Em um reino nebuloso muito distante, onde a chuva e lágrimas se encontravam, habitava ali um goblin trabalhador, marcado pela desgraça e pelo azar. Sua única função era manter sua família segura em sua cabana trôpega, rodeada de arbustos e musgos. Infelizmente, Glorblo, o Goblin, não era bom no que fazia, nem em nenhuma outra coisa. Pintar paredes, pendurar janelas ou trabalhar com vendas eram algumas das profissões que o Glorblo já havia praticado e falhado. Trabalhar com reparos foi um dom passado de gerações por sua família, mas que não chegou ao pequeno Goblin, que era afligido por uma incapacidade que o tornava um mero espectador das traquinagens da vida. Quando seu trabalho estava feito, recebia seu pequeno salário, mas, ao virar as costas, tudo desmoronava. Não era hábil, tampouco inteligente, sobretudo, era extremamente pobre.
Glorblo, mesmo sabendo de sua inutilidade, se forçava a trabalhar e calejar as mãos, mas, numa sexta-feira chuvosa, perdeu o emprego. A mesa de jantar, uma vez farta, agora estava vazia, e os olhares de sua esposa se tornaram frios como o metal das moedas que ele não podia oferecer. Os vizinhos, antes solidários, passaram a atravessar a rua ao vê-lo, como se ele carregasse uma praga.
Em meio ao tormento que tomava conta de seu coração, uma notícia cruel caiu sobre a aldeia: os impostos haviam aumentado novamente. O rei estava, constantemente, subindo os valores, mesmo que soubesse da situação complicada dos seus súditos. O pobre Goblin se contorcia de raiva ao pensar em tamanha falta de empatia, e foi com esse pensamento que ele foi, no outro dia, fazer o pagamento.
Glorblo reuniu algumas moedas, resultado de um esforço que beirava o patético, e redigiu uma carta ao rei, na esperança de que suas palavras ecoassem em algum lugar do coração real.
Com os olhos marejados, Goblin saiu de manhã, com o pouco dinheiro que havia conseguido. Ao andar pelas ruas, Glorblo era apenas mais um ser entre milhares, que eram esmagados pelo desespero. O choro e a humilhação podiam ser ouvidos em qualquer canto; o barulho dos pobres se misturava com o tamborilar das botas dos guardas, que exerciam a função de um monstro cruel. Chegando sua vez de entregar suas moedas sujas, os gritos de um pequeno garoto penetraram em sua mente.
“Papai, papai!”, a voz familiar guinchava, fazendo seu coração pular, mas era impossível visualizar a pequena criatura em meio à multidão. Glorblo corria e procurava, mas não o encontrava. Os guardas reais expulsavam os moradores, assustando-os com os cavalos, às vezes empurrando e derrubando dezenas de corpos. Forçou-se a pensar que tivesse ouvido coisas ou que ele tivesse ido embora, mas, ao desmanchar a bagunça, o velho Goblin pôde ver seu filho caçula, Glorblino, deitado no chão, totalmente entregue e repleto de moscas que dançavam de zombaria por sua inocência. A camisa esfarrapada de seu filho possuía marcas de ferraduras; seu corpo tão frágil havia sido pisoteado por dezenas de cavalos, a comando de seres cruéis.
Glorblino possuía uma deficiência que dificultava sua locomoção, mal saía de casa, mas ali estava ele, com suas bengalas quebradas. Glorblo se desesperou, e sua tristeza saiu num grito, que mal pôde ser ouvido, enquanto tocava no corpo frio de seu filho, que carregava consigo algumas poucas moedas que poderiam ajudar no pagamento.
Glorblo foi tomado pelo ódio e pela angústia, enterrou seu pequeno filho numa montanha afastada e então percebeu o quão miserável sua vida tinha se tornado. Mesmo que soubesse da sua inutilidade, seu ódio era direcionado ao rei. Que, mesmo com as cartas cheias de lamento, não deu ouvidos ao seu sofrimento, tendo, na verdade, ameaçado matar sua família caso atrasasse ou não pagasse os devidos impostos.
