A ÚLTIMA FAÍSCA: O FIGURANTE QUE VIU ALÉM
Erian Valdor sempre fora a sombra do salão. Filho de um barão de segundo escalão, figurante nas tramas da corte, bom em nada além de obedecer e desaparecer. Ninguém esperava que, numa manhã de neblina prateada, a realidade se abrisse como um livro gasto e lhe oferecesse algo impossível: um Sistema. Não o sistema discreto de nobres ou o brilho disfarçado dos prodígios — um painel cru e frio que sussurrava estatísticas, missões e escolhas. Erian, que mal sabia amarrar suas próprias botas, viu números dançarem e segredos serem descritos, como se o mundo inteiro fosse um tabuleiro que apenas ele podia ler.
— Sobrevivência: 100% — leu ele, em voz baixa, enquanto as paredes da mansão parecia ouvirem. — Missão atual: Descobrir a verdade por trás do Tratado.
O nome que atravessou sua mente não era o que os outros chamavam: Di. Havia algo estranhamente familiar naquele apelido — uma ressonância de memórias que não pertenciam inteiramente a Erian. Com o Sistema, surgiram também opções: Atributos, Habilidades, Interações. O mais perigoso e precioso de todos era uma habilidade passiva chamada Percepção de Distorção — um vislumbre curtíssimo em que Erian podia notar as linhas tortas do destino, ver fiozinhos narrativos costurando eventos.
Primeiro teste: a Academia de Astéria anunciara um intercâmbio com a Academia Demoníaca de Thar’Vun. Em tanta tradição diplomática, havia sempre corredores de interesse que não apareciam nos mapas oficiais. O Barão Valdor empurrou o filho para representar a casa numa recepção — oportunidade insignificante para um figurante. Di/Erian viu ali algo diferente: um nó narrativo.
Na cerimônia, a Diretora de Astéria passava com sua capa branca prateada, tão imponente que ofuscava as tochas. Lyria Dreivani, dona de um Sistema da Harmonia Luminosa, exalava calma e perfeição. Seus olhos eram duas pedras polidas e, por um segundo, o Sistema do garoto chiou: "Alvo — Lyria Dreivani. Sistema detectado: Harmonia Luminosa (nível desconhecido)."
Erian aproximou-se — não por coragem, mas por impulso do Sistema. Ele ouviu uma voz, que parecia vir do outro lado de um espelho:
— Você pode ver as costuras, não pode? — disse a Diretora, como se soubesse.
Erian sentiu o sangue gelar: ela não deveria saber. E, no entanto, ela sorriu como quem encontra um velho enigma.
— Muitos têm sistemas — respondeu Erian, com a frieza que a nova identidade ensinara. — Poucos os leem.
Lyria estudou-o, ligeiramente curiosa. Havia algo ali, uma anomalia que atraía a atenção dos dois mundos — humano e demônio — mas que não quebrava o Tratado. A presença de Erian despertou memórias no Sistema da Diretora, como se um acorde dissonante tocasse nas profundezas. Ela não sabia que Di era de outro mundo; sabia apenas que havia algo revelador em seus olhos.
A recepção foi interrompida por uma explosão de luz azul que rasgou o céu. Um mensageiro demoníaco desmaiou na escadaria, deixando cair uns fragmentos brilhantes — runas de um selo ancestral. A plateia recuou, e sussurros correndo como vento. Ninguém tocou os fragmentos — menos ainda Erian, cujo Sistema cintilou: Missão atual atualizada.
— Missão: Impedir quebra do Tratado. — Objetivo secundário: Descobrir quem manipula as linhas.
Ele pegou uma lasca de runa. No contato, memórias alheias oscilavam dentro dele: vislumbres de um salão de mármore negro, de um homem com máscara de bronze e de um diagrama quebrado que possuía o símbolo das Três Famílias Marquesas. O Sistema pulsou, urgente: Alerta — Interferência narrativa detectada.
Os dias seguintes tornaram-se um tabuleiro de xadrez. Erian aprendeu a usar o que tinha: camuflar-se entre servos, farejar mentiras em discursos diplomáticos, roubar pergaminhos que não eram endereçados a ele. A Percepção de Distorção mostrava-lhe falhas — momentos onde a história pressionava personagens para a violência, portas que só se abriam para heróis. Di/Erian podia sentir, em sua espinha, que narrativas protegiam protagonistas: eles eram imortais até cumprirem seus papéis. Ele sabia disso porque o Sistema lhe mostrava pequenas etiquetas: PROTAGONISTA: /IMORTALIDADE: ATIVA. A Diretora estava entre esses olhos de ouro. Lyria poderia caminhar através da morte, e ainda assim o mundo a reescreveria.
