🚫[Os avisos de gatilhos desta obra incluem linguagem de baixo calão, descrições gráficas de cenas de sexo, assassinato, agressão sexual e uso de substâncias ilícitas.]
CONEXÕES
ARCO I: Sistema
ARCO II: LAVIOLETTE
ARCO III: REPROBATE ROMANCE
Noventa e oito socos são o bastante para matar alguém, bem, se o agressor souber como bater, ele só precisará da metade. Meu pulso direito está torcido e acho que desloquei o ombro. O beco se torna mais escuro quando as nuvens bloqueiam a luz da lua. Luz da lua? Todo mundo sabe que ela somente pega o brilho do sol emprestado porque é insuficiente. Perdão, estou divagando. É a primeira vez que sou responsável pelo fim de uma outra vida. Era para ser só mais uma noite cansativa após um trabalho de merda, pegaria o trem de merda e voltaria para minha casa de merda. Mas percebi que estava sendo seguido por um cara de capuz e, ao invés de fugir do perigo, tomei a decisão de me esgueirar em um beco úmido. O engraçado é que ele não estava armado, eu também não perguntei o que ele queria. Meu instinto foi apenas de partir para a agressão. Soco após soco. O homem não gemeu de dor e aceitou calado sua morte.
Estou sentado sobre a barriga do cadáver, de forma que meus joelhos estão tocando o chão. Puxo o capuz do indivíduo para trás, revelando seu rosto, ou o que restou dele. Ficou irreconhecível, é praticamente impossível saber a posição exata do nariz ou dos olhos, o crânio foi trucidado como um capô amassado. Foram socos pesados. Percebo uma mancha na pequena parte exposta do antebraço. Ao checar mais de perto, descubro uma tatuagem, um nome. Noir Cinereus.
A Dona Morte e eu já nos encontramos outras vezes durante a minha infância, ela é de certa forma familiar. Então saber o nome desse pobre coitado não me faz sentir remorso. No entanto, me pergunto se isso pode ser chamado de legítima defesa, talvez esse cara já pretendia entrar no beco antes mesmo que eu o fizesse. Talvez, só talvez, ele nem mesmo estivesse me perseguindo.
— Bem, de qualquer forma, não significa muita coisa. Hora errada, lugar errado.
Me levanto abandonando o corpo. Apanho minha mochila do chão, passando apenas uma das alças pelo braço. Dou uma última olhada para o corpo. Isso vai se tornar uma dor de cabeça no futuro, mas não estou afim de me esforçar pensando o que fazer com o cadáver, então vou deixar onde está. Aparentemente, ele era só um mendigo, quando alguém encontrar seus restos, será apenas mais um caso midiático. Assim que dou as costas para minha vítima, meu pulso torcido começa a queimar e uma dor horrível se espalha na região do meu peito. Mas que porra... ?
Me apoio nos joelhos evitando uma queda, parece que estou tendo um infarto. Antes mesmo que eu consiga identificar a origem do meu mal estar, a dor desaparece. Olho em volta um pouco aflito. Estava tendo um ataque cardíaco assim do nada? Encaro minhas mãos ensanguentadas ao perceber que a dor no meu pulso ruim também sumiu e sou pego de surpresa ao encontrar um relógio estranho no meu pulso. Eu não tenho relógio, nem mesmo uso qualquer tipo de acessório.
— De onde isso veio? — tento tirar o relógio, mas ele não tem uma trava, o que quer dizer que é impossível de ser removido.
Devo estar delirando por ter matado uma pessoa, a mente é boa em pregar peças. É um objeto bem detalhado com cores entre dourado e preto. Pressiono o indicador contra a tela do relógio dando batidinhas e me assusto quando ele responde acendendo a tela como um maldito celular. É então que uma frase aparece.
Com a alça da mochila passando pelo ombro, deixo meu quarto. Passo a mão rapidamente pelo cabelo úmido assim que piso na cozinha com um pouco de pressa e o estômago agitado. Mas toda essa pressa se esvai, deixando somente o cheiro do shampoo preencher a fome.
