A Águia Negra, a orgulhosa nave de combate que um dia servira a Alalu em tempos de glória e comando, era agora pouco mais que uma casca metálica ferida, impelida através do negrume cósmico pela teimosia de seu único ocupante e pela energia residual de seus cristais moribundos. A fuga de Nibiru fora um borrão de adrenalina e medo calculado, cada manobra nos corredores secretos do palácio, cada desvio das patrulhas espaciais de Anu, um lance de dados contra um destino que parecia selado. Mas Alalu, o rei deposto, não era homem de aceitar o fim sem antes cuspir no olho do universo.
Sozinho na cabine de comando, que agora parecia vasta e fria como um mausoléu, ele era um turbilhão de pensamentos amargos e planos febris. A imagem de Anu, o usurpador (assim Alalu o via), sentado em seu trono, proferindo julgamentos sobre sua "loucura" e "imprudência", queimava em sua mente. A humilhação no Grande Conselho. A traição de seus antigos aliados. E Lahma... ah, Lahma, o rei fraco que ele derrubara na esperança de salvar Nibiru, apenas para falhar de forma ainda mais espetacular. Teria sido diferente se Lahma ainda reinasse? Uma morte lenta e fria para o planeta, em vez da agonia febril que ele, Alalu, infligira com seu plano vulcânico? Eram perguntas que o assombravam nas longas vigílias, enquanto a poeira de estrelas distantes deslizava pelo visor.
Mas não havia tempo para remorso. Apenas para sobrevivência e, quem sabe, para uma vingança tardia ou uma redenção impossível. Olhava para o compartimento selado onde as Armas de Terror repousavam, sua presença um conforto sombrio. Eram um fardo, um perigo constante, mas também sua única apólice de seguro, seu trunfo final contra um universo que parecia conspirar para destruí-lo. Poderia usá-las para se defender? Para negociar? Para destruir seus inimigos se tudo mais falhasse? A ideia era uma brasa que ele soprava com cuidado em sua mente.
A viagem era um estudo em isolamento. Ciclos se fundiam em ciclos. Os sistemas da Águia Negra, não projetados para uma travessia tão longa e desassistida, começavam a protestar com mais frequência. Luzes piscavam nos painéis, alarmes soavam com uma irritante intermitência, exigindo reparos improvisados com as poucas ferramentas e peças sobressalentes que conseguira trazer. A água reciclada tinha um gosto metálico cada vez mais forte, as rações de emergência, um sabor de cinzas. E a solidão... a solidão era uma criatura viva na cabine, sussurrando dúvidas, alimentando sua paranoia. Imaginava naves de Anu em sua perseguição, sentia olhares invisíveis perscrutando seus escudos enfraquecidos. Dormia pouco, sobressaltado por pesadelos povoados pelos fantasmas de Nibiru e pelos terrores desconhecidos do espaço profundo.
Então, após uma eternidade de vazio, os sensores de longo alcance, operando no limite de sua capacidade, detectaram a anomalia à frente. O Bracelete Martelado. O cemitério de Tiamat. Alalu sentiu um arrepio percorrer sua espinha Anunnaki. Conhecia as lendas, os perigos. Mas não havia como contorná-lo se quisesse alcançar o sistema solar interior.
Mergulhou no caos de rochas e gelo com a perícia de um piloto experiente e a determinação de um condenado lutando por sua última chance. A pequena Águia Negra era um peixe minúsculo num cardume de tubarões cósmicos. Fragmentos do tamanho de templos passavam zunindo, suas sombras varrendo a cabine. Campos de detritos menores chacoalhavam a nave como uma tempestade de granizo. Os escudos defletores, já enfraquecidos, brilhavam e gemiam sob os impactos, ameaçando ceder a qualquer momento. Alalu não desviava o olhar dos sensores, suas mãos nos controles, antecipando trajetórias, fazendo correções de curso no último instante, seu corpo tenso vibrando com cada solavanco. Viu um asteroide do tamanho de uma pequena lua nibiruana passar tão perto que pôde distinguir as crateras em sua superfície escura e gelada. Sentiu o impacto de um fragmento maior na seção de popa, um estrondo metálico que fez a nave inteira estremecer e perder momentaneamente a estabilidade. Alarmes dispararam, luzes vermelhas pulsaram. Por um instante, pensou que era o fim. Mas conseguiu retomar o controle, os motores protestando, a estrutura avariada, mas ainda voando.
Quando finalmente emergiu do outro lado do Bracelete, banhado em suor frio, os nervos em frangalhos, mas vivo, um grito rouco, um misto de alívio e triunfo selvagem, escapou de sua garganta. Olhou para trás, para o turbilhão caótico de rochas que ficava para trás, e uma fúria orgulhosa o preencheu. "Eu! Eu, Alalu, o primeiro a cruzar as ruínas da velha Tiamat e sobreviver! Que Anu e seus covardes em Nibiru, com suas frotas e seus cálculos, saibam que a vontade de um Anunnaki determinado pode desafiar o próprio caos!" Seu grito ecoou apenas para si mesmo, mas para ele, era uma vitória, um sinal de que o Destino talvez ainda não o tivesse abandonado completamente.
