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HarémMabruka, Salma e Faíza estavam prestes a passar
seis dias no Chade com o Guia – e, com elas, iam muitas garotas na bagagem.
Pode ser uma boa oportunidade de ver mamãe,
pensei. Eu bem que tentei, pedindo a Mabruka que me deixasse fazer uma visita
na ausência deles.
– Fora de cogitação! – respondeu ela. – Você vai ficar no
seu quarto, pronta para se juntar a nós a qualquer momento, se seu mestre assim
desejar. Mando um avião vir buscá-la.
Um avião...
Então, aproveitei para dar um descanso ao meu corpo. Um
corpo constantemente coberto de hematomas e mordidas, que não chegavam a
cicatrizar. Um corpo cansado, que só experimentava sofrimento e do qual eu não
gostava. Eu fumava, comia, cochilava assistindo a clipes no pequeno televisor
no meu quarto. Acho que não pensava em nada. Mas, um dia antes de eles
voltarem, tive uma surpresa boa: um motorista de Bab alAzizia recebera
autorização para me levar à cidade por meia hora – tempo de ir gastar os
quinhentos dinares que eu havia recebido durante o Ramadã. Foi incrível. Eu
redescobria o frescor da primavera, minha visão era ofuscada pela luminosidade,
como uma cega ao enxergar o sol. Sem janelas, o subsolo era tão úmido que às
vezes Mabruka queimava ervas ali para tirar o cheiro de mofo.
O motorista me levou a um bairro chique, e eu comprei uma
calça, sapatos, uma blusa. Eu não sabia o que levar. Nunca tinha tido um
dinheiro meu, e fiquei completamente desorientada. Além do mais, como eu
deveria me vestir? Entre o quarto dele e o meu, não havia necessidade de quase
nada, e eu estava sem ideia nenhuma. Quando me lembro disso, vejo como fui
estúpida! Devia ter pensado em um livro, alguma coisa que me fizesse sonhar,
fugir daquela realidade ou conhecer a vida. Ou então lápis e caderno, para
desenhar ou escrever, já que não tinha acesso a nada dessas coisas em Bab
al-Azizia. Só Amal tinha alguns romances de amor em seu quarto e um livro sobre
Marilyn Monroe, que me fazia sonhar e que ela se recusava a me emprestar. Mas
não, naquele momento eu não pensei em nada de inteligente ou de útil. Eu olhava
à minha volta com avidez e pânico, meu sangue fervilhava. E não era uma
situação vertiginosa? Eu era uma prisioneira que tinha sido solta por alguns
minutos em uma cidade que não sabia nada sobre mim, onde os pedestres cruzavam
comigo na calçada sem nem ao menos imaginar a minha história, onde o vendedor
me entregava o pacote sorrindo, como faria com uma cliente comum, onde um
pequeno grupo de estudantes uniformizadas fazia algazarra perto de mim e não
lhes ocorria que eu também deveria estar na escola, pensando apenas em estudar
e rir. Mabruka, ao menos uma vez, não estava grudada em mim; o motorista era
gentil, mas eu me sentia acuada. Fugir não era uma opção. Meus trinta minutos
de pseudoliberdade me pareceram trinta segundos.
No dia seguinte, a comitiva estava de volta. Ouvi uma
algazarra no subsolo, passos, portas, vozes. Fui devidamente advertida a
permanecer no quarto, mas eis que Mabruka apareceu de súbito na soleira e
ordenou:
– Pra cima! – com um movimento de queixo.
Ela nem se dava ao trabalho de dizer: “Agora você deve
subir”. Usava o mínimo de palavras e o máximo de desprezo. Sim, eu recebia o
tratamento de uma escrava. E ordens odiosas como aquela, de subir ao quarto do
mestre, provocavam um fluxo de estresse e eletricidade em todo o meu corpo.
– Ah, meu amor! Vem cá – ele lançou ao me ver.
Então sejogou em cima de mim berrando: – Vadia! – e urrando.
Eu era uma marionete, que ele podia manipular e esmurrar.