Os dois estão na cozinha recolhendo seus pratos e xícaras, olhares se lançam contra mim, fechando um nó na garganta com pressão o suficiente para gerar uma inflamação. Will está com uma cara péssima de preocupação, revezando o olhar entre a mulher ao seu lado e eu. Susana, diferente dele, ergue o queixo e me encara de maneira perfurante. Por mais que tenhamos características semelhantes, seus olhos são da cor do chocolate, enquanto os meus se banham num mar azul. Sem contar na minha incapacidade de encarar outro ser vivo com tanto desdém como ela me encara. O que ela pensaria se soubesse o que fiz ontem à noite?
Levanto as mãos e abro a boca para dar alguma explicação antes que algo aconteça, mas Susana não está a fim de esperar quando encurta a distância entre nós, fazendo um movimento brusco com o braço para acertar meu rosto. Minha bochecha queima.
— Por que chegou tão tarde ontem? — os cabelos sedosos de Susana se espalham pelo rosto dela, eles são quatro tons mais escuros que os meus e ainda assim atingem certa semelhança. — Sua única função é ir embora desta casa e não ficar vadiando até tarde.
Pressiono os dedos no local dolorido e ergo a cabeça um tanto surpreso (não surpreso do tipo "isso nunca me aconteceu", a surpresa se deve mais pelo sentimento que estava no tapa, um acúmulo de ódio). O relógio ainda está no meu pulso. Irritante.
— Ah... — meus lábios se alargam em um sorriso, cerro o punho e o pressiono contra meu peito, forçando uma animação. — Desculpa, Suasana, não vai acontecer de novo.
Susana tem o rosto em formato de coração, às vezes me pergunto se esse detalhe existe para compensar a falta do seu que deveria estar encaixado em seu interior. O uniforme rosa se ajusta ao seu corpo, fazendo alusão a uma mulher séria em sua profissão. Enfermeiras têm a mão pesada assim mesmo?
Como se fosse capaz de ler mentes, ela faz outro movimento brusco com o braço querendo acertar o outro lado. Eu não dei os dois lados da face, mas acredito que ela viria buscar. Will puxa Susana pela cintura e se entrepõe no nosso meio.
— Já chega, Susi, foi só um deslize, poxa! Não vai acontecer de novo — diz Will com sua voz serena demais para um homem de um metro e noventa, careca e ombros largos. Ele ergue a sobrancelha para mim. — Certo, Nero?
Balanço a cabeça ainda pressionando contra minha bochecha ardida.
— E sobre isso... estou prestes a alugar um apartamento. — Aperto a nuca abrindo um sorriso sem mostrar os dentes.
Susana cobre o rosto, pegando um momento só para si dedicado a respirações lentas. Joga o cabelo para trás e solta um suspiro, depois leva as mãos até a cintura. Ela tem apenas trinta e quatro anos, mas se não tomar cuidado, pode acabar colecionando rugas com tanto estresse.
— Assim espero, sua condição não é favorável.
Sem dizer mais nada, Susana sai derrubando o mundo à sua frente.
Quando o barulho da porta se estraçalha, me permito respirar. A casa nada mais é do que uma caixa restrita de oxigênio impossibilitando até o menor dos suspiros. Não há alívio com a saída dela, há apenas amargura deixada por seus dedos em minha pele.
Os olhos de Will me abandonam, ele começa a preparar alguma coisa com pães. Faz o gesto para que eu me sente à mesa.
— Não apoio as ações dela, mas você bem que podia colaborar, né? — Will engorda um pão com queijo e depois o esquenta.
Apoio os cotovelos sobre a mesa de mármore, fitando as costas largas dele, é engraçado como nunca me acostumo com seu tamanho. Nunca me acostumo com sua gentileza, nem com seus sentimentos por Susana.
— Perdi a hora ontem, não pense que banquei a criança mal criada para chamar atenção.
— E acha que eu não sei, rapaz? — desliza o prato pela mesa e vai até a cafeteira.
Ergo o pão para dar uma bela abocanhada, mas paro e levanto os olhos para Will.
— O que você viu nela?
— Sua mãe tem um ótimo par de pernas... — Will faz uma cara séria enquanto despeja café numa xícara. — Não espalha, a conversa morre aqui.
Um silêncio se faz. É temporário. Então rimos. Nossas risadas se abafam.
— Se você diz — digo com a boca cheia.
Will vira a cadeira ao contrário e se senta do outro lado e me entrega a xícara. Ele jamais sentaria daquela forma na frente dela. Will me parece alguém atuando o tempo todo, parece exaustivo. Me levanto pronto para sair.
