Uma vergonha repentina

O pequeno relógio na mesinha de cabeceira marcava 04:30, e Rachel ainda não conseguia pegar no sono. Ela se recusava a depender de remédios, por isso os soníferos estavam fora de questão. Já Thomas, por outro lado, havia tomado dois comprimidos e dormia profundamente ao seu lado, imóvel como uma pedra.

Os quinze anos de casamento haviam deixado seus ouvidos calejados aos roncos incessantes do marido, mas nem mesmo os sons mais agudos conseguiam calar sua mente naquela noite. Tudo indicava que a visita havia ficado para dormir, pois Thomas não demorou muito para subir depois que ela se fechou no quarto, e Thiago logo se recolheu também, porém não se ouviu barulho na porta da frente e nenhum alarde de despedida foi feito, logo Rachel deduziu que a visita ainda permanecia na casa. Porém ela não havia saído do quarto desde que fora pega de guarda baixa pelo desconhecido, espionando no mezanino. Uma vergonha repentina a dominara, algo que ela não costumava sentir.

"Deve ser algum amigo do Thiago. Afinal, ele tem tantos amigos que mal lembro dos rostos deles… Sim, deve ser só um amigo de passagem", pensava Rachel, tentando afastar os pensamentos e se convencer de que conseguiria ter uma noite tranquila de sono.

Mas a tentativa foi um fracasso. O relógio despertou às 06:00, acordando apenas quem realmente conseguira dormir. Rachel já estava no banheiro, se preparando para sair para o trabalho, pois tinha uma reunião marcada com a equipe às 07:30.

— Por que eu tenho a sensação de que esse maldito relógio está tocando cada vez mais cedo? — resmungava Thomas, arrastando-se do quarto para o banheiro, com o cabelo bagunçado, o rosto amassado e o pijama todo torcido. Enquanto isso, Rachel, em silêncio, escolhia as roupas para o trabalho de seu marido.

— É sério! Daqui a pouco, o tempo vai passar tão rápido que não vamos nem perceber quando é hora de dormir — falava ele, já em baixo do chuveiro.

A cada amanhecer, Thomas parecia ser invadido por reflexões inesperadas. Alguns dias, se perdia nos mistérios do universo e de sua imensidão; outros, estava tomado por uma raiva inexplicável, como se algo ou alguém o provocasse. E, em dias mais aleatórios, surgiam em sua mente ideias para um café da manhã totalmente fora do comum. Sua cabeça acordava sempre agitada, e suas palavras saíam sem filtro.

Às 6h30, Rachel descia as escadas em direção à cozinha, onde Sarah, a responsável por manter a casa em ordem, já a esperava com a mesa posta para o café da manhã.

Ao lado da cozinha ficava a sala de jantar com móveis finos e elegantes e uma mesa de refeição gigante, porém, Rachel sempre achou aquilo tudo um exagero e preferia que as refeições fossem feitas na pequena mesa da cozinha.

— Torradas ou panquecas, senhora? — perguntava Sarah, servindo uma xícara de café com leite.

— Torradas, por favor! — respondia Rachel com um sorriso gentil. — E para o Thomas, café preto com panquecas, por favor.

— Claro, senhora!

— Eu também quero o mesmo, Sarah! — exclamava Thiago, entrando na cozinha em dois passos largos. — Bom dia, tia! — dizia, abraçando Rachel por trás da cadeira onde ela estava sentada.

— O que é isso? Que animação toda é essa logo pela manhã? — perguntava Rachel, surpresa.

— Você não sabe? — Thiago a olhava, confuso. — Meu amigo de infância, aquele que foi morar no exterior, voltou ontem. Vai ficar aqui uns dias até o apartamento dele ficar pronto. — Ele se acomodava à mesa, ainda empolgado. — Você não viu ele ontem aqui?

— Não, não vi. — Rachel respondia rapidamente, sem nem perceber que estava mentindo.

— Ah, quanto tempo você está aí parado? — Thiago disse, se virando para alguém que estava parado logo atrás de Rachel. — Vem tomar café com a gente! — gesticulava com a mão, chamando.