Foi então que Erian notou algo mais perigoso: um personagem que deveria ser figurante fora colocado no centro do círculo — um emissário das Três Famílias Marquesas, que usava as sombras como capa. Ele não era um protagonista, nem um simples antagonista. Era um manipulador: alguém que sabia cortar e remendar destinos.
Numa noite em que as estrelas pareciam farpas, Erian seguiu o emissário até uma biblioteca secreta. Entre pergaminhos amarelados, encontrou um mapa do Tratado — mas alguém tinha rabiscado nele diagramas de ruptura. O emissário apareceu atrás dele, com um sorriso afiado.
— Vejo que sente o fio — disse o homem. — Isso é raro. Para alguém tão... descartável.
O Sistema reagiu com uma missão crítica: Escolha — Confrontar ou Fugir. Erian sentiu o pulso do antigo Dono do corpo pulsar junto; memórias de batalhas que não eram suas. Ele escolheu enfrentar. A Percepção de Distorção esticou uma lente até o emissário, revelando seu segredo: o homem era protegido por um pequeno artefato — um fragmento de narratium, a substância que moldava histórias. Era ilegal. Era perigoso. Era a chave para quebrar o Tratado.
Erian atacou com a impetuosidade de quem aprendeu que a vida era um conjunto de escolhas. O confronto foi curto e custoso. O emissário tinha truques: transformava palavras em lâminas invisíveis, fazia memórias de Erian parecerem sonhos. Mas Erian tinha algo que o emissário não tinha: uma visão clara das costuras. Ele usou o fragmento de runa, não para cortar o outro, mas para costurar de volta uma parte do destino que o homem tentava arrancar.
Quando o fragmento brilhou, o emissário congelou. O mundo pareceu segurar a respiração. Lyria apareceu entre as prateleiras, com a calma de quem sedimenta um rio.
— Não é assim que se reescreve um Tratado — disse ela. — Mas é assim que se protege um mundo.
Ela ajudou Erian a prender o emissário com runas que neutralizavam narrativas. Ao fazê-lo, sussurrou algo que queimou o peito dele com uma verdade: "Protagonistas são protegidos. Mas às vezes um figurante vê mais porque não é esperado."
O julgamento do emissário foi rápido e discreto. As Famílias Marquesas negaram envolvimento; o Conselho manteve silêncio. O Tratado ficou intacto, por agora. Erian regressou ao seu corpo de figurante, com as botas sujas e o Sistema mais pesado no peito.
Mas o Sistema mostrava uma nova linha: Missão completa: Revelar a trama. Recompensa: Escolha de aptidão. Erian sorriu pela primeira vez como si mesmo — ou como Di, dependendo de quem olhasse. Ele havia visto além das costuras e, por isso, fora notado.
Na manhã seguinte, quando saiu para o pátio, encontrou a Diretora observando-o. Sem cerimônias, entregou-lhe uma pequena caixa prateada.
— A Escolha — disse Lyria. — Você tem olhos que enxergam o que ninguém espera. Escolha sabiamente.
Erian abriu. Dentro, havia três selos: Um para poder físico, outro para poder mágico, e o último para o que o Sistema chamava de "Afinidade Narrativa" — a habilidade rara de não só perceber, mas alterar pequenas linhas sem quebrar a história. Ele tocou os três. Não escolheu por impulso.
— Eu quero ser... útil — disse ele, com uma calma que não pertencia à maioria dos figurantes. — Quero impedir aqueles que costuram maliciosamente.
Lyria assentiu, e o selo da Afinidade Narrativa brilhou, fundindo-se ao Sistema de Erian como uma faísca que não se apaga.
Os rumores na corte mudaram: o figurante que via além fora visto com novo olhar. Não era mais apenas sombra; era um ponto de luz incômodo. Alguns o temiam, outros o desprezavam. Mas ele tinha uma missão: proteger o Tratado. E, enquanto as Três Famílias Marquesas trocavam olhares cautelosos, Erian — Di no corpo de um figurante — aprendeu algo essencial: ser invisível às vezes era o maior poder, porque quem não é esperado pode ver o que ninguém ousa ver e, quando necessário, costurar o mundo de volta.
E assim começou a história de um figurante que virou vigilante das linhas. Em uma terra onde protagonistas eram imortais até cumprirem seus papéis, ele escolheu um caminho perigoso e hesitante — não por glória, mas por justiça. E cada vez que a narrativa apertava demais, Erian acendia a última faísca, suturava a trama e desaparecia novamente, onde ninguém lhe daria crédito, mas onde o mundo secretamente respirava mais aliviado.