Em um mundo onde tudo é ao contrário, e preconceitos vis não existem mais, um jovem de estatura mediana, corpo magro e sorriso encantador, Thomas, trabalhava em uma cafeteria de decoração rústica e ambiente aconchegante.
Naquela tarde calma, o movimento era pouco. Thomas limpava copos, reorganizava xícaras com bordas douradas e passava um pano — pela quinta vez — na bancada, só para manter as mãos ocupadas.
O sino da porta tocou com um tilintar suave.
— Seja bem-vindo — disse ele com a voz baixa e gentil, levantando os olhos para ver quem entrava.
Um homem jovem, elegante, usando um terno fino e um chapéu, que tirou da cabeça ao entrar — um gesto de cortesia quase raro hoje em dia. Ele apenas fez um breve aceno e se sentou em um dos bancos em frente ao balcão.
— Um café preto. Forte. Sem açúcar — pediu com uma voz firme, mas agradável.
— Claro. Um minuto — respondeu Thomas, observando o estranho com discreta curiosidade. Nunca o vira por ali.
— Vai continuar me encarando ou vai dizer o que está pensando? — A voz do homem cortou o ar como faca em seda, tirando Thomas de seus devaneios.
— Me desculpe, senhor... eu me distraí — murmurou, envergonhado, desviando os olhos rapidamente antes de ir preparar o pedido.
O homem esboçou um sorriso de canto. As orelhas vermelhas de Thomas foram o suficiente pra entretê-lo.
> Dias depois, Hugo se pegava indo àquela cafeteria mais vezes do que achava razoável.
Não era pelo café — isso ele já tinha admitido. Era pelo atendente. Pela forma como ele corava. Pelas orelhas que ficavam vermelhas com qualquer elogio. Era viciante.
Naquela tarde, Hugo atravessou a porta de novo, o cheiro de café e lavanda o atingindo como uma memória boa demais pra ser esquecida. Trazia flores nas mãos e um sorriso nos lábios.
— Olá, Thomas... Vejo que continua tão bonito quanto da primeira vez. — disse, colocando o chapéu de lado.
Thomas ficou ruborizado, mas retribuiu com um sorriso doce.
— Senhor Hugo, o senhor é sempre tão gentil... — desviou o olhar, nervoso. — Vai querer o mesmo de sempre?
— Que tal me surpreender hoje, hm? Floquinho de neve... — estendeu as flores. — Achei que combinariam com o lugar.
Os olhos violetas de Thomas brilharam. Pegou as flores com delicadeza, levando-as ao rosto, inalando o perfume com um sorriso tímido.
— Que gentileza, senhor Hugo... Já volto com seu pedido. — e saiu, ligeiramente atrapalhado, enquanto Hugo o observava com aquele olhar meio idiota de quem já está afundado demais.
Quando Thomas voltou, colocou diante dele uma xícara com café forte, chocolate amargo e chantilly por cima.
— Aqui está. Criação da casa.
— Impressionante... — Hugo sorriu. — Thomas, o que acha de jantar comigo um dia desses? Só... como amigos. Sem pressão.
O ômega mordeu o lábio, brincando com o laço do avental.
— Eu... adoraria. Seria incrível. Digo, como amigos, claro. Se não for incômodo...
— Seria um privilégio.
Apos vários encontros.
Naquela noite, a lua parecia em luto.
As nuvens pesadas engoliam as estrelas, e a cidade respirava com dificuldade sob a garoa insistente.
Thomas estava sentado à mesa do restaurante, mexendo no copo d’água pela terceira vez. A vela acesa já tremulava há vinte minutos. Hugo estava atrasado. Incomum. E incômodo.
Quando finalmente chegou, o alfa atravessou a porta com um buquê de flores brancas e passos apressados.
O terno estava desalinhado. O cabelo, úmido e grudado na testa. E o detalhe que paralisou Thomas: uma mancha de sangue na lateral do rosto.
— Céus, você se machucou?! — Thomas levantou num salto, tirando o lenço do bolso. — Tem sangue no seu rosto...
Hugo estacou. Merda.
Devia ter se olhado no espelho.
Devia ter jogado a jaqueta fora.
Devia... ter inventado uma desculpa.
Mas quando Thomas se aproximou, pronto pra cuidar, Hugo apenas segurou os pulsos dele, com firmeza e culpa.
— Não, querido... esse sangue não é meu.
Thomas piscou. Uma, duas vezes.
— Não é seu? E de quem é? Hugo... você precisa me contar alguma coisa. Agora.
Ele já tinha percebido antes. Os ternos caros, mas manchados de algo escuro. As ligações que ele nunca atendia perto de Thomas. O jeito como às vezes ele olhava por cima do ombro, como quem carrega o mundo nas costas... ou algum cadáver na memória.
Hugo respirou fundo. Não dava mais pra esconder.
— Eu sou um assassino de aluguel, Thomas. — falou de uma vez, sem floreios. — É só um trabalho. Frio. Rápido. E pago. Esse sangue... é disso.
O silêncio foi cortante.
— Então me dá flores manchadas de sangue?
— Não... eu nunca deixaria sangue nelas, eu—
— E se atrasou pro nosso encontro... porque tava matando alguém?
