A Sanit-Co era uma companhia gigante, com estabelecimentos espalhados por todo o país e por outros lugares do mundo. Pagava salários incomparavelmente altos, de forma que seus engenheiros ganhavam muito mais do que um engenheiro de qualquer construtora, bem como seus gerentes percebiam salários mais vultosos do que o de um gerente de qualquer empresa bancária. Atuava em inúmeras atividades econômicas e, a cada dia, aumentava o leque de atuações. Tinha consigo o lema de jamais demitir, com exceção de situações em que o funcionário cometesse falta grave.
Possuía um setor que tinha atuação similar a de um banco, com a função principal de viabilizar economicamente a implantação e manutenção dos inúmeros projetos e atividades da companhia. Tal setor ainda era subdividido em unidades espalhadas por toda a parte, que eram chamadas de agência. E foi nesse setor de investimento que eu estive empregado por alguns anos.
De pronto, dois sujeitos se tornaram meus amigos dentro e fora do âmbito profissional. Eliot era um individuo que, de tão alegre e brincalhão, ninguém se lembrava de que ele era um mago da contabilidade. Já Valadares era um tanto mais introspectivo. Não era meu chefe, mas era gerente e, portanto, tinha um cargo acima do meu. Eliot era casado, idolatrava Pérola, sua esposa, mas, ainda assim, era um boêmio inveterado, um verdadeiro bon-vivant. Enquanto Valadares, um pouco mais velho do que nós, era divorciado e vivia solitário em Florânia, até por que ainda nutria a esperança de ter de volta a sua família.
Estávamos os três reunidos na copa da agência tomando o velho e bom cafezinho.
[Eliot] - E então, nego, você não quer falar um pouco mais sobre a moça sem rosto que está consumindo suas ideias?
[Eu] - Você que nasceu e se criou na cidade, bem que poderia saber sobre ela e me passar informações.
[Valadares] - Opa, vejo que o rapaz nem bem chegou e já encontrou uma paixão!
[Eliot - olhando para mim com escárnio] - Se fosse somente isso, hein, nego!
[ Valadares] - Aí, aí, aí, o que esse novato já anda aprontando? Quem diria, hein?
[Eliot] - Nesses anos todos que mora aqui, Valadares, você já esteve alguma vez na Vila Tereza?
[Valadares] - Nunca. Ouço dizer que é para além de onde Judas perdeu as botas.
[Eu] - Aí é exagero.
[Eliot] - Pois é, mas esse novato aí já foi lá, dormiu e ainda conheceu uma garota.
[Valadares] - Ô, conheceu e já ficou tão apaixonado assim!
[Eliot] - Que nada. Se a paixão fosse por ela eu até entenderia, mas a que ele está apaixonado é outra que sequer sabe se tem nariz e boca, porque o rosto ele ainda nem viu.
[Valadares] - Que nada, Eliot. Aí já é você fazendo gozação!
[Eliot] - Não é gozação, não. Pergunte a ele.
[Eu - sorrindo] - Já vi que, como confidente, você é um repórter, Eliot.
[Eliot] - Que nada, parceiro. Eu e o velho Valadares somos uma dupla de muitas jornadas. Daqui nada sai. E, a propósito, seja bem-vindo para transformar a dupla em um trio fenomenal. Você vai ver que entre nós não têm besteiras, confiamos um no outro e falamos tudo abertamente.
[Valadares] - É isso mesmo, Julião.
[Eu] - Tranquilo.
[Eliot] - E por falar em Vila Tereza, tenho uma proposta de curtição para amanhã à noite. É lá no Jardim Fantasia, que é depois ainda da Vila e já faz limite com o Município de Serraria. Tem um lugar que já faz um tempinho que eu gostaria de conhecer. Acho que a hora é agora, já que o parceiro aí chegou e, em vez de se confirmar como o janota que todos pensamos que fosse, surpreendeu e é um dos caras mais legais que existe.
