O Justo Entre Vermes

Caxias do Sul acordou num silêncio estranho naquele dia. Não era feriado, nem jogo da Seleção, nem dia de paralisação da Serra Gaúcha. As buzinas, que geralmente entoavam uma sinfonia nervosa logo cedo, estavam caladas. As rádios tocavam louvores antigos, mas sem os comerciais barulhentos de colchões, óticas ou planos funerários. E o céu... O céu parecia mais baixo, como se tivesse descido um pouco pra espiar o que acontecia por ali.

Mas não foi isso que acordou o Bira. O que fez ele pular da cama, com o peito arfando e o rosto suado, foi o pesadelo. Sonhou que estava sozinho num estúdio escuro, cercado de telas transmitindo sua própria imagem, mas com os olhos vazios, como se tivesse morrido por dentro.

“Tá louco, que troço ruim...”, murmurou, ainda ofegante, antes de pegar o celular do criado-mudo.

Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Nem da Fátima, sua esposa, que sempre mandava áudio rezando o Salmo 91 antes de ele sair pra gravar o programa. Nem do produtor, nem do câmera, nem do pastor Joel, que geralmente mandava aqueles gifs com leão e cruz. Nada. Um vazio digital.

Ele levantou, vestiu a calça de abrigo surrada, a camiseta preta com a inscrição “Cristo é Justiça”, e foi até a sala. A tevê já ligava no canal de sempre, como ele programara. Mas não tinha ninguém no ar. Só um letreiro fixo, branco em fundo preto: "Estamos enfrentando dificuldades técnicas. Em breve, retornamos com a verdade."

— A verdade tá aqui, ó — ele murmurou, batendo no peito. — E se foi todo mundo... então tá na hora de botar ordem nesse mundo sem vergonha.

No prédio da antiga emissora — que ele ainda chamava de a casa da verdade, mesmo depois da compra pelo grupo evangélico da Zona Norte — tudo estava trancado. Bira tentou o interfone, depois a porta lateral da garagem, depois a entrada dos fundos, onde o pessoal do cafezinho chegava. Ninguém. Nem a recepcionista que usava batom roxo e lia Apocalipse nos intervalos, nem o cinegrafista que passava as manhãs assistindo vídeos de pancadaria no Telegram. Nem o segurança, que ouvia hinos de guerra do tempo da Marcha para Jesus.

Foi ali que o Bira teve a certeza: era o tal do Arrebatamento. Não porque ele tinha sido deixado, claro — disso ele não duvidava. Mas porque a cidade estava vazia das pessoas erradas. E se só tinham sobrado os podres, então ele, no fundo, talvez fosse um justo entre os vermes. Um profeta da lama.

Subiu no próprio carro, um Uno branco adesivado com “Cristo Reina”, e rodou devagar pelas ruas centrais de Caxias. Não tinha trânsito. Não tinha barulho. Só uma ou outra alma perdida, vagando feito barata tonta.

Uma mulher chorava na frente de uma farmácia fechada. Um véio de boné do Grêmio gritava nomes em direção ao céu. Um adolescente filmava a si mesmo com o celular, dizendo: “É o fim, gurizada. Agora é só Deus mesmo.”

Bira bufou.

— Só Deus? Agora? Depois de fumar maconha na pracinha e chamar crente de burro? Agora é só Deus? Bando de hipócrita. Onde tava a fé quando a gente avisava? Hein?

Encostou o carro na frente da igreja abandonada da Comunidade do Monte, onde costumava fazer reportagens denunciando "lobos em pele de pastor". Entrou pela lateral. Os bancos estavam revirados. O púlpito, vazio. A luz, cortada. Mas havia um silêncio ali dentro que parecia... cheio. Como se a ausência tivesse peso.

Ele subiu no altar e ficou olhando as cadeiras vazias, onde antes sentavam os pastores engravatados que ele detestava. E ali, naquele instante, Bira sorriu.

— Agora sim... agora é minha vez de pregar.

Montou o estúdio na própria sala. Tirou a televisão da parede, empurrou o sofá, esticou uma toalha preta como fundo e posicionou o celular num tripé que usava quando gravava merchans para ótica do seu Cláudio.

