Capítulo 4

ADIANTEI O TRABALHO DO DIA SEGUINTE até às duas da manhã. Neto me ligou, avisando que não precisou continuar o plantão e saiu mais cedo. Ele chegaria aqui às três. São duas e quarenta e cinco e preparei um chocolate quente para nós dois.

Ouvi a campainha tocar assim que saí do banheiro, depois de lavar o rosto.

Abri a porta e ele voltou para mim. De novo. Meu coração aqueceu.

— Cheguei — sorriu. Fechou a porta atrás de si.

— Você sempre me diz que volta — coloquei a minha cabeça em seu peito.

Os braços dele me envolveram. Sua boca roçou na minha testa.

— E voltei — sussurrou.

— Como foi mais um dia de capitão?

— Bem, obrigado. Mas agora… — ele inclinou o meu rosto com um dedo — eu só quero saber de você.

Peguei na mão dele, conduzindo-o até a cozinha.

— Preparei uma bebida quente para nós.

— Já sei o que é…

Neto tirou a jaqueta preta e, em seguida, a camisa marrom. Por um segundo, contemplei o corpo que ficava em cima de mim quase todas as noites.

— Então… — comecei a servir a bebida nas duas canecas — vamos curtir um chocolate quente juntos.

— Vamos curtir o que você quiser.

Ele me olhava com intensidade. Depois de seis meses de namoro — e uns três dias de noivado — ainda não consegui superar o derretimento que os olhos dele causam em mim.

Sorri para o meu futuro marido.

...…...

— COMO FOI O RESTO DO DIA SEM MIM? — Brincou ele. Nós estávamos na cama, com as respectivas roupas de dormir, assistindo uma série na plataforma de streaming.

— Eu deixei um presbítero constrangido — soltei naturalmente.

— Como é? — Ele ficou surpreso. Foi engraçada a maneira que o cenho dele se franziu.

— Um ex-amigo veio me visitar para me converter de volta — comecei. Falei de Wesley para ele e da minha vida na igreja anterior. E do retiro também.

— Então ele te convidou para um retiro espiritual com a intenção de levar para a igreja? — Ponderou ele.

— Claro — dei de ombros. — É o que eles fazem quando alguém, que já foi do meio deles, se torna um desviado.

Neto deu uma risadinha.

— Desviado?

— Sim — sorri. — Desviado. Existem outros rótulos também.

Ele balançou a cabeça.

— E como você o deixou constrangido?

— Falei que vou me casar com você.

— Caramba! E ele?

— Ficou surpreso — bebi um gole do chocolate que já estava morno. — Mudou de assunto. A atmosfera, que já não estava tão boa, ficou mais constrangedora.

— Claro — ele deu uma risadinha. — Você falou com naturalidade que vai se casar com outro homem… É tudo o que eles abominam.

— Pois é — coloquei a caneca na cabeceira. — Tanta coisa que a Bíblia proíbe e eles só batem na tecla do homossexualismo.

Peguei a caneca vazia dele e coloquei na cabeceira também.

Quatro em ponto.

— Você não dormiu? — Ele me aninhou de volta em seu peito, que se tornou um dos meus lugares favoritos.

— Adiantei 80% do home office para dormir mais um pouco.

— Garoto esperto — ele beijou o alto da minha cabeça.

— Dormir mais um pouco com você — reformulei.

A risadinha dele foi gutural. Desligou a TV.

— Sabe de uma coisa? — Ele fazia círculos com o dedo no meu ombro.

— O quê?

— Já parou pra pensar que, se você não tivesse se desviado, a gente não estaria juntos aqui?

— E noivos — ressaltei.

— Noivos — a voz dele era cadenciada.

Beijei o peito dele.

— Eu não me arrependo de ter me desviado, não — garanti.

Neto me pressionou mais em seu corpo.

— Se foi preciso me desviar só para te conhecer… — levantei a cabeça para olhá-lo através da luz do abajur. — Eu faria de novo.

— Não sei o que seria de mim se não tivesse conhecido você naquela tentativa de assalto — sorriu, tocando o meu rosto.

— Nem eu sei o que aconteceria caso não tivesse a atitude de pedir pra você subir até aqui.

Ele deu uma risadinha.

— A vida é muito louca, não é?

— Demais, até — dei um selinho nele.

Até que ele esticou para um beijo lento e terno.

— Amo tanto você — sussurrei.

— Então, vamo-nos amar mais… — ele me prendeu pela cintura, virando-se devagar sobre mim.

...…...

NETO E EU TERMINAMOS O CAFÉ DA MANHÃ, mesmo faltando uma hora para o meio\-dia. Quando coloquei as louças na pia, ouvi a campainha tocar.

— Quem será numa hora dessa? — Pensei alto.

— Atende lá — Neto tocou no meu ombro ao passar por mim. — Vou vestir uma camisa.

— Tá bom — fui até a porta.

Parece que a semana estaria cheia de surpresas. A última pessoa que eu esperava ver na minha vida apareceu na minha porta.

— Mãe?

