Capítulo 1

...“Quando a luz vacila, a sombra se lembra."...

...~ Provérbio Solariano...

...***...

A noite ainda envolvia Solaria quando Kiran despertou de súbito, como se arrancado de um sonho do qual já não se lembrava. Por um instante, não soube dizer o que o havia acordado — um ruído distante, um pensamento extraviado, ou talvez a sombra indistinta de um pressentimento, daqueles que nascem antes da razão e demoram a mostrar o rosto.

Piscou devagar, tentando se habituar à penumbra. As sombras dançavam pelas paredes, espessas sob a luz que invadia o quarto pela janela entreaberta. A lareira, antes viva, jazia adormecida. Restava uma única brasa, tímida, aninhada entre as cinzas.

O frio da madrugada esgueirava-se pelas frestas com dedos invisíveis, agarrando-se à pele. O ar carregava o cheiro seco da areia e um leve toque salgado que não deveria estar ali, como um fantasma do mar — embora o oceano estivesse a léguas de distância.

Kiran empurrou as cobertas e sentou-se à beira da cama. Sentiu o chão frio sob os pés descalços e bastou esse toque para afugentar o que restava do sono. Por alguns segundos, permaneceu imóvel, apenas ouvindo o silêncio do palácio. Depois, ergueu-se sem pressa e foi até a janela.

Apoiou os braços no parapeito e olhou para fora. O céu ainda era uma vastidão escura, mas no horizonte o dia já insinuava sua chegada. Um brilho discreto tingia o leste com tons de rosa, dourado e azul, como se a manhã se espreguiçasse sobre o mundo. O vento soprava com ternura, levantando redemoinhos de areia no limite do deserto.

As dunas, imóveis como ondas petrificadas, se estendiam em direção ao desconhecido. Mais além, as falésias de arenito se erguiam austeras, sentinelas silenciosas que pareciam observar os dias desde antes da primeira memória.

Abaixo, Uruz despertava devagar. A capital, ainda mergulhada em sombras, ganhava cor e forma à medida que a luz avançava. As casas de madeira e pedra se banhavam nos primeiros raios do sol, e as ruas de terra pareciam respirar junto de seus habitantes.

Lá embaixo, um velho mercador varria a entrada da loja com movimentos lentos. Crianças descalças corriam pelos becos, rindo alto, com os cadernos colados ao peito. No mercado, carroças gemiam sob o peso dos mantimentos, puxadas por burros sonolentos. O cheiro de especiarias secas e pão recém-saído das brasas misturava-se ao barulho dos cabritos teimosos que se recusavam a seguir as carroças. Homens e mulheres cruzavam portas, entregando-se a mais um dia. Do outro lado da praça, o saloon ainda exalava vida adormecida. Um punhado de jogadores terminava a última rodada, dedos trêmulos contando moedas sobre a mesa gasta. Copos tilintavam em mãos cansadas, e o som metálico do martelo do ferreiro já ecoava ao longe, como um prenúncio de rotina.

Kiran fechou os olhos por um momento para absorver aquele curto instante de quietude. O dia já o chamava, e com ele, as obrigações que nunca descansavam.

Então, afastou-se da janela e atravessou o quarto com passos decididos. Vestiu-se em silêncio: camisa de linho, calças firmes, botas gastas de tanto caminho. Ajustou a gola, prendeu o cinto à cintura e, por fim, pegou o chapéu de couro sobre o gancho. Colocou-o com um gesto automático sobre os cabelos rebeldes.

Ao sair, fechou a porta atrás de si. O corredor estava quase vazio, banhado pela luz tênue que filtrava pelas janelas altas. O som de seus passos ecoava pelo mármore, enquanto os criados começavam a movimentar-se nos bastidores do palácio. O ar conservava o frescor da madrugada, mas o calor se anunciava à distância, como uma promessa inevitável.

Ao chegar ao saguão, viu que não estava sozinho. Encostada a uma das colunas, de braços cruzados, estava Ut, a Estrela da Manhã. Seu semblante sereno carregava uma calma que nunca era desatenção. Ela o observou por um instante antes de esboçar um sorriso contido.

— Kiran — disse, inclinando levemente a cabeça. — Um minuto de atraso. Os outros já partiram.

O tom era neutro, quase leve, mas não deixava de ser um aviso. Kiran suspirou, ajeitando o chapéu.

— Alguém precisava de uma entrada memorável. Aparentemente, sobrou pra mim.

Ut não respondeu de imediato. Estendeu a mão e ajeitou com cuidado a insígnia dourada presa à jaqueta dele — símbolo dos que carregavam o sol no peito mesmo quando a noite era longa. Um gesto que dizia mais do que qualquer comentário.

— Está distraído — murmurou, sem acusar.

— Talvez esteja cansado de fingir que não.

Ela apenas assentiu, como quem compreende sem julgar, e tomou a dianteira.

Havia algo nos olhos de Ut — uma paciência antiga, talvez forjada nos mesmos silêncios que os dois aprenderam a dividir ao longo dos anos.

Ut sempre chamava atenção, mesmo sem intenção. O chapéu inclinado, as pistolas à cintura, a leveza do andar. Tudo nela era equilíbrio entre força e elegância. Ao abrir a porta principal do palácio, não precisou esforço. A madeira cedeu com a naturalidade de quem reconhece antigos hábitos.