Então, após sua esposa e os outros 7 filhos tê-lo abandonado para morar e desfrutar da riqueza de seu vizinho e amante de sua esposa, Glorblo decidiu dar um fim em sua vida, mas não esperava os boatos que começaram a surgir sobre uma organização comunista que estava decidida a derrubar a realeza. “Um sonho impossível”, muitos falavam, mas foi naquele instante que Glorblo descobriu o que faria antes de sumir deste mundo tão cruel.
Em suas insaciáveis buscas por informação e ajuda, Goblin fez amizade com um ser estranho, diferente, porém inteligente, como se tivesse recebido toda a inteligência dos Goblins. Seu nome era Karl Marx, um goblin velho que usava drogas, mas possuía uma grande sabedoria. Glorblo se lembra perfeitamente da primeira conversa que tivera com Karl.
— Mas então, ó Glorblo, o Goblin Desgraçado, que se arrasta pelas estradas mais tortuosas da existência, pergunto-te: qual é o destino que abraças nas obscuras tramas do seu dia a dia? O que fazes de tua vida, repleta de infortúnios e desgraças, enquanto o mundo à tua volta dança de felicidade? Em meio a este vasto cosmos, em que seres celestiais se debatem entre a luz e a escuridão, qual é a tarefa que eleges para ti? Serás tu, ó Glorblo, um mero ser azarado e brinquedo do universo, ou clamarás por um significado que transcenda as amarguras que te cercam? Reflita, criatura desprovida de felicidade, possuidora de olhos desesperados, sobre os caminhos tortuosos de sua jornada. Será que seus passos entrarão numa areia movediça, ou sua face se assemelha ao personagem de comédia trágica, em que o riso e o choro dão as mãos? Que desígnios, que aspirações, que lamentos ou anseios sacodem tua alma errante nas amplas florestas do infortúnio?
— Peço perdão, ó Grande Sábio Goblin Karl, mas receio não ter entendido sua pergunta.
— Você trabalha com o quê? — Sua voz agora possui o sotaque caipira, demonstrando humildade ao resumir algo glorioso para uma criatura tão tola como o pobre Goblin.
— Eu faço conserto de móveis... — A voz de Glorblo sai baixa, envergonhada, se recusando a admitir que não possui mais emprego algum.
— Concerto de móveis? — O rosto de Glorblo enrubesceu, sua cabeça era invadida pelos pensamentos negativos sobre o que o Sábio Karl poderia pensar de alguém tão miserável. Mas mal sabia Glorblo que as únicas coisas que se passavam pela cabeça de Karl eram as cadeiras arrastando os pés no chão, os copos sobre a mesa ecoando notas diferentes, o bater de talheres se unindo na sinfonia grandiosa. Um concerto de móveis, orquestrado por um goblin. — Meus ouvidos doem apenas de pensar em tal coisa.
Nas semanas que se passaram, inúmeros encontros especiais agitaram a organização de Glorblo. A cada minuto que se passava, a ansiedade tomava mais e mais de sua mente. Todos percebiam seu nervosismo e riam de sua desgraça. Mas, em meio àquela zombaria, Karl era o único que o entendia. E foi naquele dia — 24 horas antes do grande plano ser colocado em ação — que o grandioso amigo de Glorblo foi escondido em seu dormitório. Karl era uma criatura enigmática, possuía experiências jamais vividas e era conhecido por muitos não apenas por sua grande sabedoria e capacidade de preparar ótimos bolinhos de espinafre, mas por um motivo ainda mais incrível.
Sua fama transcendia a sua inteligência; falar de Karl Marx, o Goblin Sábio, era como evocar lendas e sombras antigas. Os demais goblins e criaturas sussurravam entre os corredores que ele era um mestre do contrabando de drogas humanas. Diziam que seu corpo, resistente a grandes quantidades de substâncias ilícitas, havia se transformado em um templo de sabedoria. Os rumores ultrapassaram o que era possível; há teorias que afirmavam que a vasta quantidade de produtos que ele absorvia havia, de alguma forma, propiciado uma evolução em sua mente, transformando-o em um filósofo das sombras.
