia biscoitos e dizia:

— Aproveitem, mas sem exageros. Mulher de honra não se lambuza.

  Dois anos depois, veio um caminhão de primos de uma vez só! O Luke, que era dois anos mais velho que eu, chegou primeiro. Depois vieram a Ana Clara, o Matt e o Noah, que tinham cinco anos, a Liz de seis, a Lorena e o Eros de oito, e a Pâmela de sete.

  Eu já tava com nove anos e a Thalita com sete. A gente não era mais novata.

  Todos nós treinávamos com a Abuela. Ela era firme, mas dava orgulho quando sorria pra gente no final da aula. De três em três meses, algum tio ou tia aparecia com algo novo: armas, estratégia, história da família, política, sobrevivência…

  A gente aprendia tudo. Mas cada um gostava mais de uma coisa.

  Eu? Eu amava artes marciais. Quando acertava um golpe certo, sentia meu coração bater mais forte, tipo “eu consigo!”.

  A Thalita... nossa. Ela era incrível com facas. Ela tinha mãos pequenas, mas fazia coisas que nem os adultos sabiam fazer.

— Você viu isso?! — eu dizia com os olhos arregalados quando ela fazia um giro com a faca.

  Ela só sorria de canto, toda misteriosa.

  A Nathyely mexia no computador como se fosse brinquedo. Ela fazia códigos, apagava coisas de lugares que eu nem sabia que existiam!

— Isso é magia? — eu perguntei um dia.

  Ela riu e disse:

— É tecnologia.

  A Abuela dizia:

— Estou orgulhosa de vocês, meus pequenos soldados silenciosos.

  E foi aí que tudo começou a fazer sentido. Aquela rigidez... aquela rotina... não era castigo. Era preparação.

  Sobre a mamãe e o papai… bom, a mamãe ligava às vezes. Dizia:

— Como vocês estão? Tá tudo bem?

  Mas eu percebia que era só por obrigação. Ela tava grávida de novo… dois meses só. E eu sentia um medo enorme dentro do peito.

  Medo do que o Afonso podia fazer com a Lara, a nossa irmãzinha mais nova. Medo de que ela passasse por tudo que eu e Thalita passamos.

  Mas agora… a gente tinha a Abuela. A Bisa. E um monte de primos que estavam se tornando mais que família. Estavam se tornando nosso exército silencioso.

  E eu jurei pra mim mesma:

  Nunca mais ninguém ia machucar minha irmã. Nunca mais.

  O treinamento com os primos era… loucura. Mas uma loucura boa.

  A gente tinha um cronograma tão cheio que eu até sonhava com os horários. Acordava com o som de um sino antigo que a Abuela tocava — "clang, clang, clang!" — e sabia que era hora de levantar, arrumar a cama em três minutos e tomar um banho de dois. Se demorasse, ela batia na porta e dizia:

— O inimigo não espera soldado atrasado!

  Depois do café, que sempre era saudável (nada de chocolate), começavam as rotinas. Cada dia da semana tinha uma coisa.

  Segunda era luta.

  O tatame ficava no salão do meio da casa. Eu e Hugo fazíamos dupla porque tínhamos a mesma força. Sara sempre queria me bater, mas ficava reclamando:

— Ai! Você puxa o braço! —

  E eu respondia:

— Não é brincadeira, Sara. Tem que treinar certo!

  A Thalita? Ninguém queria fazer dupla com ela. Nem os meninos.

— Eu não! Ela bate de verdade! — o Matt choramingava.

  A Thalita só dava um sorrisinho e limpava o suor com o braço, toda calma.

Terça era arma branca.

  Facas, adagas, bastões… Cada um tinha que dominar pelo menos três. Thalita já parecia uma mini guerreira, com duas facas presas na cintura.

— Gabi, olha isso! — ela me chamava, e girava uma faca no ar como se fosse mágica.

— Cuidado, menina! — gritou a Abuela uma vez, mas deu um sorriso escondido depois.

  Eu preferia o bastão. Era mais difícil, mas eu gostava do barulho quando ele batia no boneco de madeira.

— Excelente equilíbrio, Gabriela — dizia a Bisa, anotando tudo num caderninho.

Quarta era tecnologia.

  Nathyely brilhava nesse dia. Ela sentava na frente do computador, colocava os óculos e virava outra pessoa.

— Hoje vamos aprender a criptografar uma mensagem — ela dizia com uma voz séria, como se tivesse cinquenta anos.

— O que é crip... cripto... isso aí? — eu perguntei.

— Esconder segredos! — ela piscou.

  Todo mundo queria ficar perto dela, mas ela só deixava quem terminava os exercícios primeiro.

Quinta era idiomas.

  Tínhamos que falar francês, italiano, inglês, espanhol, português, russo, turco e alemão.

— Em silêncio, leiam os códigos — dizia a Abuela, e passava mensagens escritas em outros idiomas.

  Eu era boa no francês e inglês, mas enrolava tudo no espanhol e português.

— Hola Gabriela, como estás? — Eros brincava.

— Estou bem, mas você tá com cheiro de queijo! — eu respondia, fazendo ele rir.

Sexta era estratégia.

  Tínhamos um jogo de guerra com pecinhas, tipo xadrez, mas mais complicado.

— Cada movimento tem consequência — dizia a Bisa, com o dedo apontado pro tabuleiro.

— Se você errar, perde um braço. Se pensar antes, ganha um exército.

  Esses dias deixavam minha cabeça doendo, mas eu gostava do desafio.

— Checkmate, Luke! — falei um dia, e ele cruzou os braços, emburrado.

— Só dei mole porque tava com fome… — ele resmungou.

Sábado era dança.

  Sim, até isso! Dança clássica, valsa, tango.

  A Abuela dizia que uma mulher de honra tem que saber lutar e encantar.

  Thalita odiava.

— Isso é coisa de princesa! — ela reclamava.

— Aí que tá! — disse a Sara. — A gente é tipo princesa ninja!

  Thalita ficou em silêncio, pensativa. E no final do dia... ela dançou. Linda.

Domingo era descanso.

  Mentira. Era quase descanso. A gente só não treinava com armas.

  Era o dia que a Bisa fazia pão caseiro, e os tios ligavam em chamada de vídeo.

— Como estão meus guerreiros? — dizia o Tio Matteo.

— Quem já quebrou dente essa semana? — zoava o Tio Evan.

  Tinha dias que eu estava cansada, com as pernas doendo, com vontade de chorar. Mas olhava pra Thalita, suada e determinada, e lembrava:

— A gente tá ficando forte. A gente tá ficando livre.

  E a Abuela dizia:

— Um dia, todos vão saber quem vocês são. Mas por enquanto... continuem em silêncio. Guerreiros bons se revelam na hora certa.

  E eu sentia... lá no fundo, mesmo sendo criança... que um dia a gente ia fazer algo grande.

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