Um homem

As horas passaram como um borrão para Mikaela. O hospital, antes um lugar de esperança, agora parecia apertado, sufocante. As paredes brancas, os corredores intermináveis, tudo parecia observá-la, julgando sua dor. Ela segurava o amuleto entre os dedos trêmulos, buscando algum conforto, mas ele estava frio, inerte. Diferente de antes, parecia apenas um objeto comum, sem qualquer significado especial.

Suas pernas pareciam pesar toneladas quando deixou o hospital. O céu do lado de fora estava tingido por tons acinzentados, marcando o início de um novo dia, mas para ela, era apenas mais um amanhecer vazio.

Os olhos da jovem vaguearam pelas ruas silenciosas. Ela sabia que voltar para casa significava enfrentar algo ainda mais doloroso: a ausência. O lugar que uma vez fora cheio de caos agora seria preenchido apenas por lembranças.

Caminhando lentamente pelas ruas desertas, Mikaela sentiu o peso das últimas horas crescer dentro dela. Sua mente estava sobrecarregada por memórias fragmentadas, arrependimentos e a dor crua da perda. Ela apertou o passo, como se caminhar mais rápido a livrasse daquele turbilhão, mas a verdade era que nada seria capaz de apagar o vazio que se instalara em seu peito.

No entanto, algo peculiar insistia em perturbá-la. O amuleto. Ela havia segurado aquele objeto com esperança, mas agora ele parecia uma espécie de fardo. Quando começou a brilhar novamente, Mikaela sentiu um misto de irritação e desconforto.

Parou em frente a uma lata de lixo enferrujada na esquina e, sem pensar muito, atirou o amuleto ali. O pequeno objeto bateu contra o fundo metálico, emitindo um som seco e abafado. Ela deu meia-volta rapidamente, afastando-se como se quisesse enterrar aquele momento.

"Eu não preciso disso", pensou, tentando convencer a si mesma de que tinha feito a coisa certa. "Só quero voltar para casa e esquecer."

Enquanto atravessava as ruas ainda silenciosas, Mikaela começou a sentir o impacto emocional de cada passo. A ausência do pai agora parecia gritar em seu subconsciente, e com isso, a consciência de que sua vida mudaria completamente. Não havia mais contas compartilhadas para pagar ou desculpas a dar para vizinhos. Não havia mais alguém esperando por ela — mesmo que em silêncio e na pior condição possível.

Quando finalmente chegou à porta de sua casa, um arrepio percorreu seu corpo. Parecia mais escura do que se lembrava, como se a ausência dele tivesse drenado a pouca luz e calor que existiam ali. Ela hesitou antes de abrir, os dedos demorando-se na maçaneta.

Ao entrar, o cheiro familiar da casa a envolveu. Um misto de cigarro antigo e umidade que deveria ser desagradável, mas agora parecia o último vestígio da presença do pai. Ela fechou a porta com cuidado, apoiando a testa contra ela, tentando reunir forças.

O silêncio, tão constante em momentos de solidão, parecia gritar naquele instante. Mikaela largou a bolsa no chão e deixou-se cair no sofá. As mãos tremiam enquanto ela encarava o teto, tentando processar tudo o que havia acontecido.

Mas algo dentro dela estava inquieto. Seu pensamento retornava ao amuleto abandonado. A memória daquele brilho estranho a incomodava mais do que gostaria de admitir. Ela passou os dedos pela lateral do rosto, frustrada. Por mais que tentasse deixar isso de lado, havia algo naquela pequena joia que não a deixava em paz.

“Ridículo”, sussurrou para si mesma, balançando a cabeça, como se pudesse se livrar da ideia. Decidida a não se render às superstições, Mikaela fechou os olhos, esperando encontrar algum descanso na manhã que já se erguia ao seu redor.

Mikaela pegou um balde velho no canto da cozinha e encheu com água e detergente. Enquanto torcia o pano, seus movimentos eram metódicos, quase mecânicos. Cada passada no chão parecia um esforço para apagar os últimos vestígios daquela noite traumática. A pequena poça de sangue misturava-se ao sabão, criando uma tonalidade avermelhada que a fazia desviar o olhar.

O silêncio na casa era opressor. Apenas o som do pano sendo torcido e o esfregar contra o chão preenchiam o ambiente. Enquanto limpava, flashes de lembranças surgiam em sua mente: o pai sorrindo, o pai gritando, o pai ausente. Um turbilhão de emoções a invadiu, mas ela respirou fundo, tentando se concentrar na tarefa.

Depois de horas, com a casa já mais limpa, Mikaela finalmente se permitiu sentar na cadeira velha da sala. O cheiro de produto de limpeza preenchia o ar, mas parecia não amenizar o sufoco que sentia no peito. Ela repousou a cabeça sobre os braços cruzados na mesa, buscando alguma paz.

A noite parecia interminável. Quando tentou deitar para dormir, a cama parecia estranha, desconfortável, e sua mente inquieta recusava o descanso. O vazio deixado pelo pai era impossível de ignorar. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se completamente sozinha.

Na manhã seguinte, Mikaela se levantou cedo, mesmo sem ter dormido direito. O dia prometia ser pesado. As horas antes do enterro seriam preenchidas por preparativos, visitas de parentes distantes e expressões de condolências vazias que já conseguia prever.