No primeiro vídeo, apareceu de camisa preta, olhos fundos e um crucifixo dourado pendurado no peito.

— Senhores... e senhoras também, né? Estamos vivendo o cumprimento da profecia. O que você viu não é fake news. Não é golpe da Globo. É o começo do fim. E quem tá falando é o mesmo que sempre avisou. Sempre gritou. Sempre apontou o dedo. E todo mundo ria.

Bira falava com a câmera como falava no programa “Na Mira com Bira Rodrigues”, o mesmo que tiraram do ar quando ele mostrou a prostituta que saía do carro do vereador. Com voz pausada, o dedo levantado e uma convicção que só quem apanhou da vida consegue fingir que tem.

— Tavam ocupados demais rindo de quem acreditava na Bíblia. Dando palco pra travesti lacrar em cima de pastor. Apoiando bandido com discurso de inclusão. E agora? Cadê o pessoal do amor? Hein? Sumiram, né?

O vídeo bateu cento e cinquenta mil visualizações em poucas horas. Gente do Brasil inteiro comentava. Uns chamando ele de profeta. Outros dizendo que era oportunista, lunático, fascista de plantão.

Ele leu todos os comentários. E respondeu a maioria com um emoji de fogo ou com a frase: “Agora é tarde, parceiro.”

Gravou outro. E outro. Começou a transmitir ao vivo toda manhã, com uma Bíblia aberta na mesa de jantar e uma arma descarregada ao lado — só pra compor o visual. No fundo, tocava hinos antigos em volume baixo: “Grandioso és Tu”, “Porque Ele vive”, “Soldado ferido”.

A audiência crescia. Virou referência. Gente batendo na porta pra pedir oração, conselho, proteção. Um pastor do Mato Grosso pediu pra ir morar com ele. Uma mulher do Paraná mandou foto nua, dizendo que o Bira era o novo escolhido de Deus.

Ele riu, como sempre riu das tentações. Mas no fundo, algo mudava. Não era orgulho. Não era fé. Era sede.

Sede de ser ouvido. De finalmente ser visto. O poder da influência!

O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelos estalos da casa velha e pelo zumbido do transformador da rua, que resistia como um velho soldado ferido. Bira cochilava com a Bíblia aberta no colo, o rosto iluminado apenas pela luz azulada do monitor em modo de descanso. No quarto ao lado, a televisão ligada no volume mínimo repetia as palavras de um pastor americano legendado, perdido em sua própria pregação sobre juízo final e trombetas.

Então veio o som.

Primeiro foi um estalo, como madeira sendo partida. Depois, um chiado grave, crescendo devagar, como se uma frequência proibida tivesse sido sintonizada por acidente. Bira acordou num sobressalto, o coração martelando rapidamente. Por um instante, pensou ser o começo do Apocalipse de verdade, que as trombetas haviam finalmente tocado para ele.

Mas não era o céu. Era a caixa de som da velha TV, que agora vibrava com uma voz distorcida, gutural, como se algo estivesse tentando atravessar a tela.

“…abandonados…”, dizia a voz. “…colhidos pela mentira…”

Ele levantou, tonto, tropeçando nos próprios chinelos. Tentou desligar o aparelho, mas o botão não respondia. Tirou da tomada. Nada. A TV permanecia acesa, o rosto de um pregador desconhecido congelado na tela, os olhos brancos, vazios, como se tivessem sido apagados.

A voz continuava:

“O justo foi levado para não ver o mal. Mas tu… tu ficaste, Bira.”

Ele recuou um passo.

“Quem tá falando? Hein? Isso é pegadinha?”

Mas ninguém respondeu.

A luz do quarto piscou. A câmera que ele usava para as gravações ligou sozinha. O microfone vermelho brilhou.

Gravando.

“Tu disseste que era profeta. Que falava em Meu nome. Mas falaste por ti mesmo.”

A voz agora era conhecida. Era a dele. Mas não era a dele. Era o tom que usava nos vídeos. Inflado. Falso. Cheio de pompa.

