O Anjo sumido

Estava sentado no sofá, o celular na mão, encarando a tela como se ela fosse um abismo. O número dela estava ali, salvo e esperando. Laís. Seu sorriso doce, o jeito como ela falava sobre livros... Eu podia ouvir sua voz na minha cabeça, cada palavra impregnada de paixão. Mas algo dentro de mim hesitava.

"Não mande mensagem."

Era o que minha mente repetia como um mantra. Não era justo. Não era certo. Havia coisas sobre mim que ela não sabia, que ninguém sabia, e trazê-la para minha vida poderia ser um erro. Um erro que talvez ela não pudesse suportar.

Suspirei e larguei o celular na mesa.

— Não hoje.

Levantei-me, sentindo a fome me cutucar. Abri a geladeira e encontrei... nada. Apenas um pote de molho esquecido e uma garrafa de água quase vazia. Suspirei novamente.

— Supermercado, então.

Coloquei o casaco, peguei as chaves e saí. O pequeno mercado do bairro estava quase vazio, o que tornava tudo mais rápido. Peguei algumas coisas básicas: pão, leite, ovos. Não queria nada complicado. Paguei e saí, começando a caminhada de volta para casa.

Foi então que aconteceu.

O ar ao meu redor começou a mudar. Uma fumaça escura começou a subir do chão, rodopiando como se tivesse vida própria. O som de garras rasgando o concreto ecoou pela rua deserta, e eu parei, meu coração acelerando, mas não por medo.

— De novo, Abdom? — murmurei, antes mesmo de ele aparecer.

A fumaça tomou forma diante de mim, crescendo, até se solidificar em algo que apenas eu podia ver. Metade humano, metade demônio. Sua pele era cinzenta, quase negra, com marcas que brilhavam em vermelho como lava. Os olhos, dois buracos sombrios, exalavam uma energia maligna, mas familiar. Seus dentes se mostraram em um sorriso largo, inumano.

— Azirrel. — Sua voz soou como uma mistura de várias, cada uma mais grave que a outra. — Faz tempo que não nos encontramos.

Eu cruzei os braços, encarando-o.

— E por um bom motivo. O que você quer?

Ele riu, um som gutural que fez o ar parecer mais pesado ao nosso redor.

— Nada demais. Apenas uma visita amigável. Senti sua hesitação. Algo está perturbando sua mente, e você sabe que eu sempre gosto de ajudar.

— Ajudar? — ri, sem humor. — Você não sabe o significado dessa palavra, Abdom.

Ele deu de ombros, as garras brilhando enquanto caminhava ao meu redor, como um predador avaliando sua presa.

— Talvez. Mas você parece... diferente. Há alguém novo, não é? Uma garota.

Eu estreitei os olhos para ele.

— Como você sabe disso?

— Eu sinto. Você carrega isso em sua energia. Algo novo, algo puro... algo que não combina com você.

Engoli em seco, mas não respondi. Ele estava certo, é claro. Laís era tudo isso e mais. Ela era luz, e eu... Bem, eu era tudo menos isso.

— O que você quer dizer com "não combina"? — perguntei, tentando manter a calma.

Abdom sorriu novamente, dessa vez mais sombrio.

— Apenas que você deveria pensar duas vezes antes de se envolver. Você sabe como essas coisas terminam.

— Não preciso do seu conselho — retruquei, começando a andar em direção ao meu apartamento. — E você não é bem-vindo aqui.

— Ah, mas você sabe que eu sempre entro onde quiser. — Ele riu, seguindo-me sem esforço, as sombras dançando ao seu redor.

Chegamos ao meu apartamento, e ele entrou comigo, como sempre fazia. Sentou-se na poltrona como se fosse o dono do lugar, as garras tamborilando no braço da cadeira.

— Então, me conte sobre ela — disse ele, inclinando-se para a frente. — O que tem essa garota que fez você duvidar de tudo?

Olhei para ele, sentindo o peso da pergunta. Não sabia se devia responder, mas, como sempre, ele tinha esse jeito de arrancar verdades que eu não queria admitir.

— Ela é... diferente. É luz, Abdom. Algo que eu não tenho há muito tempo.

Ele riu, aquele som gutural novamente.

— Luz, hein? Interessante. Vamos ver quanto tempo ela dura antes de perceber o que você realmente é.

Aquelas palavras ficaram pairando no ar enquanto ele ria, e, por mais que eu quisesse ignorá-las, não conseguia. Afinal, parte de mim sabia que ele tinha razão.

