Dizem que o mal não nasce, ele se esconde. Às vezes na esquina escura de uma cidade, outras vezes no coração de alguém que nunca pediu para ser humano.
No vilarejo de Pedra Negra, no alto de uma serra esquecida, existia uma casa antiga, levantada com pedras escurecidas pelo tempo e pelo fogo. Não havia janelas — apenas portas altas, todas trancadas por dentro, como se os antigos moradores temessem que algo entrasse ou, pior ainda, saísse.
Dentro dela vivia Isla, uma jovem de aparência frágil, pele pálida como cera e cabelos longos que sempre escondiam metade de seu rosto. Os moradores a chamavam de “a filha do silêncio”, pois ninguém jamais ouvira sua voz.
O que não sabiam é que Isla não era filha de ninguém dali.
Noite após noite, vozes ecoavam dentro da casa. Não eram orações, nem músicas. Eram sussurros roucos, palavras numa língua que queimava os ouvidos de quem ousasse espiar pela fresta da porta. Alguns juravam que, à meia-noite, as pedras da construção respiravam, como se a casa inteira tivesse pulmões ocultos.
A história verdadeira de Isla se espalhou apenas entre os mais velhos: ela nascera de uma mulher que morreu no parto, com os olhos carbonizados e a boca congelada num grito mudo. O bebê sobreviveu, mas seus olhos — vermelhos, cortados por veias negras — denunciaram algo que não pertencia a este mundo. O padre local tentou batizá-la, mas a água do cálice evaporou antes de tocar sua pele.
Condenada a crescer escondida, Isla passou os anos como um segredo. Só que, aos dezessete, começou a mudar.
Os espelhos se quebravam quando ela passava. Velas se acendiam sozinhas perto de sua cama. As unhas cresceram afiadas, mesmo quando cortadas. Mas o mais assustador era o olhar: quem encarava seus olhos por tempo demais sentia uma presença escura dentro da própria mente, como se uma mão invisível arrancasse lembranças e empurrasse medos de volta.
Uma noite de lua nova, um grupo de jovens bêbados decidiu invadir a casa sem janelas. A curiosidade foi maior que o medo. Entraram rindo, zombando das histórias. Encontraram apenas móveis antigos, paredes riscadas com símbolos e o cheiro metálico de ferro oxidado.
No andar de cima, Isla os esperava.
Ela não gritou, não correu. Apenas os observou. Aquele silêncio — pesado, sufocante — fez um dos garotos começar a rir nervosamente, até perceber que não conseguia mais parar. Ria, ria, ria, até o som se transformar num choro desesperado, e então num gorgolejo de sangue. Ele caiu no chão com a garganta rasgada sem que ninguém o tivesse tocado.
Os outros fugiram, mas a casa se fechou sozinha. As portas bateram, o ar ficou denso como fumaça. No escuro, só se viam os olhos vermelhos de Isla, iluminando a sala como carvões acesos.
O massacre daquela noite ficou escondido sob silêncio. Os corpos nunca foram encontrados. Só restaram marcas de unhas e sangue seco nas pedras.
Dizem que Isla não envelhece. Que ainda está lá, caminhando de um lado para o outro dentro da casa sem janelas. Alguns juram que, se você andar pela estrada da serra em noites sem lua, ouvirá passos atrás de você, mesmo estando sozinho. Outros afirmam que ela chama pelo nome dos vivos em sonhos, e quando a pessoa acorda, o quarto está gelado, como se alguém tivesse acabado de sair dali.
O que ninguém ousa confirmar é a maior lenda: que Isla não nasceu humana, mas como um portal vivo, criada para abrir passagem ao que existe além da carne, além da luz. E cada vida que ela arranca é apenas mais um tijolo erguido para a vinda de algo muito maior — algo que nem os infernos seriam capazes de conter.
E a casa… continua sem janelas. Porque quem olhar para dentro não verá apenas uma jovem.
Vai ver o que está atrás dela.
O tempo passou, mas Pedra Negra nunca se libertou do fardo da casa sem janelas. Os moradores evitavam até mencionar o nome de Isla, como se falar dela fosse o suficiente para chamá-la.
Mas a escuridão não se mantém presa para sempre.
Numa madrugada em que a neblina parecia engolir o vilarejo, uma criança desapareceu. Depois, um segundo morador. Depois, mais dois. Não havia rastros, apenas portas abertas e o mesmo cheiro metálico que há anos rondava a casa.
Quando os homens armados decidiram entrar na velha construção, encontraram-na vazia. O coração do vilarejo gelou: Isla já não estava contida.
A primeira aparição pública aconteceu na igreja. O padre rezava quando todas as velas se apagaram de uma vez, deixando apenas o crucifixo iluminado por uma luz rubra. Atrás dele, a jovem apareceu, vestindo um vestido preto rasgado, os cabelos soltos cobrindo metade do rosto.
Ela caminhou pelo corredor central em silêncio. O padre levantou a cruz, mas o ferro se dobrou em sua mão como se fosse cera quente. Os fiéis gritaram, mas suas vozes sumiram — literalmente engolidas pelo ar. O eco não retornava. O templo se tornou um espaço morto, onde apenas os passos de Isla existiam.
E então… ela falou pela primeira vez.
Sua voz não era humana. Soava como mil sussurros costurados, uma língua que queimava as paredes da igreja e deixava a madeira preta. As palavras eram simples, mas pesadas como chumbo:
— Eu não vim sozinha.