— Te vejo à noite, cara. — Ele ergue a xícara.
Assinto com a cabeça e sorrio. Seria hipocrisia da minha parte julgar o Will por fingir, eu faço isso o tempo todo.
Já dentro do trem bastante estufado, pressiono as costas contra o vidro da janela cercado por todas aquelas pessoas perdidas em seus próprios mundos pendurados na barra de ferro ou sentados e confortáveis. Confiro o relógio maldito no meu pulso, como tiro isso? Meu pulso estava torcido e meu ombro deslocado, mas quando acordei estava novo em folha. Isso assustaria qualquer um. Até onde sei até o momento, o relógio possui um Sistema. O troço só ligou ontem a noite e até agora não deu nenhuma resposta. Dou uma batidinha na tela e tomo outro susto quando a tela acende com letras douradas. Isso está ficando chato.
Missões? É algum tipo de jogo? Como se eu fosse perder meu tempo com essas merdas. Abaixo o pulso girando os olhos, mas leio outra vez percebendo as letras miúdas.
[Caso o Player se recuse a completar as missões, em consequência, será punido com um infarto fulminante. Terá aproximadamente 10 segundos para aceitar]
Fico encarando a tela. Ainda por cima estou sendo ameaçado. Eu poderia rir disso, mas lembro nitidamente de ter sofrido um pequeno ataque cardíaco naquele beco.
Restam 5 segundos.
É impossível fazer tudo isso em um dia, vou acabar morrendo de cansaço. Além do mais, não é como se eu tivesse todo tempo do mundo...
Restam 2 segundos.
Porcaria!
1 segundo.
Me jogo no chão do trem assustando as pessoas a minha volta e dou início a uma série de flexões. Estou fora de forma, claramente não consigo fazer mais do que dez, mas ao invés de parar, faço uma pausa e continuo fazendo até os músculos arderem. O trem vai demorar meia hora até chegar no meu trabalho, é tempo o suficiente.
— 30 minutos depois... —
Quando termino, tem uma poça de suor embaixo de mim. Não sinto mais a porcaria dos meus braços e meu peito queima. O vagão fica até mais vazio. Me levanto recebendo olhares de julgamento das pessoas restantes.
As portas se abrem.
Pego a mochila e me arrasto para fora com dificuldade de respirar.
A tela do relógio brilha novamente.
O que é agora?
[Missão "500 Flexões" cumprida.
Recompensa: Recuperação total.]
Paro de andar assim que toda a dor e o cansaço desaparecem. Me sinto muito bem, sinto até que posso fazer tudo de novo. Mas minha alegria não dura muito. Minha camisa ficou encharcada de suor, maravilha.
Valeu, relógio de merda.
Eu não fui o tipo de criança que você poderia chamar de comum. Sem querer assumir o papel do diferentão, não entenda errado, isso é o oposto de sentir orgulho. Enxergar o mundo sem cor aos seis anos foi tudo, menos divertido. Tudo sempre me pareceu tedioso, brincadeiras, doces, afeto. E não para por aí, se apenas a minha personalidade fosse defeituosa, estaria tudo bem, mas eu conseguia fazer coisas impossíveis.
Aos oito anos, conseguia mover objetos pequenos sem precisar tocá-los. Sempre foi o meu segredo, a fuga do tédio. Por isso escolhi o trabalho perfeito em que eu pudesse fugir da realidade. Seria praticamente impossível um magricela como eu ser um dos melhores na construção civil, levantar o triplo do meu peso sem usar as mãos. Calço as luvas e ajeito o capacete ao avistar meu chefe carrancudo vindo na minha direção.
— Ei, aberração! Estão precisando de você lá nos fundos.
— Oui, chef! — faço que sim com a cabeça.
— Estou de olho em você, desgraçado. — diz ele, segurando meu braço.
Esse é meu chefe paranóico, há alguns meses descobriu que a esposa tinha uma queda por caras loiros na adolescência, então cismou comigo e desde então vem pegando no meu pé. Pessoas comuns são tão patéticas, medrosas e ansiosas por qualquer porcaria. Levanto o olhar para ele, logo em seguida meu chefe solta meu braço.
— Nero Valen, tem trabalho pra você bem aqui. — Um dos operários aponta para o monte de vigas.
— Deixa comigo. — Sorrio, erguendo a mão enquanto ele se afasta.