Ela caminhou até a cozinha e preparou um café forte, tentando afastar a sensação de letargia. Enquanto a bebida esquentava, seus olhos recaíram sobre a bolsa largada no canto da sala. O espaço vazio onde antes estivera o amuleto pareceu ainda mais evidente naquele instante. Mikaela balançou a cabeça, afastando o pensamento.

Pouco depois, vestiu-se com simplicidade, escolhendo um conjunto escuro e discreto, apropriado para a ocasião. Cada botão fechado no casaco parecia uma camada a mais de proteção contra a realidade avassaladora.

O som da campainha quebrou o silêncio. Um vizinho trouxera flores, expressando seu pesar de maneira breve e contida. Outras mensagens chegaram durante a manhã, algumas mais pessoais, outras padronizadas. Mikaela agradecia com acenos curtos e procurava manter o controle.

Por volta do meio-dia, caminhou até a funerária para cuidar dos últimos detalhes. O caixão estava simples, mas digno. Mikaela pediu flores brancas, como as preferidas de sua avó, e confirmou o horário da cerimônia. As horas seguintes passaram em um ritmo estranho, uma mistura de pressa e letargia.

Quando a tarde caiu, o céu começou a ficar cinzento, como se o tempo também compartilhasse de sua tristeza. Amanhã, Mikaela estaria de pé ao lado do túmulo da avó, vendo seu pai ser enterrado. Apesar de todos os problemas, ela sabia que precisaria despedir-se, carregando não apenas o peso da perda, mas também as marcas de um relacionamento tão conturbado.

A caminhada de volta para casa após o enterro foi silenciosa e pesada. Mikaela não sabia bem como se sentia. O vazio era palpável, mas uma sensação desconfortável de alívio insistia em se misturar à tristeza. Antes de entrar, um vizinho idoso, o senhor Nakamura, aproximou-se. Ele segurava um pequeno buquê de flores simples nas mãos e um olhar de sincera compaixão.

— Sinto muito pela sua perda, Mikaela. Seu pai tinha suas falhas, mas, ainda assim, era parte de sua vida. Se precisar de algo, qualquer coisa, estou aqui — disse ele com uma voz baixa e suave.

Ela forçou um sorriso curto e agradeceu, tocando levemente o braço dele em um gesto de gratidão.

— Obrigada, senhor Nakamura. Eu... Acredito que vou precisar de um tempo para colocar tudo nos eixos. — Sua voz saiu cansada, refletindo a exaustão que carregava não só daquele dia, mas de anos acumulados.

Com um aceno gentil, ele se afastou, e Mikaela empurrou a porta de casa, finalmente entrando. Assim que atravessou a soleira, tirou os sapatos e largou as chaves no aparador ao lado da porta. Sentia-se drenada, física e emocionalmente.

Foi quando seus olhos se detiveram na sala. O coração dela saltou. No centro da mesa que sempre ficava vazia estava o amuleto. O mesmo amuleto que ela jogara no lixo na manhã anterior, agora repousava ali, impecável, como se jamais houvesse estado fora de seu lugar.

Mikaela sentiu a respiração acelerar. Ela deu um passo hesitante em direção à mesa, sem desviar o olhar do objeto. Cada instinto em seu corpo gritava para não tocar naquilo, mas a curiosidade parecia ter uma força magnética.

Quando estava prestes a se aproximar, um barulho alto ressoou pela cozinha. Panelas caíram no chão em um estrondo metálico, ecoando pela casa. Mikaela virou-se rapidamente, o coração disparando no peito.

— Quem está aí? — gritou, sua voz firme, mas tremida.

Ela caminhou até a cozinha com passos lentos, pegando um rolo de massa que estava à vista no balcão. O ambiente estava escuro, exceto por uma leve luz que vinha pela janela. As panelas estavam espalhadas pelo chão, como se algo ou alguém tivesse mexido nelas.

Antes que pudesse se mover mais, uma figura emergiu da penumbra. Era um homem alto, com cabelos desgrenhados que refletiam um brilho acinzentado à luz que filtrava pela janela. Seu rosto parecia esculpido, perfeito, mas seus olhos carregavam algo profundo e sombrio.

— Quem é você? O que está fazendo aqui? — Mikaela perguntou, segurando o rolo com mais força.

O homem ergueu as mãos levemente em rendição, um sorriso suave se formando no rosto.

— Calma... Eu não vim para machucar você. Apenas queria conversar. — Sua voz era baixa e rouca, quase hipnotizante.

Ela recuou um passo, mantendo a arma improvisada erguida.

— Eu não conheço você. Sai da minha casa agora ou chamo a polícia! — Ela tentou soar convincente, mas o peso de seus últimos dias tornava difícil esconder o medo.

O homem deu um passo para a frente, a expressão ainda tranquila.

— Acho que você vai querer ouvir o que tenho a dizer, Mikaela. Não foi acaso que aquele amuleto voltou para você. E se for esperta, saberá que não adianta fugir disso.

Seu nome nos lábios dele soou como um alerta. Mikaela sentiu um frio percorrer sua espinha. Alguma coisa naquele homem fazia a realidade parecer mais incerta, como se o mundo estivesse prestes a mudar para sempre.

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