Eu olhei para Abdom, que permanecia sentado na poltrona, suas garras batendo ritmicamente contra o braço do móvel. O silêncio entre nós era denso, carregado de algo que não era apenas o peso do que ele acabara de dizer, mas também o entendimento tácito de tudo que estava em jogo. Não eram apenas minhas dúvidas sobre Laís ou o que ela representava para mim; era algo maior, mais profundo. A pergunta que eu estava evitando por tanto tempo finalmente escapou da minha boca, com um tom de curiosidade que não pude esconder.

— E como está a vida, Abdom? Como anda o reinado das forças da revolta contra o TODO PODEROSO?

Ele ergueu os olhos para mim, aquele sorriso torto se expandindo em seu rosto demoníaco, como se a minha pergunta fosse uma piada privada entre nós. Abdom sempre foi alguém que gostava de brincar com o caos, e de certa forma, ele se alimentava disso. O mundo estava em frangalhos, mas ele parecia se divertir com isso mais do que qualquer um.

— Ah, você sabe... a vida de general nunca é fácil — respondeu ele, a voz se arrastando como se estivesse se deleitando com cada palavra. — Mas tem sido interessante. A revolta está se espalhando, mais almas se juntando à nossa causa... e claro, o TODO PODEROSO, como sempre, não tem dado a mínima para nada.

Minha mente ficou em silêncio por um segundo, tentando processar o que ele estava dizendo. O caos estava crescendo, e no entanto, o que eu sentia de mais importante estava cada vez mais longe de tudo aquilo. Eu quase não ligava para a guerra que se aproximava; tudo o que eu queria era entender minha conexão com Laís e o que ela representava para mim. Mas não podia evitar, a curiosidade me empurrava a perguntar mais.

— E como está o seu pai? — perguntei, sem pensar muito. Abdom sempre mencionava o Lorde Infernal em suas conversas, e, apesar de seu tom irreverente, havia sempre um certo respeito, ou talvez medo, que ele não conseguia esconder.

Abdom riu baixinho, a gargalhada ecoando pela sala, e sua presença parecia crescer mais e mais, como se o próprio ar estivesse se tornando mais denso.

— Ah, meu velho pai... está muito ansioso, posso te garantir isso. Não sei o que ele está esperando, talvez uma vitória definitiva, talvez um novo desastre. Mas, veja... há algo interessante acontecendo no lado dele também. O Senhor Lúcifer, você sabe, o líder da nossa revolução contra Deus, tem andado distraído...

Eu o encarei, curioso e desconfortável ao mesmo tempo.

— Distraído?

Abdom sorriu de maneira ainda mais sinistra, os olhos brilhando com um prazer doentio.

— Sim. Dizem por aí que o Senhor Lúcifer tem andado mais... envolvido com um homem humano. E não é qualquer homem, parece que é alguém que está chamando bastante sua atenção. Ele tem passado noites com esse humano, enquanto a revolta contra Deus vai acontecendo sem muito controle.

Fiquei em silêncio, absorvendo as palavras. A ideia de Lúcifer, o Senhor da Revolta, tão distraído com algo tão humano e frágil, algo tão... carnal, era de uma estranheza que eu mal podia compreender.

— E ele não está se importando com a revolta? Com o fim do mundo? — perguntei, tentando entender o tamanho da gravidade da situação.

Abdom deu de ombros, o sorriso dele desaparecendo por um momento, substituído por uma expressão que misturava frustração e indiferença.

— Não, ele não está. E isso preocupa meu pai. O Senhor Lúcifer está, de certa forma, abandonando a guerra. Ele está se deixando levar pelas... tentações dos humanos. Ele não está mais tão preocupado com a nossa revolução contra o TODO PODEROSO. Está mais preocupado em satisfazer suas próprias vontades.

Havia um tom de desdém em sua voz, como se ele próprio visse aquilo como uma falha terrível, uma distração que poderia comprometer tudo o que eles haviam trabalhado para construir.

Eu respirei fundo, tentando entender o impacto disso. O Senhor Lúcifer, que era a figura principal da revolta, agora estava mais focado em desejos pessoais do que na batalha maior que definia o destino do universo. O caos que ele havia prometido agora parecia desmoronar, não pela falta de poder, mas pela falta de foco.

— Isso pode ser... perigoso — murmurei.

Abdom olhou para mim, os olhos escuros se estreitando de uma maneira que não era normal.

— Você não faz ideia.

Eu o observei por um momento, sentindo o peso de suas palavras, e naquele instante, percebi que o que estava se desenrolando ao meu redor, o que eu havia me envolvido, não era apenas uma guerra de mundos ou de deuses. Era uma guerra interna, onde a linha entre a humanidade e a escuridão era mais tênue do que eu queria acreditar. E a cada dia que passava, a escuridão parecia se aproximar mais de mim.