Do lado de fora, a cidade já respirava. O sol erguia-se no horizonte, dourando os telhados, tingindo as pedras do deserto com reflexos de brasa. Kiran estreitou os olhos e deixou a luz tocar seu rosto por um momento. Havia algo reconfortante naquele calor, como se, por um instante, o mundo dissesse que tudo seguiria em ordem.

Inspirou fundo. Depois, desceu os degraus. Era hora de ocupar seu lugar.

Ser um Guardião nunca fora apenas sobre armas e vigilância. Era, antes de tudo, responsabilidade — a mais solitária de todas. Exigia firmeza, paciência, decisões que ninguém queria tomar. E, com o tempo, transformava-se num peso invisível que não se deixava pôr de lado — e que ninguém via, exceto aqueles que também o carregavam.

...***...

O vento serpenteava entre as pedras, levantando a poeira que girava no ar antes de desaparecer. Era um silêncio antigo, denso como véu abandonado pelo tempo, rompido apenas pelo trotar constante de Ouro, o corcel de Kiran, cujos cascos ressoavam no chão seco como o tique-taque de um relógio distante.

De súbito, o som cessou.

Ouro estacou, tenso. Os músculos rígidos, as orelhas empinadas, os olhos escuros voltados para o nada. Farejava algo que Kiran ainda não via, mas já sentia. Não era medo, era o instinto.

Kiran se endireitou na sela. O deserto à frente parecia o mesmo de sempre: dunas imóveis, pedras dispersas, arbustos retorcidos pelo sol. E ainda assim, havia algo errado. Uma pausa no ar. Como se o mundo tivesse prendido a respiração.

Então, o céu escureceu.

Não foi o avanço lento das nuvens, mas uma queda abrupta de luz, como um pano lançado sobre o firmamento. Uma sombra espessa, de tempestade, tomou o azul e o transformou em cinza sujo, quase negro. O calor se desfez num golpe seco, substituído por um frio repentino, sem cheiro de chuva.

O vento uivava agora. Soprava com raiva, carregando areia e sussurros que pareciam vir de todos os lados e de lugar nenhum.

Kiran sentiu o arrepio subir pela espinha. Apertou os joelhos contra os flancos do cavalo e puxou as rédeas.

— Vai!

Ouro respondeu de imediato, rompendo o silêncio com o galope. O chão vibrava sob seus cascos enquanto avançavam em direção ao vilarejo mais próximo, que despontava adiante, pequeno e vulnerável contra a vastidão do deserto.

Mas ele soube, ainda antes dos primeiros gritos, que chegariam tarde demais. As ruas já estavam em desordem. Portas batiam com violência. Pessoas corriam, tropeçando umas nas outras. Soldados tomavam posição nas vielas estreitas, espadas e rifles em punho, olhos arregalados diante do inimigo conhecido.

E então elas vieram.

Sombras com forma de gente, mas deformadas. Corpos de um brilho escuro, olhos que ardiam em amarelo, como brasas no escuro. Não se moviam como homens, oscilavam, como fumaça com peso. Tinham garras, dentes, e uma ausência de alma que o fazia lembrar a guerra.

Kiran sacou a pistola e disparou. A sombra atingida se desfez no ar, como fuligem soprada.

Mas outras tomaram seu lugar.

Ele atirava sem pensar, os sentidos tomados pelo instinto. Cada tiro era um recuo, cada criatura derrubada era sucedida por outra. Era como tentar conter o mar com as mãos.

Ouro empinou quando uma sombra se aproximou demais. Kiran largou a pistola para não ser lançado, e em seguida puxou a faca do cinturão. Girou a lâmina num golpe rente, cortando o pescoço da criatura. Ela se desfez num sussurro, sem sangue, sem corpo.

O combate se espalhava como fogo em palha seca. Os soldados disparavam à distância, os tiros misturando-se ao vento. Havia alguma ordem, frágil, desesperada. Nenhum treinamento preparava para aquilo.

Kiran desmontou. Os pés cravados no chão, os olhos varrendo o entorno. Um corpo tombou perto. Quando virou o rosto, viu os olhos imóveis de um garoto — talvez com idade para ser soldado — agora vidrados, perdidos no vazio.

— Príncipe!

A voz o arrancou do torpor.

Hamal surgia entre a fumaça e a areia, o rosto suado, a barba por fazer. Os olhos fundos denunciavam noites mal dormidas. Na mão direita, segurava uma pistola que ainda não havia disparado.

— Achei que estivesse na capital — disse Kiran.

— Vim reforçar o Portal. Trouxe uma tropa comigo.

— Quantos?

Hamal hesitou.

— Menos do que deveríamos.

Um grito rasgou o ar à esquerda, seguido por uma explosão abafada. A terra tremeu, e um jato de areia ergueu-se aos céus. Kiran cerrou os dentes e apertou o cabo da arma.

Não havia tempo.

— Cuide dos civis. Eu vou ao Portal.

— Príncipe—

Mas Kiran já montava Ouro. O cavalo respondeu sem hesitar, os músculos prontos para avançar.

Atrás dele, a batalha se desfazia num borrão de fogo, poeira e gritos.

Ele não olhou para trás.

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