“Mentiste. Fizeste comércio da dor. Vendeste juízo como se fosse teu.”

Bira caiu de joelhos, o suor escorrendo pelas costas.

“Senhor… Senhor, eu só quis ajudar! Eu só disse a verdade!”

“A tua verdade. Não a Minha.”

A Bíblia que estava no chão virou uma página sozinha. Depois outra. E mais uma. Até parar em Isaías 5:20.

“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem da escuridão luz, e da luz, escuridão.”

O som cessou.

A TV apagou. A luz estabilizou. A câmera desligou.

Tudo voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido.

Mas Bira não. Ele ficou ali, ajoelhado, tremendo. Sabia o que tinha ouvido. E sabia que não era apenas uma falha elétrica.

Era o começo. O prenúncio. A conta começando a chegar.

E, pela primeira vez em muito tempo, ele ficou sem palavras.

No dia seguinte, Caxias amanheceu com o céu de chumbo, as nuvens arrastando-se como uma manta de poeira sobre os morros. O frio cortava como faca cega, e mesmo os pombos evitavam bater asas. As ruas quietas demais para uma terça-feira.

Bira não saiu de casa.

A casa, antes cheia de cartazes de campanhas sociais e recortes de jornal com manchetes que o chamavam de “O Guardião da Verdade”, agora parecia menor, oca. O letreiro da produtora na entrada havia caído com o vento da noite anterior e jazia torto, como um epitáfio.

Ele não ligou as câmeras. Não abriu o e-mail. Não postou. Apenas sentou-se à mesa com uma xícara de café frio, encarando o próprio reflexo escuro.

A culpa corroía, mas ainda mais do que isso, era o medo. Um medo que ele nunca havia sentido — não como os medos que alimentava nos outros. Este era real. Este estava dentro dele. Maligno como um tumor e crescendo.

À tarde, batidas na porta.

Três toques secos. Depois silêncio.

Ele hesitou. O corpo doía. As juntas travadas. Abriu.

Era uma mulher. Rosto seco, sulcado por lágrimas recentes. Na mão, uma foto amassada de uma menina — uma das desaparecidas, uma daquelas que ele havia exposto, acusado, rotulado como "provavelmente morta por tráfico ou seita".

“Ela voltou”, disse a mulher, a voz trêmula. “A menina. Apareceu em casa ontem. Diz que foi... levada. Mas voltou. E que o Senhor... o Senhor não a condenou, só recolheu os escolhidos. Ela ficou por mim. Disse que Ele quer que eu me arrependa. Que eu posso ainda...”

Ela parou. Olhou Bira de cima a baixo.

“Mas você… você sabia. Sabia que era real. Por que mentiu?”

Ele não respondeu.

A mulher apenas deixou a foto sobre a mesa e saiu.

À noite, o programa foi ao ar. Mas não ao vivo. Era um especial, gravado há dias, reprisado por falta de conteúdo novo. A audiência caiu pela metade.

O celular vibrava com mensagens de seguidores confusos. Alguns diziam que estavam com medo. Outros exigiam explicações. Mas a maioria… silenciava.

Naquela madrugada, Bira fez algo que não fazia há anos: saiu caminhando sozinho pelas ruas desertas de Caxias.

Sem celular. Sem câmeras. Sem público.

A igreja da esquina estava aberta, a luz da vela tremendo na porta.

Ele entrou.

O ar era quente, cheirava a madeira antiga e orações mal terminadas. Sentou-se no último banco. O pastor — um homem velho, que nunca o engoliu — apenas assentiu, sem dizer palavra. Continuou varrendo o chão com uma vassoura que parecia mais velha que ele.

Bira não pediu perdão. Não ainda. Ele apenas... ficou.

Horas passaram.

E então ele chorou.

Não foi o choro performático das gravações, nem o pranto forçado dos testemunhos de palco. Foi um choro bruto, engasgado, silencioso. Dorido.

Do lado de fora, os sinos tocaram.

Um som grave. Frio.

Talvez anunciassem o fim do mundo. Talvez só a chegada da próxima frente fria.

Mas para Bira, era o som do recomeço — ou da condenação.

Só o tempo diria.

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