Já não era um ser humano. Fathia o interrompeu, adentrando o quarto.
– Meu mestre, precisamos do senhor, é urgente.
Ele me empurrou para o lado e sibilou entre
os dentes:
– Vaza!
E eu desci mais uma vez para o quarto úmido. Naquele dia,
pela primeira vez, assisti a um DVD pornô e fiquei me perguntando sobre sexo. O pouco que eu sabia se resumia a
violência, horror, dominação, crueldade, sadismo. Era uma sessão de tortura.
Com o mesmo carrasco. E eu não imaginava que pudesse ser diferente. Mas as
atrizes pornôs não faziam papel de escravas ou de vítimas. Chegavam a elaborar
estratégias para ter relações sexuais, e pareciam sentir tanto prazer quanto
seus parceiros. Era estranho e intrigante.
Dois dias depois, Faíza foi ao meu quarto com um
papelzinho.
– Este
é o número da sua mãe, você pode ligar pra ela doescritório.
Mamãe logo atendeu.
– Ah,
Soraya! Como vai, minha filhinha? Ah, meu Deus, como fico feliz em ouvir sua
voz! Onde você está? Quando vou poder ver você? Está bem de saúde?
Eu tinha direito a apenas um minuto. Como os prisioneiros.
Faíza falou:
– Basta.
– E, com um dedo no aparelho, interrompeu a ligação.
Um dia, uma coisa estranha aconteceu. Najah, a policial que
não tinha o olhar frio, veio passar dois dias em Bab al-Azizia, como fazia de
tempos em tempos. E, mais uma vez, dividiu o quarto comigo. Seus desabafos e
planos mirabolantes sempre me deixavam desconfiada, mas sua audácia me
distraía.
– Estou
bolando um plano para que você possa espairecer umpouco fora de Bab al-Azizia –
ela disse. – Tenho a impressão de que vai lhe fazer bem.
– Tá
brincando?
– De
jeito nenhum. Basta um pouco de manha. Que tal umapequena excursão comigo,
totalmente livre?
– Mas
nunca vão me deixar sair.
– Como
você é pessimista! Tudo que tem de fazer é fingirestar doente. Eu me encarrego
do resto.
– Não
faz sentido. Se eu estivesse mesmo doente, as enfermeiras ucranianas cuidariam
de mim aqui.
– Deixa
comigo! Vou montar uma cena, só preciso que vocêconcorde.
Ela foi ver Mabruka, não sei o que disse à mulher, mas
voltou falando que estava tudo certo. Foi espantoso. Um motorista chamado Amar
veio nos apanhar e nos levou para fora das muralhas de Bab al-Azizia. Eu mal
podia crer no que estava vendo.
– Mas
o que você disse a Mabruka?
– Shhh!
Vamos primeiro para minha casa, depois vou te levaraté uma pessoa.
– Você
é maluca! Como conseguiu isso?
– Ei!
Não me chamo Najah à toa!
– Não
tenho nem roupa pra vestir!
– Não
se preocupe, dividimos as minhas.
Chegamos à casa dela, trocamos de roupa, e a irmã de Najah
nos levou de carro até uma casa de campo muito bonita em Enzara, um bairro da
periferia de Trípoli. O proprietário se mostrou radiante em nos receber.
– Esta
é Soraya, de quem lhe falei – disse Najah.
O homem me deu uma boa olhada e pareceu bastante
interessado em mim.
– Então, diga. Aquele cachorro lhe fez mal?
Fiquei paralisada. O que aquele cara estava querendo? Que
confiança eu podia ter nele, naquela conversa? Tive um pressentimento ruim e
não respondi quase nada. Logo depois, o telefone de Najah tocou. Era Mabruka.
Ela revirou os olhos e não atendeu.
– Não vai atender?
Ela não respondeu, apenas estendeu o copo, que o cara
encheu de uísque. Fiquei louca ao ver aquilo. Num país em que a religião e a
lei proíbem o álcool, as pessoas se permitiam beber assim, descaradamente? E
ainda criticavam Kadafi, que, também ele, volta e meia estava bebendo? Logo em
seguida o homem me estendeu um copo. Mostrando-se ofendido com minha recusa,
ele insistia:
– Beba! Ora, beba! Aqui você é livre!
