Rafael tinha 35 anos e uma rotina silenciosa. Seu apartamento pequeno era seu refúgio, suas manhãs começavam sempre da mesma forma: café preto, noticiário na TV e um olhar distraído para o espelho grande que ocupava quase toda a parede do quarto. Não que ele fosse vaidoso, mas o espelho estava ali desde que se mudara, herdado do antigo morador. Ele não o tirava por pura preguiça.
Foi numa manhã cinzenta e comum que algo mudou. Enquanto passava a mão pelo cabelo e encarava o espelho sem muito interesse, percebeu algo estranho. A imagem que refletia... não era a dele.
— O quê...?
No espelho, havia um menino. Jovem, talvez com pouco mais de vinte anos. Os cabelos castanhos caíam de forma bagunçada sobre a testa, os olhos castanhos tinham um brilho curioso e suave. Ele estava ali, parado, olhando Rafael do outro lado, como se também estivesse surpreso.
— Você... está me vendo? — perguntou o garoto, hesitante.
Rafael deu um passo para trás. O coração disparou.
— Isso é um sonho?
— Talvez — respondeu o jovem com um sorriso tímido. — Meu nome é Pedro.
Nos dias seguintes, Rafael passou a ver Pedro todas as manhãs. A princípio, achou que estava perdendo a sanidade. Mas Pedro era tão real. Eles conversavam sobre tudo: livros, filmes, música. Pedro dizia coisas estranhas sobre o mundo, sobre carros que voavam, cidades suspensas, dispositivos que respondiam ao pensamento. Dizia que era de 2050.
— E você? — perguntou Pedro uma vez. — De onde é?
— 2025 — respondeu Rafael, franzindo a testa. — Isso é impossível.
— Ou talvez não. Talvez o espelho conecte tempos, não pessoas.
A ideia parecia absurda, mas a presença de Pedro era reconfortante. Rafael começou a ansiar pelos momentos diante do espelho. Era como se, pela primeira vez em anos, ele tivesse algo pelo qual esperar. As conversas viraram sorrisos. Os sorrisos, gestos. Um dia, Pedro encostou a mão no vidro, e Rafael fez o mesmo. Por um instante, ele sentiu algo quente. Quase real.
— Se a gente tivesse se conhecido no mesmo tempo, o que você acha que teria acontecido? — perguntou Pedro, com os olhos brilhando.
— Acho que teria me apaixonado por você — respondeu Rafael, sem hesitar.
Pedro sorriu, e naquele sorriso havia uma resposta silenciosa, uma confirmação mútua de um sentimento que já não cabia no espelho.
Mas então, Pedro desapareceu.
Rafael passou dias diante do espelho, esperando. Chamando. Implorando. Nada.
A realidade veio como um soco no estômago. Pedro não existia. Tinha sido só um sonho. Um delírio. Uma invenção da mente solitária de um homem que vivia sozinho num apartamento empoeirado.
Desesperado, Rafael buscou respostas. Foi a médicos. Psiquiatras. Nada fazia sentido.
E então, a dor. Uma dor aguda no peito, o mundo girando, e escuridão.
Quando acordou, tudo era branco. O teto, a luz, os lençóis. Havia tubos em seu braço. Uma enfermeira sorriu.
— Bem-vindo de volta, Rafael.
Foram dias até entender. Ele estivera em coma. Um acidente vascular cerebral. Dois anos. Tudo o que viveu, tudo com Pedro, foi parte do seu subconsciente tentando sobreviver. Criando laços. Inventando amor.
A dor foi absurda. Saber que Pedro não existia, que nunca existiu... foi como perder alguém real.
Rafael aprendeu a andar de novo. A comer, a escrever. Com esforço, voltou para a vida — mas sempre carregando aquela saudade que não tinha forma nem tempo. Os médicos diziam que era comum ter sonhos vívidos em coma. Mas ninguém entendia o quanto aquilo parecia verdadeiro.
2050 chegou, como uma maré. A tecnologia havia avançado. As ruas eram outras. Rafael, agora com 60 anos, envelhecera pouco devido a tratamentos modernos. Morava com um primo, saía raramente, mas já andava pelas ruas sem medo.
Foi numa dessas caminhadas que tudo aconteceu.
Era um dia quente. Rafael caminhava por uma feira aberta no centro da cidade. Foi quando parou. Seu coração congelou.
Ali, entre as pessoas, estava ele.
Pedro.
Ou alguém absurdamente idêntico. Os mesmos olhos castanhos, o mesmo jeito de andar. Um pouco mais velho, talvez, ou exatamente como Rafael se lembrava.
Sem pensar, ele se aproximou. O garoto, agora um homem feito, olhou para ele com surpresa.
— Desculpa — disse Rafael, a voz embargada. — Qual é seu nome?
— Pedro — respondeu o jovem.
O coração de Rafael deu um salto.
— Pedro... Pedro da Silva? — perguntou, quase sussurrando.
O garoto assentiu.
— Sim. Meu pai se chama André. Ele conhecia sua família. Acho que já ouvi seu nome.
Havia silêncio entre eles. Olhares presos. E então Pedro franziu a testa.
— Espera... a gente já se conhece?
Rafael sentiu um arrepio pela espinha.
— Talvez... — disse, emocionado. — Em algum espelho do tempo.
Pedro riu, um riso leve, mas confuso.
— Eu tenho sonhos estranhos às vezes — confessou. — Com um homem mais velho... e um espelho. E eu sempre acordo sentindo como se tivesse perdido alguém importante.
Rafael não conseguiu segurar as lágrimas.
— Talvez você só esteja lembrando... de mim.
O silêncio que se seguiu foi cheio de significados. A multidão continuava passando, indiferente. Mas para Rafael e Pedro, o tempo parou.
Não era um reencontro. Era um recomeço.