Capítulo – A Filha e o Fardo
Uma semana após o baile.
O silêncio do salão ancestral pesava mais que qualquer palavra dita naquele dia. Kátyra estava ajoelhada diante da laje de cristal onde os nomes dos herdeiros estavam gravados com sangue antigo — cada símbolo, uma linhagem, cada linha, um juramento. Seu nome brilhava em azul vívido, entrelaçado à inscrição de Moira, sua avó, como se o destino das duas tivesse sido selado antes mesmo do nascimento.
O eco da revelação ainda pulsava em suas veias. Ela era mais que princesa. Era a Chave da Harmonia, a única capaz de unir os quatro clãs e restaurar o Véu entre os mundos. Um fardo que nem mesmo sua mãe ousara tocar.
Tharion a observava de longe. Havia algo nele que sempre a desconcertava: o olhar sombrio de um Bardaxa, mas a postura de um Guardião. Metade luz, metade sombra — assim como ela, entre a fúria dos dragões e a brisa dos grifos.
— Você já sabia — ela disse, sem encará-lo.
— Suspeitava. O Clã do Vento sussurra coisas que não chegam aos salões de pedra — respondeu ele, se aproximando com passos contidos. — E os Darxas têm olhos por toda parte.
Kátyra se levantou, o manto de prata ondulando com o movimento. Havia lágrimas nos olhos, mas nenhuma escorria.
— Então por que não me contou? Por que ficou em silêncio enquanto eu era apenas... herdeira de um trono vazio?
Tharion tocou o cabo da espada presa às costas. Um gesto de nervo, não de ameaça.
— Porque queria te ver livre — murmurou. — Por uma vez. Antes que o fardo te marcasse.
Silêncio.
Ela se virou para ele, os olhos como espelhos de tempestade.
— E agora? Ainda me quer livre?
Ele hesitou. E nesse intervalo, houve verdade.
— Agora... só quero que você sobreviva.
Ela sorriu, amarga como neve que derrete em cinzas.
— Eu não fui feita para sobreviver, Tharion. Fui feita para incendiar.
E quando ela saiu do salão, seus passos ecoaram como trovões prestes a cair sobre o mundo.
Mais tarde naquele dia.
Na torre mais alta do castelo do Norte, onde os ventos uivavam como sentinelas e as nuvens beijavam o parapeito, Kátyra se refugiou. Ali, entre colunas de obsidiana e tapeçarias antigas, ela podia ser apenas ela — sem títulos, sem véus, sem olhos a julgá-la.
Tharion veio ao seu encontro quando o luar já banhava as pedras. Não pediu permissão. Ele a conhecia o suficiente para saber que ela não queria ser deixada sozinha — mesmo quando dizia o contrário.
— Está fria aqui em cima — disse, parando atrás dela.
— Não sinto o frio — respondeu ela, sem se virar. — O fogo dos dragões me aquece por dentro, lembra?
— Você sempre usa isso como desculpa — retrucou ele, retirando o manto e envolvendo seus ombros. — Mas o fogo também queima.
Ela segurou o tecido com dedos trêmulos. Não era pelo frio. Era por ele. Por estarem ali, onde não deviam. Uma princesa e um mestiço. A herdeira da união e o símbolo da ruptura.
— Se eu cair — sussurrou —, prometeria me odiar?
Tharion deu um passo à frente, aproximando-se de sua pele como se tocasse a superfície de um espelho sagrado.
— Nunca conseguiria. Mesmo se o mundo ruísse por sua causa.
Ela o encarou, e por um instante, tudo pareceu calar. As guerras, os clãs, os juramentos.
— Então você é um tolo — disse ela, com voz falha. — E eu também. Porque eu... — Ela mordeu os lábios. — Eu não quero o trono. Só quero um instante onde o mundo não esteja sobre meus ombros.
Ele tocou seu rosto com delicadeza. E foi então que os lábios se encontraram. Um beijo sem promessa, sem aliança, sem esperança de permanência. Apenas dois seres quebrados encontrando consolo um no outro.
Mas lá embaixo, entre os corredores ocultos da Torre de Ébano, os Darxas já sabiam.
Nada escapa aos olhos daqueles que veem na escuridão.
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Atualizado até capítulo 115
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