Naquela noite, as estrelas brilhavam ainda mais intensamente, como se o universo estivesse prestes a conspirar em nosso favor. Em meu favor. Karl me deixará um presente para o próximo dia, um embrulho mal feito, com algumas substâncias ilegais, as mesmas que circulavam nas teorias dos nossos companheiros.
— Apenas um pouco pode lhe deixar mais confiante. — Ele havia encorajado Glorblo; receber aquilo era como uma bênção, e ele havia aceitado com grande honra.
No grande dia, Goblins e outros seres injustiçados pelo sistema se juntaram na Capital Goblindópolis com uma quantidade absurda de armamentos perigosos, carregados por criaturas insatisfeitas e derrubadas pela desgraça. Glorblo havia acordado ativo, seu comportamento havia mudado, mal se parecia com seu ‘verdadeiro eu’ de meses atrás, que havia perdido tudo, que era visto como o inútil, infeliz e miserável. Seus olhos foram tomados por uma coloração escura, raiva pulsava em seu coração, já não mais lembrava de seu passado. Algo havia acontecido, e todos viam isso, mas Karl permaneceu ao seu lado, exibindo um sorriso orgulhoso de sua mais nova criação.
Bombas e tiros explodiam de todos os lados, enquanto os guardas reais abatiam os rebeldes. Mas o que mal sabiam aqueles tiranos era que aquela guerra duraria apenas um dia. Glorblo, tomado por uma fúria insaciável, não pôde conter o ímpeto que o guiava; suas investidas eram complexas e inesperadas. Não sabia de onde havia saído essa força e determinação, mas, de alguma forma, conseguiu adentrar o palácio real, onde encontrou o Rei Gobblar, monarca que havia negligenciado seus súditos e ignorado seu pedido humilhante por ajuda.
Não houve piedade ou compaixão, muito menos deu a chance de o Rei proferir suas últimas palavras. Glorblo, Karl Marx e seus outros quatro companheiros o amarraram e o levaram à Praça do Enforcamento Goblin, e foi naquele local que o Rei Gobblar foi morto por 56 tiros, sendo grande parte das balas da arma de Glorblo. Mesmo que já estivesse morto, Glorblo pisoteou seu corpo com cavalos, igual fizeram com Glorblino, seu precioso filho deficiente, quebrando os ossos reais com sua ira. Em um último ato dos vitoriosos, os goblins penduraram o corpo mutilado do rei pela corda, exibindo-o para toda a vila, um aviso sombrio do que acontece com corruptos.
A vingança havia funcionado. A coroa agora havia sido derrubada e os goblins estavam livres do governo abusivo, mas Glorblo não se sentia satisfeito.
Dois dias após a vitória, Glorblo voltou aos seus sentidos, relembrou seus feitos cruéis, mas não havia arrependimento em seus olhos, nem em seu coração. Os demais companheiros o elogiavam, surpresos com o que ele havia sido capaz de fazer. Uma surpresa, um milagre. O inútil havia marcado a história do mundo mágico.
Após receber os elogios e ser venerado por seus amigos, o velho Goblin correu de encontro à única pessoa que poderia responder suas dúvidas sobre as habilidades que havia adquirido naquele dia, porém que sumiram como fumaça.
— Karl, me conte a verdade. O que aconteceu comigo?
— Glorblo, o subversivo, ergue-se agora como um paradigma de resistência e utilidade. Este Goblin é admirado por suas façanhas e por seu incrível charme que exerce sobre as mulheres companheiras e alguns companheiros. Sua existência, outrora deplorável, está prestes a ser transformada, mas eis a questão: por que se angustia com uma trivialidade tão ínfima? — Karl falava enquanto bebericava sua xícara de café, observando a ansiedade que transbordava do meu corpo — Contudo, se tua curiosidade persiste, lhe dei um pouco do meu tesouro. Recentemente, ao explorar a alquimia das substâncias, descobri que a junção de diversos tipos de drogas proporciona ao corpo e à mente uma transcendência sobre os limites de qualquer coisa. Você, Glorblo, serviu como minha cobaia, e posso atestar que, mesmo que por um breve momento, obtive sucesso.
