Cael Ferraz,
Alguns meses se passaram. A casa continua silenciosa como um túmulo. As janelas estão sempre fechadas, e até a luz parece evitá-la. O tempo não curou nada. Só aprofundou as feridas que ninguém vê.
Depois da conversa com Marcelo, me afastei completamente do mundo lá fora. Mantive a empresa nas mãos dele, confiando no único amigo que me restou. Passei a acompanhar os relatórios pelo tablet, dar ordens por e-mail, revisar decisões... tudo de longe, tudo à margem. Não porque eu queria, mas porque era o que me restava.
A funcionária que trabalhava conosco há anos, aquela que me ajudava a me arrumar, a comer, a simplesmente existir com alguma dignidade, pediu demissão. Disse que precisava fazer uma cirurgia, que a saúde dela estava frágil demais pra continuar cuidando de alguém. Eu acreditei. Ou talvez só tenha aceitado calado, porque já estava cansado demais pra lutar. Mas sei que tem dedo de Lorena na demissão dela.
E com a saída dela, quem assumiu meu cuidado foi Lorena. Sim, ela. A mulher que diz ser minha esposa. A mulher que carrega meu sobrenome. A mulher que, com um sorriso nos lábios, parece se alimentar da minha dor e sofrimento.
Hoje é mais um desses dias. Eu estava deitado, tentando achar uma posição confortável, quando ouvi o barulho do salto dela ecoando no corredor. Cada passo era uma contagem regressiva pro incômodo. Ela empurrou a porta com o pé, sem cerimônia, e entrou com uma bandeja na mão. A sopa balançava perigosamente.
— Experimenta essa sopa que fiz. Não me garanto muito, mas dá pra comer — disse, colocando a bandeja na mesinha ao lado da cama. A voz dela parecia debochada, mas fingia gentileza.
Tentei sorrir com educação. Peguei a colher com dificuldade, soprei e levei à boca. No instante em que a sopa tocou minha língua, engasguei e cuspi sem querer. Estava insuportavelmente salgada.
— O que foi? — ela perguntou, cruzando os braços.
— Está muito salgada… desculpa. Você sabe que não gosto de comida assim. Fez isso de propósito? E não é só eu, ninguém comeria assim, tão salgado.
Ela me olhou com raiva. A expressão mudou de um segundo pro outro. Largou os braços e se inclinou sobre mim.
— Você deveria agradecer por eu ainda fazer comida pra você! — rosnou. — Você é um mal-agradecido, Cael. Um peso. Um estorvo! Tem que comer salgado mesmo, até não existir mais rins, bom dentro de você.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela se levantou de uma vez, empurrando a bandeja sem querer. Ou talvez de propósito. A sopa quente derramou, caindo em meu abdômen. Gritei de dor. O líquido queimou minha pele antes de ser absorvido pelo tecido do pijama.
— Merda! — soltei, me contorcendo. — Fez de propósito?
— Ah, agora eu sou culpada por isso também? — disse, com um falso espanto. — Foi um acidente. Não faça drama, Cael. Já passou da fase de se vitimizar. E depois você nem sente, tá morto mesmo.
A dor ardia. A sensação de impotência era pior ainda.
Em desespero, tentei me mover, me apoiar no colchão com os braços e alcançar a cadeira de rodas próxima. Mas ao colocar força demais, o corpo instável e desequilibrado fez com que eu escorregasse. A cadeira, mal posicionada, saiu rolando para longe e, sem apoio, meu corpo caiu com tudo no chão.
Bati o ombro, o quadril e senti a pancada dura contra as costelas. O mais humilhante? Ela apenas me olhou, deu de ombros e saiu do quarto como se não tivesse visto nada.
Ali no chão eu continuei, sendo humilhado pela única pessoa que deveria estar do meu lado, que deveria cuidar de mim como prometeu no altar.
Ela voltou com um pano seco logo depois, atirando-o no meu colo com desprezo.
— Se limpa. Não sou sua babá.
Fiquei quieto. Já aprendi que argumentar com ela só piora as coisas. Respirei fundo e tentei, com o pouco de força que me restava, me limpar. Quando terminei, estava exausto. E sentindo minha pele queimar. Lorena havia desaparecido novamente, e eu fiquei ali. Sozinho. Sem banho. Sem troca de roupa. Sentindo o ardor.
Mais tarde, ela voltou ao quarto com um travesseiro novo. Pensei que, por um segundo, ela estivesse tentando consertar algo. Mas me enganei.
— Toma, esse aqui é mais duro. Combina com você — disse, jogando o travesseiro sobre meu rosto.
Afastei com a mão e a encarei.
— Por que está fazendo isso? — perguntei, com a voz baixa, sem conseguir esconder a dor e fúria.
— Porque eu quero, porque pessoas inúteis como você merecem ser tratados assim, ou pior — respondeu, simples, fria.
Naquela noite, ela se recusou a me ajudar a trocar o curativo da perna, e a cuidar da queimadura. Disse que se eu quisesse tanto viver, que fizesse isso sozinho. Eu tentei. Tentei com todas as forças, mas o resultado foi desastroso. A gaze ficou mal colocada, e minha pele ardeu a madrugada inteira. Cada movimento era um inferno, e eu nem sabia se o curativo estava servindo para algo ou piorando tudo.
No dia seguinte, acordei com a garganta seca. Tentei chamar por ela, mas minha voz estava fraca. Quando ela finalmente apareceu, entrou falando alto no celular, como se o quarto fosse só mais uma parte da casa e não o local onde eu mal conseguia existir.
— Preciso de um copo d'água — pedi, quase num sussurro. — Por favor, estou com muita sede. Só me ajude a me colocar na cadeira de rodas, e eu vou sozinho.
Ela olhou para mim como se tivesse ouvido algo irritante.
— Se quiser água, se vire sozinho para sentar na cadeira de rodas. Ah, esqueci… você não pode. Uma pena. No banheiro tem água, pode ir se arrastando até lá, e bebe água. Ah, lembrei, você não vai alcançar o botão do chuveiro. Pode beber da privada, está a sua altura.
Foi embora. Não resolveu nada, não trouxe nada. Voltei a deitar de lado ainda sob o tapete, sentindo a garganta fechar, a raiva crescer, o peito arder por dentro. Algumas horas depois, ela voltou com uma vasilha de arroz mal feito e carne fria e crua. Pelo sol alto, já tinha passado do horário do almoço, e o café ela nunca trouxe.
— Toma. Come logo antes que esfrie mais — disse.
— Essa carne não está fria, está gelada e crua — murmurei. — Acha que sou um cachorro? E nem eles merecem tal tratamento, quanto mais eu.
Ela sorriu de canto.
— Então esquenta com o pensamento. — Ela riu — se continuar reclamando, deixarei você com fome.
Fechei os olhos. Engoli em seco. Cada gesto dela parecia calculado para me ferir, não fisicamente, mas emocionalmente. Me reduzir, me apagar. Ela se alimentava do meu sofrimento e fazia questão de me lembrar disso em cada pequeno detalhe do dia. No entanto, eu fazia de tudo para não entrar em sua provocações, e não dar palco para ela.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
Dulci Oliveira
tomara que a queda dessa nojenta seja a mais cruel possível
2025-04-27
7
Leoneide Alvez
história maravilhosa tá de parabéns amora
2025-04-27
1
Maria Sena
Caracas, será se esse cara nunca percebeu a bipolaridade dessa mulher, nunca sentiu a falsidade dela? Eu tô chocada, isso porque é o marido dela, imagina se não fosse.
2025-05-03
0