No instante seguinte, os vitrais se estilhaçaram. Das sombras escorreram braços, garras e bocas que não pertenciam a nenhuma criatura da Terra. As pessoas tentaram fugir, mas o chão se abriu em rachaduras que sugavam os corpos como areia movediça.
A partir daquela noite, Pedra Negra nunca mais viu o sol. Um nevoeiro constante cobria a vila, e as sombras se moviam sozinhas nas paredes das casas. Quem ousava sair à rua encontrava figuras altas, feitas de fumaça, que se dissolviam quando tocadas — mas sempre deixavam marcas de queimadura na pele.
O pior, no entanto, não era o terror físico. Era a voz de Isla, que agora ecoava dentro da mente de todos, chamando pelos nomes, revelando segredos escondidos, escancarando pecados enterrados. Pessoas começaram a enlouquecer, matando umas às outras para calar o sussurro que nunca cessava.
Alguns tentaram fugir pela estrada da serra. Nenhum voltou. Viajantes que cruzavam a região afirmavam ver pessoas caminhando em círculos infinitos, os olhos vermelhos brilhando na neblina.
A lenda cresceu: diziam que Isla era a encarnação de um “vazio faminto”, enviada não para matar, mas para preparar terreno. Cada alma devorada era um tijolo de um templo invisível, um portal que um dia se abriria em plena Pedra Negra.
E no centro de tudo, Isla caminhava lentamente pelas ruas, descalça, arrastando o vestido encharcado de sangue, os olhos como carvões vivos. A cada passo, o mundo parecia morrer um pouco mais.
A juventude do vilarejo sumiu, as crianças não nasciam mais. Só restaram velhos apavorados, presos em casas lacradas, rezando por um deus que já não escutava.
Afinal, Isla tinha razão: ela nunca esteve sozinha.
E quando a lua cheia brilhasse sobre Pedra Negra outra vez, o que estava atrás dela atravessaria o véu.
O silêncio em Pedra Negra não era normal. Era um silêncio que vivia. Não havia pássaros, não havia vento. Só a respiração dos que ainda tentavam sobreviver atrás de portas trancadas. Mas naquela noite, nem os mais corajosos ousaram dormir.
A lua surgiu — enorme, cheia, e de um vermelho doentio. O céu parecia rasgado, como uma ferida aberta. E no centro da vila, Isla esperava.
Ela estava parada diante da antiga casa sem janelas, agora coberta de símbolos vivos, queimando em vermelho. Seu corpo já não era o de uma jovem comum: a pele parecia rachada, deixando escapar fendas de luz escura; os cabelos flutuavam como se estivessem submersos em água invisível.
Com um simples piscar, as portas da casa se abriram. Mas o que saiu não era feito de carne.
Era sombra em movimento. Um corpo de centenas de braços, bocas que gritavam e choravam ao mesmo tempo, olhos espalhados em lugares impossíveis. A criatura não tinha forma fixa — era como se o vazio tivesse ganhado desejo.
E a voz dela ecoou por toda Pedra Negra:
— O véu se rompeu.
A vila tremeu. As pedras das casas se desfizeram em pó, e as ruas se abriram em fendas que mostravam não terra, mas um céu invertido lá embaixo, cheio de estrelas mortas e constelações que jamais pertenceram ao mundo humano.
Os sobreviventes tentaram correr, mas suas pernas não obedeciam. Era como se estivessem presos em um sonho onde o corpo pesa toneladas. O monstro caminhava devagar, mas cada passo era uma eternidade de dor: o tempo parava, envelhecia, voltava atrás, e a sanidade era esmagada.
Aos poucos, um a um, os moradores começaram a ajoelhar-se diante de Isla. Não por escolha, mas porque suas mentes estavam quebradas. A jovem demoníaca abriu os braços, e os olhos vermelhos iluminaram a praça central.
Então ela sorriu. Pela primeira vez.
Do céu rachado caiu uma chuva negra que queimava a pele como ácido. Mas quem a recebia não gritava: transformava-se. Ossos se esticavam, rostos se desfaziam, e surgiam novos corpos de sombras, servos que rastejavam até Isla, formando um exército de deformidades vivas.
E ali estava a verdade que sempre foi temida: Isla não era o demônio.
Ela era a chave.
O ser atrás dela — maior que montanhas, sem rosto, feito de puro vazio — atravessou o rasgo do céu. Quando sua presença tocou Pedra Negra, a realidade se partiu como vidro. O tempo perdeu sentido: alguns moradores viram sua infância diante dos olhos, outros assistiram ao próprio futuro — sempre terminando da mesma forma, com eles queimados em silêncio absoluto.
No último instante, antes que tudo fosse engolido, Isla olhou para os céus e murmurou em voz clara, como se falasse com um pai há muito esperado:
— A casa está pronta.
E Pedra Negra deixou de existir.
Não restaram ruínas, nem corpos, nem poeira. Apenas um espaço vazio na serra, onde a estrada termina de repente e o vento nunca sopra. Os mapas apagaram o nome da vila, e quem tenta chegar lá se perde para sempre.
Mas em noites de lua vermelha, viajantes afirmam ouvir sussurros na neblina.
Uma voz feminina, doce, quase carinhosa, repetindo uma promessa:
— Eu não vim sozinha.
FIM...