— Bom dia! — uma voz grave ressoava ao lado de Rachel.

— Bom dia! Fique à vontade, sente-se e sirva-se! — respondeu Rachel baixinho, tentando parecer distraída, enquanto mexia nas torradas com a faca, sem olhar diretamente para o rapaz.

Ela tinha certeza que era o mesmo da noite passada, e por algum motivo temia cometer algum tipo de erro que ela não compreendia, se ambos trocassem algum tipo de olhar. Por isso a escolha mais sábia no momento era fingir-se de distraída.

— Esse aqui é o amigo de que falei, o nome dele é... — Thiago começara, mas foi interrompido.

— Lohan, já está acordado? — Thomas entrou na cozinha interrompendo Thiago. — Como você consegue estar tão disposto a essas horas da manhã?

Lohan sorriu timidamente, observando todos à mesa, brincando com as pontas dos dedos, enquanto notava que Rachel já havia tomado toda a sua xícara de café, sem tocar nas torradas. Ainda em pé, ele agradeceu com um leve aceno de cabeça:

— Fico grato, mas não quero incomodar. — agradeceu olhando de canto de olho para Rachel que por sua vez percebeu.

“O que esse garoto tá fazendo?” pensava ela confusa tentando ler as intenções de Lohan e tomando uma atitude.

— Imagina! Você é amigo do Thiago desde criança, não é? — Rachel puxou a cadeira ao lado da sua e finalmente o olhou nos olhos. — Venha, sente-se e tome café conosco.

Lohan parou de brincar com os dedos, colocou as mãos ao lado do corpo com mais naturalidade e abriu um sorriso largo como o sol, sem dizer uma palavra, mas se sentando ao lado de Rachel, como se já fizesse parte daquele cotidiano.

Thomas se acomodou na cabeceira, como sempre, e antes que conseguisse terminar seu café, Rachel já estava de pé, pronta para partir.

— Eu vou na frente, tenho uma reunião com a equipe. Você não precisa me acompanhar, Thomas, pode ir direto para o set. Nos encontramos lá. — disse ela, cheia de energia.

Ela se virou então para Lohan, sorrindo de forma descontraída e estendendo a mão em um gesto cordial.

— E quanto a você, meu rapaz… — disse com simpatia. — Foi um prazer conhecê-lo. Espero que sua estadia seja confortável, e como você é amigo de infância do Thiago, pode me chamar de tia.

“Vamos colocar esse garoto em seu lugar”, pensou ela, mantendo o sorriso gentil, mas com um toque de diversão nos olhos.

Lohan sorriu, primeiro com os olhos, depois deixando o sorriso se alargar até revelar todos os dentes, antes de se levantar e, com um gesto elegante, posicionar-se diante dela.

— O prazer foi todo meu… — disse ele, segurando com suavidade a mão estendida de Rachel. — ... tia! — completou, sussurrando ao mesmo tempo que se curvava e beijava sua mão, com um toque de ousadia no gesto.

Rachel ficou surpresa por um momento, mas logo Thomas riu, quebrando o clima tenso.

— Vai com calma, garoto. Eu sei que você cresceu em outro país, mas cuidado para as pessoas não confundirem seus modos, hein? — disse Thomas, rindo com a expressão de espanto de Rachel. — Vá para a sua reunião, querida, e não repreenda o menino. Tenho certeza de que ele só estava tentando ser gentil, não é, Lohan?

— Claro, Senhor, foi apenas uma gentileza. — Lohan respondeu, mas seu sorriso desapareceu instantaneamente. Agora, ele a olhava com uma seriedade inquietante, que parecia prender Rachel de forma hipnótica.

"Era isso que eu estava tentando evitar. Esse garoto tem esse olhar. O mesmo olhar de ontem à noite. Um olhar que faz meu estômago borbulhar", pensou Rachel, se forçando a se desprender do olhar de Lohan.

Sem conseguir forçar um sorriso apenas virou-se apanhou a bolsa no aparador na sala e bateu a porta da entrada atrás de si.

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