Glorblo saiu da sala com a cabeça agitada; pensamentos complicados surgiam e se misturavam com sua insatisfação e desejo ainda maior por vingança. A inquietação tomou conta de seu corpo por dias, planejando um caminho ainda mais grandioso com as novas habilidades que viriam depois que roubasse o restante dos ilícitos que seu amigo preparara.
Um sábado ensolarado clareou a mente de Glorblo e decidiu que iria agir pela madrugada, com todos os passos já fixados em sua cabeça. Seu único objetivo era a destruição. Desejava destruir cada governo em que houvesse insatisfação por meio da população. Destruiria tudo, mostraria à sua família do que seria capaz, marcaria seu nome nos livros de história e reinaria diante da crueldade do mundo que habitava.
Ao adormecer da vila, Glorblo se espreitava pelas ruas e pelos corredores, avistando, de longe, o corpo podre em decomposição do antigo rei, fazendo um sorriso brotar em seus lábios. A casa de Karl estava escura, as janelas abertas, como se o convidasse a invadir a casa de seu fiel amigo. Passando pela porta, tomou cuidado nos passos ao passar pelo chão que rangia, segurava sua respiração e se esforçava para enxergar em meio à escuridão que assombra a casa.
Finalmente, Glorblo havia conseguido encontrar o tesouro que havia sido compartilhado consigo semanas atrás. Pegou com suas mãos calejadas, enquanto tremia, mas, ao se virar, uma lamparina acendeu, substituindo a escuridão sufocante por uma luz fraca, carregada por um goblin que emanava sabedoria, seus olhos semicerrados como se conseguisse ver o fundo da alma do ladrão.
Glorblo esperava que fosse detido, que recebesse um sermão, torcia para que isso acontecesse. Pedia com os olhos que Karl o parasse ali mesmo e o fizesse desistir de tudo isso, mas a resposta que chegou aos seus ouvidos o surpreendeu.
— Siga seu caminho. Já não é mais o mesmo incapaz e infeliz Glorblo, só não se arrependa. — A voz soava indiferente, mas, ao mesmo tempo, carregava uma leve preocupação, como se soubesse o que Glorblo faria a seguir.
Já havia começado, não podia andar para trás, não podia se humilhar agora que já havia dado o primeiro passo, então Glorblo pôde apenas assentir com a cabeça e sair da velha casa, carregando um pacote que mudaria seus próximos anos.
Glorblo partiu em uma missão solitária, mas não olhou para trás e carregava consigo uma determinação exuberante. Seu próximo destino era o País Orc, que enfrentava, há tempo, uma ditadura, rodeado de censuras e perigos. Sentiu medo, estava sozinho em território desconhecido e problemático. Andou por pântanos e uma grande chuva caiu em sua cabeça, deixando Glorblo encharcado, mas ainda ativo.
Quando percebeu que estava perto de um centro populoso de orcs, o goblin fugitivo subiu em uma árvore cheia de folhas para se esconder enquanto descansava e começava os preparativos das drogas roubadas. Uma pequena quantia foi ingerida, e adormeceu minutos depois.
Glorblo acordou num pulo; não passava nada em sua mente além de vingança. Seus passos eram grandes, mesmo para um goblin, seu rosto estava contorcido por uma careta de ódio, carregando em suas mãos uma arma pesada, com facas amarradas no corpo e um arco em suas costas.
Flechas foram lançadas, militares caíram, cavalos relinchavam ao receberem os tiros. Eram belos animais, gloriosos com sua crina bem cuidada, mas ali, para Glorblo, aqueles animais adoráveis eram monstros. Fizeram parte do assassinato de seu filho; não havia misericórdia. A mente de Glorblo se desligou, mas as ações e investidas perigosas só haviam começado. Havia levado tiros, mas não sentia a dor; quanto mais difícil ficava, mais seu sorriso crescia.
