A FEBRE DA TRANSFORMAÇÃO

Os dias que se seguiram àquela noite de lua crescente foram marcados por uma inquietação crescente em Elara. A atmosfera na mansão dos Silves parecia ter mudado. O silêncio, antes apenas melancólico, agora soava carregado de uma antecipação sinistra. Cada sombra parecia mais profunda, cada rangido da casa mais ameaçador. E dentro de Elara, uma tempestade interna se formava, uma força que ela não conseguia mais conter.

Ela tentava manter uma rotina, mas era como tentar segurar um rio com as mãos. As tarefas mais simples se tornavam obstáculos hercúleos. Ler, que antes era seu refúgio, agora parecia inútil. As palavras dançavam na página, sem sentido, enquanto sua mente se perdia em sensações novas e avassaladoras. Seus sentidos estavam em alerta máximo. O cheiro da terra úmida após uma chuva leve, que antes lhe trazia conforto, agora parecia intensificar um aroma mais primitivo, um cheiro de presa, de sangue. Ela ouvia os passos de seu pai no andar de cima com uma clareza assustadora, o bater de seu coração como um tambor distante, mas distinto.

A força física que a dominava era o mais perturbador. Pequenos objetos que antes ela pegava com delicadeza, agora pareciam frágeis em suas mãos. Uma vez, ao pegar um copo de água, a pressão em seus dedos foi tamanha que o vidro estilhaçou, espalhando cacos pelo chão. O susto a fez recuar, o coração disparado, um misto de pânico e uma estranha excitação percorrendo suas veias. Era como se seu corpo estivesse se tornando um recipiente inadequado para a energia que fervilhava em seu interior.

Seu pai, Silas, notava a mudança. Ele a observava com uma apreensão velada, seus olhos azuis, tão semelhantes aos de Bartholomew, agora carregados de uma preocupação profunda. Ele evitava o assunto da lenda, fingindo que tudo era apenas uma fase, um nervosismo juvenil. Mas Elara sabia que ele sabia. Ele sentia o mesmo fardo, a mesma sombra que pairava sobre sua linhagem.

— Você parece pálida, Elara.

— Disse Silas certa manhã, enquanto tomavam café em um silêncio tenso.

—Não tem dormido bem?"

Elara forçou um sorriso.

— Estou bem, pai. Apenas… pensando.

—Pensando em quê?

Ele perguntou, a voz suave, mas com uma ponta de urgência.

—Sobre o futuro? Sobre deixar esta casa?

Deixar aquela casa era o que ela mais desejava. Fugir da névoa, da floresta, dos sussurros do passado. Mas ela sabia que não importava para onde fosse, a maldição a seguiria. Era um parasita que se alimentava de sua essência.

Naquela noite, a lua estava mais cheia, um disco prateado que lançava sombras fantasmagóricas através das janelas da biblioteca. Elara sentiu uma dor aguda nas costas, como se algo estivesse se rompendo sob sua pele. Ela se contorceu, agarrando-se à borda da mesa, os dentes cerrados. Era uma dor diferente de qualquer outra que já sentira, uma dor que parecia vir de dentro dos ossos, de dentro dos músculos.

Ela olhou para o espelho antigo que ficava em um canto da biblioteca. Seu reflexo parecia distorcido, os olhos mais fundos, as pupilas dilatadas. Havia uma selvageria emergindo, uma ferocidade que a assustava e, ao mesmo tempo, a atraía. Ela sentia uma fome que não era de comida, mas de algo mais primitivo, uma fome de… caça.

Lembrou-se das palavras de seu avô.

A força que vem do lobo não é apenas física, Elara. É a força da natureza em sua forma mais pura, a força da sobrevivência, a força de um predador que não conhece piedade.

A cada dia, a transformação se aproximava. Elara sentia seu corpo se moldando, não de forma visível ainda, mas em um nível celular, molecular. Seus ossos pareciam mais densos, seus músculos mais firmes. Ela se sentia mais ágil, mais forte. E a cada noite, a lua parecia chama, um convite irresistível para abraçar a escuridão.

Ela começou a ter sonhos vívidos. Sonhos de correr pelas florestas sob a luz da lua, de sentir o vento em seus pelos, de rastrear presas com uma precisão instintiva. Em seus sonhos, ela era livre, poderosa, sem as amarras da civilização ou da moralidade humana. E ao acordar, a sensação de perda era quase insuportável.

Um dia, enquanto caminhava pelos jardins da mansão, ela avistou um pequeno coelho. Instintivamente, ela se agachou, seus músculos tensos, pronta para o bote. O instinto era tão forte, tão natural, que ela ficou paralisada por um momento, chocada com a própria reação. Ela se levantou abruptamente, o coração batendo descompassado, e correu para dentro da casa, tentando fugir de si mesma.

Seu pai a encontrou sentada no chão da biblioteca, tremendo. Ele se ajoelhou ao lado dela, colocando uma mão reconfortante em seu ombro.

—Elara, o que está acontecendo?

Ele perguntou, a voz embargada pela emoção.

Elara ergueu os olhos para ele, lágrimas de frustração e medo escorrendo pelo rosto.

—Eu não sei, pai. É… é como se algo estivesse assumindo o controle. Eu sinto… eu sinto que não sou mais eu.

Silas a abraçou forte.

—Eu sei. Eu sei que é difícil. Mas você não está sozinha nisso. Nós somos Silves. Carregamos um fardo, mas também carregamos uma força. Ele hesitou, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. Seu avô me contou muitas coisas. Sobre como lidar com isso. Sobre como… aceitar.

— Aceitar?

Elara sussurrou, o horror em sua voz.

—Aceitar me tornar… aquilo?

—Não é aquilo, Elara. É parte de você. Uma parte que precisa ser compreendida, controlada. Não é uma doença, é uma herança. Uma herança sombria, sim, mas que pode ser domada.

As palavras de Silas, embora tentassem ser reconfortantes, apenas aumentavam o pavor de Elara. Domar uma fera que se manifestava com tanta força bruta? Como ela poderia sequer pensar em controlar algo tão primordial?

Naquela noite, a lua estava quase completa. Elara não conseguiu dormir. Ela se sentia febril, como se uma doença viral estivesse correndo por suas veias, acelerando seu metabolismo, aguçando seus sentidos a um ponto de dor. Cada som era amplificado, cada cheiro era avassalador. Ela sentia seus ossos se alongando, seus músculos se contraindo em espasmos involuntários.

Ela se levantou e foi até a janela. A floresta parecia chamar com uma voz rouca e sedutora. Era uma força irresistível, uma pulsão que a implica para fora, para a escuridão, para a liberdade selvagem. Ela sentiu seus dentes latejar, sua mandíbula se alongar. Um rosnado baixo escapou de sua garganta, um som que ela nunca havia ouvido antes, um som que a fez tremer com uma mistura de terror e fascínio.

A transformação estava ao virar da esquina. Elara sentia a fera dentro dela se agitando, ansiosa para romper as barreiras, para se libertar e abraçar a noite. A força era avassaladora, uma maré crescente de instinto e poder bruto. Ela sabia que, em breve, não haveria mais Elara Silves como a conhecia. Haveria apenas a besta, a sombra, o Lobisomem Negro. E a floresta, esperando por sua chegada.

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