[Valadares] - Gostei do que você falou aí sobre Julião, mas do resto, quem disse que eu vou assim? Sei lá, esses lugares doidos que você arranja por aí, pode ser uma boca quente. De repente a gente cai num retorno, sei lá e, em vez de sentar num barzinho legal para trocar boas ideias, acaba caindo num puteiro escroto.
[Eliot] - Pior que o lugar de que estou falando é um puteiro mesmo, mas não é escroto, não. É um lugar chamado Casa de Don'Ana. Dizem que somente de chegar e conhecer a dona já terá válido a pena. Dizem que é uma pessoa espetacular e que as meninas também são excelentes.
[Valadares] - Vá sozinho, meu caro, porque essa onda de frequentar puteiro não é comigo, não.
Naquele instante percebi que, realmente, eu estava num processo de autodesconstrução total, em que já não me reconhecia, porém, para minha maior surpresa, eu estava gostando cada vez mais de mim, e do meu novo jeito de ser, porque via meu espírito se tornar cada vez mais aventureiro e, assim, não foi surpresa aquela decisão de fazer compromisso com Eliot.
[Eu] - Pode contar comigo, meu nobre. Aliás, vou consultar um amigo do hotel e se ele estiver de folga, pode contar com ele também. Iremos nós quatro, não é, Valadares?
[Valadares] - Que maluquice é essa, Julião? Onde está o rapaz sério que nos deu aquela palestra no penúltimo sábado? E o cara que disseram que vinha para cá e que era um candidato certo a se tornar um supergerente linha dura da Sanit? Frequentar puteiro, meu velho?
[Eu] - Pois é, meu querido, eu também estou constantemente me fazendo essa pergunta, mas antes que encontremos respostas, que tal darmos um pulinho nesse prostíbulo de Eliot. Que mal fará?
[Eliot] - Viu aí, Valas? Então vamos lá, meu compadre. A ideia não é de fazer nenhum programa sexual.Vamos nos divertir somente. Tomar aquela cervejinha e trocar aquela ideia com as mulheres e, quem sabe, enriquecer nossas experiências com novas histórias de vida.
[Valadares] - Sei lá...
[Eliot] - É assim que você quer ter histórias para contar?
[Valadares] - Então vamos lá nesse negócio. Quem está casado aqui é só você mesmo, seu sacana. Se alguém tiver que se dar mal será você mesmo.
[Eliot] - Que nada, pode ficar tranquilo que com a minha Pérola eu me entendo muito bem. Eu estou lhe dizendo que não vamos fazer nada de mais.
[Valadares] - Repito: quem tem mulher bonita para perder aqui é você.
[Eliot] - Safado. Acho melhor parar de olhar para minha mulher.
[Valadares] - Nunca olhei.
[Eliot] - Não? E como vê que ela é bonita?
Chegaram dois outros funcionários para tomar cafezinho na copa e a minha dupla de amigos deu uma dispersada na conversa, mudando de assunto.
[Eu] - A conversa está boa, mas o dever me chama, pessoal. Acho que vou aprovar o projeto da Fazenda Modelo, Valadares. O agrônomo foi melindroso e mostrou o destino de cada centavo que será investido.
[Valadares] - Ah, eu já peguei projetos assinados por ele. O cara é bom... Tem algum celular vibrando. Acho que vem de você, Julião.
[Eu] - É mesmo. É o meu amigo do hotel que eu falei de ir com a gente...
[Silas] - Bom dia novamente, Julião. Você está muito ocupado no momento?
[Eu] - Sim, mas não tanto que não possa dar atenção a um amigo.
[Silas] - Pior é que não se trata somente de atenção, meu amigo. Preciso de um grande favor. Desses que a gente só pede a irmão. Teria como você comprar uma caixa de uvas com um vendedor instalado próximo ao caixa eletrônico aí ao lado do prédio em que você trabalha? Pode não parecer, mas é muito importante, porque essa uva faz parte da dieta restrita de minha afilhada e somente esse vendedor tem dela por aqui. Eu cheguei a ligar, mas ele me disse que não poderia reservar por telefone e que só tinha uma caixa.