Neto foi até a sala, terminando de vestir a camisa. Ficou nos observando.

...…...

— NÃO VAI ME CONVIDAR PRA ENTRAR? — Ela cruzou os braços, batendo o pé no chão.

— Entre — dei de ombros.

Ela passou por mim.

— Você deve ser a mãe de Orlando, certo? — Neto se aproximou, polido.

— Agnela — ela o olhou de cima abaixo. — Quem é você?

— Esse é o Neto — fiquei ao lado dele. — Meu noivo.

Ela ficou petrificada.

— Noivo? — Fez uma expressão desdenhosa.

— Claro que sim — argumentei.

— É um prazer conhecê-la dona Agnela.

Minha mãe não disse nada.

— Eu queria ter uma conversa com o meu filho. A sós.

Naturalmente, dei um beijo no rosto do meu noivo e pedi:

— Você pode ficar no quarto?

— Agora — ele sorriu.

...…...

MINHA MÃE SENTOU-SE NO SOFÁ e eu fiquei na poltrona.

— Quer dizer então que esse apartamento todo é seu? — Olhou em volta.

— Claro que sim — cruzei as pernas. — Eu sempre tive a pretensão de ir embora antes mesmo da senhora me expulsar de casa.

— Eu não vim até aqui para lavar essa roupa suja — seu olhar era penetrante.

— E o que você veio fazer na minha casa?

Ela suspirou.

— Vim te reforçar o convite que o presbítero Wesley te fez ontem — começou. — Primeiro, eu não devia estar aqui fazendo uma coisa dessas. Você escolheu essa vida e cedo ou tarde vai pagar pelas escolhas, certo?

— Quem pecar vai pagar, quem pecar vai morrer? — Debochei.

— Eu não estou brincando — sua voz ficou incisiva.

— Muito menos eu — a minha ficou mais fria e cortante.

Ficamos nos encarando por alguns segundos.

— Se você sabe que vou pagar pelas minhas escolhas, por que se deu ao trabalho de vir até aqui? — Ataquei.

Ela ficou em silêncio.

— Por compaixão — finalmente disse.

— Sei muito bem o seu tipo de compaixão.

— Sabe?! Então por que não dá orgulho a tua mãe, pelo menos uma vez na vida, em ser uma pessoa decente?!

— Eu sou uma pessoa decente — rebati. — Tenho meu espaço, alugado com meu próprio dinheiro, trabalho de casa… Não mato, não roubo, muito menos faço mal qualquer ser humano…

— Você sabe do que estou falando.

Suspirei.

— Olha só, dona Agnela — não pude evitar meu tom de voz cortante —, se a senhora veio até aqui para me convencer a voltar para uma vida religiosa a fim de ter controle sobre mim… — dei uma risadinha debochada. — Aceita que eu não vou mais voltar.

Ela balançou a cabeça com uma expressão azeda.

— Eu aqui, só querendo o teu bem… e você querendo se destruir cada vez mais.

— Quem está destruído aqui? Eu?

— Não. Eu! Eu que estou destruída de tanto desgosto que sinto aqui dentro — bateu no peito. — Você sabe como é difícil para uma mãe ter que ver um filho desviado da igreja? E pior! — Fez uma pausa e concluiu: — Prestes a se casar com outro homem.

Ela estava passando dos limites.

— Isso é algum problema pra você?

— Pra minha reputação é. Mãe de veado? Onde já se viu… — balançou a cabeça. — E ainda vou ter genro. Nem filha eu tenho!

Dei uma risada para não me enfurecer com o que estava ouvindo.

— A senhora já disse que não tem mais quatro filhos? — Dei de ombros. — Já disse que só tem três? Porque um virou gay? Disse?

— Disse — vociferou. — Disse e ainda digo: não tenho filho veado!

Ela ressaltou, em bom som, as palavras.

Já vi que não dá para conversar e não tenho mais paciência para ouvir qualquer absurdo.

— Vai embora daqui — me levantei. Assim que cheguei na porta, fuzilei a minha mãe com os olhos e elevei a voz: — Agora!

— Não grita comigo! — Ela se levantou do sofá.

— A CASA É MINHA! — Gritei. — Quem manda nesta porra sou eu! Vai embora!

Ela ficou perplexa com a minha atitude, passando pela porta.

— Você passou dos limites — continuei. — Eu ouvia tudo calado na sua casa, mas aqui não. Na minha casa não! Mais respeito comigo!

— Desde quando você merece respeito? — desdenhou ela. — A partir do momento que você me deu desgosto, perdeu totalmente.

Balancei a cabeça, rindo.

— Sabe de uma coisa? — Deixei a minha voz mais ácida. — Compartilho do mesmo sentimento que você tem por mim, agora.

Fiz uma pausa dramática, concluindo:

— Eu tenho nojo de você. No-jo. Passar bem.

Bati a porta na cara dela.

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Comments

Eliane Pereira

Eliane Pereira

que pena, ela não sabe que, devemos também respeitar nossos filhos, pra que os mesmos nos respeitam

2023-07-03

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