No fim do terceiro dia, Glorblo obteve sua vitória sozinho. Não soube exatamente como fizera aquilo; quando se deu conta, já estava caminhando pelas pedras com a cabeça do ditador Orcário em suas mãos encharcadas de sangue inimigo. Orcs festejaram, mesmo que estivessem receosos com o herói inesperado.
As semanas de Glorblo foram agitadas; gritos e sangue estavam por toda parte. As drogas faziam efeito rápido, mas ele queria mais. A quantidade foi aumentando gradativamente, deixando seu corpo forte, tornando-o implacável. Um exército não era páreo para o goblin, mesmo que estivesse sozinho.
As armas de Glorblo começaram a ser adquiridas por colegas que ele fazia em sua jornada. Ele os salvou, e o pagamento era armas e informações. Com isso, Glorblo podia invadir qualquer lugar, podia combater quem ele quisesse, desde que ainda tivesse as drogas por perto.
Numa quinta-feira, quatro meses após sua partida, Glorblo invadiu o reino das Fadas, liderado por uma rainha cruel que matava crianças queimadas e ordenava a morte de refugiados, fazendo-os de jantar no outro dia.
Glorblo não suportou a história dessa rainha, soube que seu exército era um dos mais ferozes e perigosos, mas isso não o preocupava, pois tinha suas habilidades. O goblin renascido cortava a garganta dos soldados fadas, matava qualquer um que tentasse impedir de alcançar seu objetivo, porém uma tonelada de lembranças surgia em sua mente, mesmo que estivesse em um momento tão crucial.
Os rostos familiares apareciam, de seu antigo amigo sábio Karl, que havia sido o único que estivera ao seu lado. Lembrou-se de sua esposa, Globerta, esbelta e inteligente, que não suportou ter Glorblo como marido e o traiu com seu vizinho. Lembrou de Glambrina, sua filha mais velha, de Gorplito, Gorbunk, Glibnark, Glibra, João Carlos e Glorblin. Lembrou-se de seu falecido filho, Gorblino, que morreu pela injustiça do mundo. Estava vingando sua morte. Lembrava-se de sua vida passada, de como era deprimente, desgraçado e impotente. Como nunca conseguia algo bom, nunca conheceria a felicidade de fato.
Com tantas lembranças, não conseguiu prever o ataque forte de uma soldada, que o atingiu na cabeça, deixando-o zonzo por alguns segundos, antes de correr para o meio da floresta. Seu corpo experimentou a sobriedade depois de meses, mas Glorbo não entendia o motivo, já que havia ingerido a mesma quantidade da semana passada. Um pensamento horrível o atingiu; as drogas não faziam mais efeito. Isso não podia acontecer, não agora que estava tão perto, que estava tão feliz.
Glorblo não podia permanecer ali, precisava de ajuda. A sabedoria de Karl, perdida em algum canto distante de sua memória, era todo o consolo que almejava. Mas seu corpo estava enfraquecido, cedia sob o peso do desespero. Cada passo era um sofrimento; suas pernas pareciam estar presas a pedras, como se não pudesse controlar o próprio corpo. Sua mente era como um labirinto enredado pelo cansaço, não conseguia decifrar o que estava sentindo, tudo ao seu redor havia se tornado um borrão caótico, rodeado de uma névoa de incerteza e medo, mas Globlo precisava fugir.
Com um último fio de esperança e força, Glorblo começou uma corrida desajeitada. Suas pernas contra seu desespero, enquanto tropeçava em espectros invisíveis. Lágrimas ardentes escorriam de seus olhos, testemunhando sua angústia, que havia sumido de sua vida por meses. A escuridão, que Glorblo tanto temia, respondeu ao seu medo, envolvendo-o em um abraço gelado. E, sem alguém para segurar seu corpo, Glorblo despencou em um abismo sem fim.
Quando Glorblo abriu os olhos, não estava mais na floresta escura, mas sim em uma sala aconchegante e familiar. A luz e o calor vinham de uma lareira; suas lembranças estavam bagunçadas, mas levantou-se cuidadosamente, olhando ao redor, até reconhecer a figura estranha que o encarava do outro lado da casa.