Najah e sua irmã não se fizeram de rogadas. Começaram a
dançar, dando a entender que o negócio era festa. Bebiam, riam, fechavam os
olhos, acenando. O homem as olhava com desejo. Outro homem chegou, me mediu com
os olhos e sorriu. Logo percebi a armadilha, e Najah também não ajudava. Ela se
embebedava com determinação. Dei a entender que estava cansada, mas obviamente
ir embora estava fora de questão, então me indicaram um quarto. Fiquei
alarmada. E logo notei Najah indo para o quarto ao lado com os homens, enquanto
seu telefone tocava no vazio.
Eles me deixaram em paz, mas acordei num sobressalto,
angustiada. Fui sacudir Najah, que estava completamente grogue, quase em coma
alcoólico, e não se lembrava de nada. Seu telefone tocou. Mabruka urrava:
– O motorista está procurando vocês desde ontem.
Pois agoravocês vão se ver com seu mestre!
Najah entrou em pânico. Ela mentira para mim, tinha me
traído e me colocado numa armadilha arriscada, me oferecendo àqueles homens. Eu
estava enojada. Ter sido raptada por Kadafi não fazia de mim automaticamente
uma puta.
O retorno foi violento. Mabruka não estava, mas Salma
mandou que fôssemos as duas ao quarto do Guia. Ele espumava de ódio. Deu um
tapa feroz em Najah e urrou para ela:
– Agora cai fora, não quero nunca mais te ver!
Já eu, jogou-me na cama e descarregou toda a raiva sobre
meu corpo. Quando acabou, murmurou entre os dentes:
– Todas as mulheres são putas! – E acrescentou: –
Aisha também era uma puta sagrada!
Creio que estava falando de sua mãe.
Um mês se passou sem que ele me tocasse. Duas meninas
novas, vindas do leste do país, haviam acabado de chegar: a de Al-Baida tinha
treze anos; a de Derna, quinze. Eu as vi subindo para o quarto, belas, com o ar
ingênuo e inocente que eu devia ter no ano anterior. Eu sabia exatamente o que
as esperava, mas não podia lhes falar nem fazer o menor sinal.
– Viu as novatas? – perguntou-me Amal.
Não ficaram muito tempo. Ele precisava de garotas todos os
dias. Usava e jogava fora, ou, como me disseram, “reciclava”. Eu ainda não
sabia o que isso significava.
Os dias iam se passando, as estações, as festas nacionais e
religiosas, os Ramadãs. Pouco a pouco, eu ia perdendo a noção do tempo. Noite,
dia, a claridade era a mesma no subsolo. E minha vida se limitava àquele
estreito perímetro, dependente dos desejos e humores do coronel. Quando
conversávamos entre nós, não nos referíamos a ele nem por nome nem por título.
“Ele”, “aquele” estavam de bom tamanho. Nossa vida girava em torno da dele.
Tudo muito simples e muito claro.
Eu não sabia nada do que pudesse estar acontecendo no país
nem do que sacudia o mundo. De vez em quando, rumores indicavam que estava para
acontecer uma cúpula de dirigentes africanos ou a visita de algum chefe de
Estado importante. A maior parte dos encontros se dava na tenda oficial, para
onde “ele” se deslocava em um daqueles carrinhos de golfe. Antes das
entrevistas e encontros importantes, assim como antes de qualquer aparição
pública, ele fumava haxixe ou cheirava cocaína. Quase sempre estava dopado.