— Não é tão simples, eu—
— Vai me matar também?
— CEUS, NÃO! — Hugo segurou os ombros dele, desesperado. — Eu nunca encostaria um dedo em você. Eu...
— Por que não contou antes?
— Porque... antes, não era importante.
— A gente não era importante? Ou essa informação não era?
Hugo hesitou. Merda de novo.
— Eu achei que... fosse só um lance.
Thomas riu. Um riso amargo, quase infantil. Do tipo que segura o choro com dignidade.
— Só um lance. Então queria só me levar pra cama?
— Sim. No começo... sim.
— Nossa...
— Mas agora eu não quero só isso, Thomas. Eu tenho respeitado seus limites, não tenho? A gente tá se vendo há um mês, e eu nem te beijei ainda. Não porque não quis, mas porque você merece mais. Eu... eu quero mais.
— Não foge do assunto, Hugo. Eu não quero me envolver com um assassino. Não posso. Eu— eu sou um ômega, Hugo. Eu sou... alguém que pode gerar uma vida. Eu não posso me misturar com alguém que tira uma.
E ele se virou.
E Hugo viu tudo indo embora: as flores, o café, os sorrisos, os dedos brincando com o laço do avental.
Num impulso, agarrou o braço dele, o girou e... o beijou.
Foi um beijo com gosto de urgência, de desespero, de promessa maldita.
E Thomas, mesmo tomado pelo susto, cedeu. Se derreteu. Porque o coração dele já era um refém fazia tempo.
— Não vai, Thomas. Por favor.
— Eu prometo... eu prometo que não mato mais ninguém. Só... só fica.
— Eu fico. Mas não me decepcione.
Thomas olhou nos olhos dele.
E, pela primeira vez, Hugo sentiu medo.
Medo de não ser bom o suficiente pro único raio de luz que já conheceu.
Hugo tentou.
Ele largou as armas. Fechou os contatos. Desligou o celular do trabalho sujo e quebrou o chip como quem quebra um ciclo.
Ficou limpo por dois meses. Dois meses em que dormiu agarrado a Thomas, cheirando lavanda e ouvindo sua respiração leve no colo da madrugada.
Dois meses fingindo que era possível ser outro homem.
Mas o passado bateu na porta. Literalmente.
— Tá devendo, Hugo. Ninguém sai assim.
— Eu saí.
— Então paga com sangue ou com o Thomas.
Ele não respondeu. Só fechou a porta, devagar.
Mas por dentro, tudo nele gritava.
Naquela noite, dormiu com uma faca escondida debaixo do travesseiro.
Na seguinte, ficou em claro até o sol nascer.
Na terceira, decidiu fugir.
Thomas percebeu. Lógico que percebeu.
— Por que você tá me escondendo algo de novo? — ele perguntava, olhos fundos de preocupação.
— Eu tô te protegendo.
— Mentira. Tá me afastando.
Hugo queria contar. Mas como se diz pra quem você ama que o perigo tá na esquina, esperando um passo em falso?
Foi Thomas quem descobriu.
Acordou sozinho certa manhã, com a cama ainda quente, mas vazia.
No banheiro, no espelho, um recado rabiscado com batom:
> “Se eu não voltar, saiba que foi por você.
Te amo.” — H.
Thomas não chorou.
Ele pegou a jaqueta, o celular, e ligou pra alguém que devia muito a ele.
Sim, o ômega doce tinha contatos.
Não era tão ingênuo quanto parecia.
O galpão estava escuro. Hugo sangrava.
Apanhou pra não entregar Thomas.
Mas nunca gritou.
— Você é mesmo burro, Hugo. Se apaixonar por um ômega? Vai morrer por isso?
— Com gosto.
Foi aí que Thomas apareceu.
Pequeno, decidido. Com uma arma nas mãos e fogo nos olhos.
— Larga ele. Agora.
Os bandidos riram. Até verem o reforço que veio com ele: dois seguranças armados até os dentes.
— Eu sou frágil, sim. Mas não sou burro.
— Se encostar nele de novo, eu acabo com todos vocês. Um por um.
Hugo nunca ficou tão apaixonado.
Nem tão assustado.
Eles saíram de lá inteiros.
Com cicatrizes novas.
Mas vivos.
Três anos depois.
Thomas usava um terno branco. Gravata azul-clara. E uma barriga discreta de dois meses.
— Nervoso? — ele perguntou, sorrindo, enquanto ajeitava a lapela de Hugo.
— Quase morrendo.
— É só um casamento.
— Não. É nosso casamento.
Na igreja pequena, só amigos de verdade.
Nenhum do passado.
Apenas o agora.
Quando disseram “sim”, foi com lágrimas.
Quando se beijaram, foi com promessas.
E quando saíram da igreja, sob arroz e luz do sol, Hugo murmurou no ouvido dele:
— Eu mataria de novo, se fosse pra te proteger.
— Você não precisa.
— É. Você é o bastante pra eu querer viver direito.
E Thomas?
Ele segurou a mão do pai do seu filho e sorriu.
Porque, no fim, amor verdadeiro é isso:
um assassino que aprende a viver.
E um ômega que ensina o que é paz.