Eu levantei-me, sem responder, e fui até a cozinha. Peguei um copo d'água e deixei o líquido escorrer pela minha garganta, sentindo o refresco como se fosse a única coisa real naquele momento. O barulho do copo tocando a bancada ecoou pela sala, mas não interrompeu o silêncio pesado que havia se instalado entre mim e Abdom.

Ele ainda estava ali, sua presença massiva pairando no ar, mais desconfortável do que qualquer peso físico. Seus olhos, aqueles buracos sombrios, continuavam me observando com uma curiosidade de quem já sabia a resposta, mas queria se divertir com a revelação.

— Então, Azirrel... — ele disse, a voz arrastada e cheia de um prazer sádico. — Voltou a falar com Castiel?

Eu congelei, o copo ainda na mão, e uma onda de raiva se formou dentro de mim. Como ele sabia disso? Como ele sabia de minha conexão com Castiel, o anjo que, por muito tempo, sumiu da minha vida, das suas metas responsabilidades de pai? O que Abdom queria?

A verdade se instalou lentamente, como uma agulha fina perfurando meu peito. Ele estava aqui não por acaso, mas porque queria informações, queria saber mais sobre algo celestial, algo que ele acreditava que eu ainda tinha. Algo que eu já havia deixado para trás.

Abdom continuou, sorrindo de forma maléfica, seu olhar penetrante como se tentasse arrancar as respostas diretamente de minha alma.

— Não é segredo para ninguém que seu pai quer um dos anjos mais poderosos. — Ele deu uma risada abafada. — Castiel, certo? O anjo que você tanto adorava, a luz que você seguia.

Eu virei o copo de água de uma vez, tentando manter o controle, mas dentro de mim, algo se partiu. Eu não queria mais fazer parte daquela guerra celestial. Não queria mais ser um peão nas mãos de seres que brincavam com o destino dos mundos.

E então, como se ele tivesse acertado exatamente onde me ferir, Abdom soltou uma risada, a voz dele reverberando pelo apartamento.

— Você não adora mais o TODO PODEROSO, não é? — ele provocou, a escarneira em sua voz quase palpável. — O que aconteceu, Azirrel? Onde está aquele anjo que acreditava que poderia salvar o mundo?

Eu senti um brilho se acender dentro de mim. Meus olhos brilharam, e não era mais a luz suave de um ser humano que ainda se importava com o bem e o mal. Era uma luz intensa, pura, quase cegante, um reflexo da raiva e da dor que eu carregava dentro de mim.

A energia ao meu redor se alterou, e pude sentir o peso do poder crescendo em mim, um poder que não estava mais preso a nenhum lado.

— Cala a boca, Abdom! — gritei, minha voz se tornando um rugido. Eu não podia mais ouvir suas provocações. — Não me meta na guerra de vocês, celestiais e infernais! Que se virem!

Aqueles gritos partiram da minha garganta com uma força inesperada, como se todo o peso de minha frustração e repulsa por ambos os lados fosse liberado de uma vez. O som ecoou pela sala, os vidros das janelas tremendo com a intensidade do meu grito.

Abdom recuou, sua risada diminuindo lentamente, mas seu sorriso, agora mais subtil, permaneceu. Ele sabia que eu estava quebrado, que minha lealdade já não existia mais, nem para os céus, nem para o inferno.

— Ah, Azirrel... — disse ele, sua voz agora mais calma, como se estivesse satisfeito com a reação. — Você já não é mais o que era. E eu já sabia disso.

Ele se levantou, aproximando-se de mim com a suavidade de um predador que sabe que a presa já está enfraquecida. Eu o encarei, o brilho nos meus olhos ainda visível, mas algo dentro de mim estava cansado.

— Vá embora, Abdom — murmurei, a voz mais baixa agora, mas firme. — Não quero mais saber de vocês, de suas guerras ou dos seus jogos.

Abdom não disse mais nada. Apenas riu de maneira baixa, como se estivesse se divertindo com o quão longe eu havia chegado. Ele virou-se e se afastou, seu corpo desaparecendo na fumaça que ele havia trazido, deixando para trás uma sensação de vazio e perda.

O silêncio tomou conta novamente, e eu fiquei ali, sozinho, com o peso das palavras que eu havia lançado, mas sem saber o que viria depois. O que restava para alguém como eu, que havia abandonado ambos os lados, que se via perdido entre a luz e a escuridão?

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