[Eu] - Entendi, meu caro. Tenho que ir imediatamente, não é?
[Silas] - Isso mesmo. Desculpa aí.
[Eu] - Tranquilo. Eu acabei de sair da copa e estava me dirigindo para minha sala, mas nem vou entrar, estou passando direto para descer no elevador.
[Silas] - Muito obrigado, meu amigo. Você não vai se arrepender. Logo mais a gente conversa.
Dirigi-me em direção ao caixa eletrônico e avistei o único vendedor de uvas. A banca estava abarrotada de caixas da referida fruta e eu achei estranho, já que Silas me falou que estaria vazia, mas ainda pensei que o sujeito pudesse trabalhar com mais de uma variedade, ou então que, após a ligação de Silas, o comerciante tivesse feito reposição de mercadoria.
[Eu] - Bom dia, irmão. Você, por acaso, tem alguma outra variedade de uva que já esteja no final e que uma pessoa ligou pedindo para reservar?
[Comerciante] - Negativo, brother. Eu só trabalho com essa variedade e, além disso, como você pode observar, não vendi quase nada ainda hoje. Além disso, quem quiser pode até me chamar de homem da caverna, mas, por opção, não tenho celular.
Eu estava prestes a dizer que ele era mesmo um homem da caverna e também iria perguntar se havia por ali outro vendedor de uvas, mas meu celular vibrou.
[Silas] - Espero que não esteja bravo, meu amigo, mas, se for o caso, antes de brigar comigo, faça mais outro favor: dê uma olhada para a primeira pessoa da fila do banco e me diga se tem algo familiar.
Os olhos eram verdes e contrastavam com a pele fina e escura. Os cabelos eram lisos, finos e cortados bem rasteiros, além de serem tão pretos que mais pareciam azuis marinhos. Fiquei perplexo. Era ela.
Trazia consigo uma criança de seis anos de idade . Olhou para mim sem, contudo, ter me visto, entrou na cabine e fez uso dos serviços bancários. Saiu para passar bem juntinho a mim. Discutia com a criança, que fazia birra para ganhar um cacho de uvas.
[Eloá] - Pode parar, viu Luara! Você já sabe que nosso dinheiro não dá para comprar essas coisas.
[Eu] - Bom dia. Permita-me que eu compre uma caixa dessas para ela.
Olhou-me fixamente para mim. Aquele olhar deve ter durado alguns pouco segundos, porém, pareceu-me que durou longas e gostosas horas. E parecia que ela estava vendo um príncipe, mas, então, tornou-se séria e respondeu.
[Eloá] - Claro! Sem problemas. Pode dar, sim, até por que, pelo visto, ainda que fossem mil caixas, parece que não lhe fariam falta.
[Eu] - Está me chamando de rico? E essa menina? É sua filha? Parece muito com você.
[Eloá] - É minha filha, sim. Seis anos esse troço. Minha parceira de todas horas.
[Eu] - Muito linda.
[Eloá] - Se parece muito comigo e é muito linda, então só me resta agradecer por mim e por ela.
[Eu] - Claro. O elogio haveria de ser para você também.
[Eloá] - Que bom. Agradeça ao moço, Luara. Não é todo dia que se ganha uvas. Diga também que agora temos que ir porque a estrada é longa. Até logo, rapaz...
[Eu] - Julião.
[Eloá] - Eloá
Ela se foi e sumiu da face da terra. Não deixou rastros. Não houve ninguém que me desse pistas do paradeiro dela. Mas ali, naquele instante, se é que eu ainda tivesse alguma dúvida, tive a certeza de que aquela era a mulher pela qual eu lutaria e conquistaria a qualquer custo. Lembrei-me do sinal que recebi no dia da minha chegada a Florânia, quando tive a sensação de que ali eu seria mais feliz do que tudo que havia imaginado nessa vida e então fiquei ainda mais esperançoso de que aquele sinal haveria de ser concretizado e que aquela linda mulher faria parte daquele pacote de felicidade.
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Atualizado até capítulo 40
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