No sistema solar interior, o Sol era uma presença mais quente, mais vibrante. Lahmu, o planeta vermelho, passou ao largo como um olho ensanguentado, um lembrete da fragilidade dos mundos e talvez de seu próprio futuro. Não parou. Seu objetivo era o terceiro planeta, a joia azul que os antigos registros mencionavam.
E então, ele a viu. Ki. A Terra.
Mesmo para um coração Anunnaki endurecido pela amargura e pelo exílio, a visão era de uma beleza que cortava a respiração. Um globo de azuis profundos e brancos rodopiantes, com os verdes e marrons dos continentes prometendo vida, calor, talvez até mesmo redenção. Para Alalu, não era um novo lar. Era um campo de batalha em potencial, um tesouro a ser reclamado, a última cartada em seu jogo desesperado contra o esquecimento.
A aproximação final foi tensa. A Águia Negra, marcada pela travessia do Bracelete, estava avariada. Sistemas de navegação falhavam, os escudos térmicos operavam no limite. Ele não tinha os mapas detalhados de telemetria para um pouso suave. Escolheu uma trajetória que lhe pareceu menos turbulenta, mirando a vasta região entre os dois grandes rios que os sensores de longo alcance (os poucos que ainda funcionavam) indicavam como a mais promissora.
A reentrada foi um mergulho no inferno. A nave tornou-se um cometa artificial, envolta em plasma incandescente, sacudindo e vibrando como se fosse se desintegrar a qualquer momento. Alarmes soavam ensurdecedores. Alalu lutava com os controles, o suor cegando seus olhos, os músculos tensos como cordas de aço. Através do visor embaçado pelo calor, viu uma paisagem desconhecida se aproximando em velocidade vertiginosa – não as planícies férteis que esperava, mas uma imensidão verde-escura e aquática, um labirinto de pântanos e canais que se estendia até onde a vista alcançava. Era tarde demais para mudar o curso. Preparou-se para o impacto, talvez seu último ato como rei e como Anunnaki.
Com um estrondo que fez o universo parecer se partir, a Águia Negra atingiu a água e a lama. A estrutura metálica gemeu, torceu-se, rasgou-se. A nave deslizou por uma longa e terrível distância, abrindo um sulco fumegante na vegetação densa, quebrando árvores retorcidas como se fossem gravetos, antes de finalmente parar, adernada, semi-submersa num igarapé escuro e silencioso, o vapor sibilando de sua carcaça ferida.
Dentro da cabine, escuridão, o cheiro acre de metal queimado e circuitos derretidos, e o silêncio atordoado de quem sobreviveu ao impossível. Alalu estava jogado contra os cintos de segurança, o corpo uma massa de dor, a cabeça latejando como se fosse explodir. Por um momento, pensou que seus ossos tinham se partido, que era o fim. Mas a vontade Anunnaki de viver, ou talvez apenas a teimosia de seu espírito indomável, o fez reagir.
Com um esforço que pareceu levar uma eternidade, libertou-se. Os sistemas da nave estavam quase todos mortos. O comunicador de longo alcance, sua esperança de falar com Nibiru, era um amontoado de fios derretidos. Mas o compartimento selado das Armas de Terror, ele verificou com um alívio sombrio e um arrepio de poder, parecia ter resistido ao impacto, sua luz de status piscando num verde fraco e constante.
Abriu a comporta principal com o sistema manual de emergência. O ar que invadiu a cabine foi um choque. Quente, espesso, carregado com uma profusão de cheiros orgânicos que seu nariz Anunnaki, acostumado à atmosfera controlada e rarefeita de Nibiru, mal conseguia processar. O odor pútrido de decomposição vegetal, o perfume adocicado e enjoativo de flores desconhecidas e vibrantes, o cheiro salobro da água do pântano, e algo mais, um odor almiscarado, selvagem, que falava de vida e de perigo. E os sons… um zumbido agudo e penetrante de miríades de insetos, alguns do tamanho de seus dedos; o coaxar gutural de anfíbios que pareciam gargantas de demônios; o chamado estridente e alienígena de aves invisíveis na copa das árvores; e o farfalhar constante na vegetação densa ao redor – coisas grandes, coisas desconhecidas, movendo-se, observando.
Alalu desceu a rampa torta e instável, os pés afundando na lama quente e pegajosa que borbulhava com gases metânicos. Olhou ao redor. Estava num inferno verde e aquático, sob um céu que começava a se tingir com as cores doentias de um pôr do sol em um planeta estranho. Não havia sinais de civilização, nem Anunnaki, nem humana (se é que já existia de forma que ele pudesse reconhecer). Apenas a natureza primordial, indiferente, talvez hostil.
Estava sozinho. Um deus num pântano. Um rei sem coroa, sem súditos, sem palácio. Apenas sua inteligência, sua força Anunnaki diminuída pela longa viagem e pelo pouso brutal, e o poder terrível das armas que trouxera consigo. Mas estava vivo. E estava em Ki. A jornada através do vazio terminara. Sua jornada em Ki, com todos os seus perigos e suas promessas desconhecidas, estava apenas começando. E ele, Alalu, o exilado, o fugitivo, o rei caído, estava pronto para enfrentar o que viesse. Ou assim ele, em sua teimosia e em seu desespero, precisava acreditar.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 61
Comments