— Glorblo, ó, ser encarnado na crueldade e tolice, como é intrigante observar o quanto a ignorância e o desejo de vingança podem dominar um espírito. Em sua cegueira, você se desfez; a mão que deveria protegê-lo foi a que o derrubou; a mente que deveria iluminar sua vida foi a que o traiu; e o punho que deveria ser exibido por força e coragem o atingiu. É fascinante e trágico, não acha? Como a criatura se torna prisioneira de suas próprias criações? — Karl Marx, imutável em sua essência, permanecia ali com sua barba desalinhada e olhar sereno. Como se uma névoa densa se dissipasse dos seus olhos, Glorblo vê que o recheio de sabedoria que outrora enxergava não se passava de um conjunto de tolices. A inteligência que transbordava de Karl parecia agora ecoar em um espaço vazio e desprovido de significado.
— Amigo Karl, não percebes? Eu estava vingando meu filho, minha família e a vida de outros injustiçados, semelhantes a nós! Fiz tudo que podia, mas meu objetivo não foi atingido ainda...
— Seu objetivo jamais será atingido, Glorblo. Acabou. Você está muito fraco para continuar qualquer caminho.
— Mas eu não entendo... O senhor não pode me curar?
Karl olha para o rosto do goblin com pena, seu rosto se entristece, e ali Glorblo entende. Não há mais volta, ele não poderia ser curado, pois já estava morto. Não entendia ao certo como conseguia conversar com Karl, mas o outro parecia acostumado com isso. Era como se estivessem em sua mente, mas sabia que o homem que estava à sua frente era verdadeiro. Uma última conversa antes de seu último suspiro.
— Glorblo, retornasse à tua condição de ignorância e impotência, mas tenho algo a revelar, à luz da verdade que sempre existiu aos meus olhos, embora permanecesse oculto aos seus. — Ele respirou fundo, tomando fôlego enquanto o olhava fixamente — Desde o princípio, foste dotado da força de destruir impérios e da habilidade de derrubar reis e rainhas. Dentro de ti reside a semente do poder, um potencial inexplorado. As vozes maldosas das pessoas convenceram-te de tua intuição, de que eras cheio de valor, rotulando-te como azarado. Precisavas de um empurrão, de um estímulo que pudesse acordar sua força. As drogas surgiram como solução ilusória para que você despertasse. Contudo, essa rota não foi necessária para a plenitude de sua existência. Agora, teu corpo se aproxima da linha tênue da vida e da morte. Que nosso último suspiro não seja carregado de arrependimento, mas sim uma aceitação de que sempre tivemos poder de nos definirmos e de sermos comandantes do nosso destino. Você salvou pessoas, mesmo que estivesse matando a si mesmo.
Quando Karl terminou seu discurso, lágrimas brotaram e encheram os olhos. Um vento soprou, apagando o fogo caloroso da lareira, substituindo-o pela frieza da tristeza que eu, Glorblo, sentia naquele momento. O assobio do vento o chamava para o além, enquanto olhava ao redor, percebendo que tudo estava desvanecendo, inclusive seu antigo e fiel amigo. De repente, Glorblo estava envolto na escuridão, sozinho e com frio, com apenas suas lembranças fazendo companhia.
Imaginou que, após morrer, veria seu filho brincando nos céus, mas, onde ele estava, não havia nada além de areia e escuridão. Contudo, um trovão soou, fazendo o goblin se virar assustado, vendo agora uma grande tela que surgiu em segundos, deixando uma cadeira de madeira posta em frente ao objeto estranho.
Após Glorblo se sentar, um filme começou, e pôde decifrar os personagens em poucos segundos. Era sua vida, sua lamentável e infeliz vida. Tentou se levantar para ir embora, mas agora estava preso e só restava o fardo de rever suas infelicidades por um tempo indeterminado. Em sua cabeça, Glorblo pensava na felicidade que poderia ter tido, que poderia ter proporcionado à sua família. Agora, ele percebia o quão tolo havia sido. Não há por que se lamentar agora, então o velho goblin fechou os olhos, permitindo que as lágrimas descessem, e se entregou ao castigo que o esperava.