Eram frequentes as festas e coquetéis nos salões da mansão, com dignitários do
regime e de diversas delegações estrangeiras. Reparávamos primeiro nas
mulheres, pois, claro, era o que lhe interessava, e a missão de Mabruka era
atraí-las para o quarto dele. Podiam ser estudantes, atrizes, jornalistas,
modelos, filhas ou mulheres de homens importantes, de militares, de chefes de
Estado. Quanto mais influente fosse o pai ou o marido, mais os presentes que
ele dava tinham de ser suntuosos. Um pequeno cômodo contíguo ao seu escritório
servia de caverna de Ali Babá, onde Mabruka guardava os presentes. Cheguei a
ver malas Samsonite cheias de dólares e euros, caixas de joias, parures* de
ouro, geralmente ofertadas em casamentos, colares de diamantes. A maioria das
mulheres tinha de passar pela coleta de sangue, feita discretamente pelas
ucranianas em uma pequena sala de cadeiras vermelhas, situada na frente do
escritório das guardas. Certamente as mulheres de chefes de Estado não
precisavam passar por isso, penso eu. O que mais me divertia era ver as
mulheres subindo ao quarto dele cheias de pompa, com bolsa de grife, para
depois sair dali com a maquiagem borrada e o coque desfeito.
Leila Trabelsi, mulher do ditador tunisiano Ben Ali, era
evidentemente íntima. Apareceu diversas vezes, e Mabruka a adorava.
– Leila,
meu amor! – exclamava ela, sempre feliz por lhe falarao telefone ou anunciar
sua chegada.
Nada era bom demais para a tunisiana. Lembro-me sobretudo
de uma caixa revestida de ouro.
Com o tempo, vi passar pela residência muitas esposas de
chefes de Estado africanos, cujo nome eu não sabia. E também Cécilia Sarkozy,
na época mulher do ex-presidente francês, bela, altiva, as outras garotas foram
logo me dizendo quem era.
Em Sirte, na caravana do Guia, vi Tony
Blair.
– Hello,
girls! – nos cumprimentou, com um gesto amistoso eum sorriso feliz.
A partir de Sirte, entrávamos às vezes no deserto. Kadafi
gostava de armar sua tenda ali, cercado de rebanhos de dromedários, no meio do
nada. Instalava-se ali para tomar chá, conversar durante horas com os anciões
de sua tribo, ler e fazer a sesta. Jamais passava a noite, preferindo o
conforto de seu trailer, ao qual éramos chamadas para lhe fazer companhia. De
manhã, devíamos acompanhá-lo na caça, todas uniformizadas. O mito das
guarda-costas assim se mantinha, e Zorha, uma verdadeira militar, zelava para
que eu me comportasse como uma profissional. Certa vez, foi encarregada de me
ensinar a usar uma AK-47:
desmontar, carregar, armar, limpar.
– Atire! – ela gritou quando eu tinha a arma contra o
ombro. Eu me recusei. Jamais disparei um único tiro.
Vim a descobrir também a relação de dependência que ele
mantinha com a magia negra, influência direta de Mabruka. Era desse modo que
ela o tinha nas mãos, segundo me disseram. Ela ia consultar marabus e
feiticeiros de toda a África e eventualmente os levava até o Guia. Ele não
usava talismã, mas se besuntava com unguentos misteriosos de fórmulas
incompreensíveis e tinha sempre à mão a tal toalhinha vermelha...
Onde quer que ele estivesse, estaria também a pequena
equipe de enfermeiras. Galina, Elena, Claudia... Sempre de uniforme branco e
azul e sem maquiagem, trabalhavam no pequeno hospital de Bab al-Azizia, mas, a
um chamado dele, podiam chegar em menos de cinco minutos. Eram encarregadas não
só das coletas de sangue, obrigatórias antes dos encontros sexuais do Guia, mas
também de seus cuidados pessoais e alimentação. Quando me mostrei preocupada
com a questão da contracepção, disseram-me que Galina aplicava injeções de
infertilidade no Guia. Ao contrário de outras garotas antes de mim, não fiquei
sabendo de quase nada sobre aborto e não tive problema com isso. Todas o
chamavam de “papai”, ainda que ele mantivesse relações sexuais com a maioria. Em
uma ocasião, Galina se queixou para mim. Mas haveria uma única mulher que ele
não tivesse desejado possuir ao menos uma vez?
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Comments
Amanda
Misericórdia, ele é um monstro
2023-09-13
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