Finalmente paz. Os outros trabalhadores estão mais afastados. Vou aproveitar esse momento para completar outra missão. Encaro o relógio. Por que preciso obedecer assa porcaria? Tenho tanto medo de morrer ou isso parece divertido? Seja o que for, lá vou eu fazer 400 agachamentos.
As vozes acumuladas me irritam um pouco. Você só quer ir para casa e dormir um pouco, mas o trem demora e as pessoas amontoadas na plataforma ficam batendo a boca, falando sobre coisas inúteis. Enfio os fones e deixo Duality invadir meus ouvidos, enquanto aprecio a música, uma mulher passa na minha frente e acidentalmente se tropeça em meu pé. Desenho um sorriso no rosto antes mesmo dela se virar, mostrar passividade diminui os riscos de uma discussão mesmo que eu não tenha culpa nenhuma.
Ela se vira para mim com os olhos arregalados, é impossível não notá-los, são verdes demais e brilham demais.
— Eu sou um desastre, me desculpa. — Ela se aproxima com a testa franzida.
— Não foi nada, moça. — Digo ainda sorrindo.
A mulher também está usando fones de ouvido, a diferença é que ela esqueceu de conecta-los e a música está saindo diretamente de seu aparelho. Meus olhos vão parar na bolsa de couro que ela carrega, é onde o celular está. Estamos ouvindo a mesma coisa. Duality.
— O fone... — aponto para baixo.
— Ah, sim — ela tira o celular da bolsa e desliga o celular. — Meu Deus, eu não estou funcionando hoje.
Enfio as mãos no bolso quando o barulho do trem se aproxima. A mulher fica ao meu lado quando a máquina desliza pelos trilhos. As portas se abrem e entramos no vagão. Agora continuo escutando as vozes acumuladas e a estranha que gosta de Slipknot ainda está aqui. Pelo canto do olho, dou uma conferida nela. Seus cabelos são firmes e ruivos, ela escolheu o vestido esmeralda que faz um par perfeito com seus olhos. Meu maior defeito é não conseguir me adequar a situações como essa, um cara normal usaria o fato de ambos estarem escutando a mesma música como pontapé para um assunto. Mas não estou afim de me esforçar.
— Você também curte? — ela segura no meu ombro de repente.
— O que?
— Estamos ouvindo a mesma música. — Ela ri balançando a cabeça.
Tiro os fones. Como ela percebeu se o volume estava tão baixo? Audição inumana?
— Gosto da mensagem dela.
— Essa é a parte chata, gosto mesmo é do barulho. — A ruiva sorri quando olha nos meus olhos.
É só um sorriso limpo sem mostrar os dentes e acho isso muito bonito. Isso me lembra a Susana de quando eu era pequeno, ela me influenciou com seus rocks pesados, as duas têm o mesmo tipo de sorriso limpo.
— Como conseguiu ouvir? É que estava tão baixo.
— Sou superdotada quando se trata de qualidade. — Ela sorri de novo.
— Conta outra. — Involuntariamente acompanho o sorriso dela.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— É sério, meus sentidos são aflorados, poxa!
— A superdotada tem nome?
A ruiva tomba a cabeça para o lado deixando algumas mechas perfeitas sobre o rosto.
— É Violly.
— Nem um pouco francês. O meu é Nero.
As sobrancelhas dela se erguem quando tenta conter o riso.
— Nero? O imperador?
— Talvez meus pais estivessem bêbados.
Violly me cutuca com o cotovelo.
— Você não é daqui é?
— Itália.
— Um italiano. — Ela franze os lábios. — Está um pouco longe de casa.
As portas do vagão se abrem. Minha saída é anunciada, mas não quero descer agora, essa mulher me fez reviver lembranças muito antigas da minha mãe.
— Eu desço aqui, francesa.
— Tchau, tchau, italiano.
Olho por cima do ombro só para ver mais uma vez seu sorriso antes das portas se fecharem. É exatamente como o sorriso da antiga Susana, acho que conversamos bastante também.
Encaro o relógio lembrando da existência dele, só falta a missão de correr dez quilômetros. Sem perder tempo, já saio da estação botando as pernas para funcionar.
O dia de hoje pode estar uma loucura. Primeiro obedeço ordens de um relógio satânico e depois me interesso por uma mulher que tem o mesmo sorriso da minha mãe.
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