DAMIAN... 5 anos atrás
Era inverno e eu voltava de uma missão na Suécia. Fechei contratos que rendem milhões, contratos que só homens como eu podem conduzir. Desde que meu pai deixou o quartel nas minhas mãos, reergui tudo com punhos de ferro. Somos os melhores, os mais temidos.
María estava em casa, grávida, me esperando. Meu primeiro amor, a única que já me fez sentir algo além do poder. Eu a amava a ponto de arrancar a lua do céu se ela pedisse. Dois meses longe, e eu não a avisará da minha volta. Queria ver a surpresa, o medo e a alegria estampados no rosto dela ao mesmo tempo.
O helicóptero pousou na base da mansão. Desci sozinho, respirando o ar frio da noite, deixando os soldados para trás. Caminhei pelo hall de entrada e algo me chocou: estava escuro. Estranho. María nunca dormia cedo. Cada passo que dei parecia fazer o silêncio gritar.
Abri a porta do quarto e meu mundo se despedaçou.
Lá estava ela, minha María, cavalgando sobre Andrey, meu soldado de confiança, o homem que deixei para cuidar dela. O traidor. O traidor sorria, seguro, enquanto ela tentava explicar-se com olhos vermelhos de lágrimas.
A raiva me consumiu como fogo líquido. Peguei María pelos cabelos e a joguei de lado. Ela engasgou, apavorada. Andrey nem ousou me encarar.
— Há quanto tempo? — minha voz era um sussurro mortal.
Silêncio. Então levantei o tom, esmagando a sala com o poder que sempre exerci:
— A quanto tempo, porra?!
— Seis meses, senhor — respondeu Andrey, trêmulo, mas com aquele sorriso de covarde que me fez sorrir também. Um sorriso tão pequeno diante da morte que eu tinha em mãos.
Olhei para María. — Esse filho é meu, María. — Afirmo a minha voz de quem não admite discussão.
— Sim, sim, meu amor, eu… eu lhe juro — ela gaguejou.
— Esse filho é meu, Maria — interrompe Andrey, zombando da nossa história, do meu sangue e da minha paciência.
O sorriso que formou em meus lábios não era de alegria. Era o sorriso do diabo que todos conhecem, do homem que não perdoa nem vacila.
Fechei a porta do quarto com força, trancando os dois. Meu olhar queimava. Cada segundo de silêncio era um inferno que construí para eles.
Peguei o galão de combustível que sempre guardo para momentos como este. Eles pensaram que poderiam desafiar meu poder? Que poderiam brincar com minha confiança e sair ilesos?
Joguei o líquido no chão, abri a porta e comecei espalhando-o pelo quarto. O cheiro me satisfez, antecipando o caos. O fogo não era apenas destruição; era justiça, era dominação, era o aviso que o quartel deveria lembrar para sempre.
— Traidores pagam com a vida. — Minha voz cortou o ar, gelando o sangue deles.
Um fósforo acendeu e o fogo avançou como um animal selvagem. María gritou, e Andrey congelou em terror. Vi a esperança nos olhos deles se transformando em pânico. Cada segundo do avanço das chamas era o retrato da minha ira. Não havia misericórdia. Não havia explicação. Apenas poder.
Enquanto as chamas consumiam o quarto, senti uma estranha mistura de satisfação e dor. Dor porque aquela mulher que eu amava ainda existia ali, mas satisfação porque o mundo precisava saber que nenhum traidor sobrevive ao Anjo da Morte. Mandei todos evacuar a mansão e mandei meus soldados terminar de emsendiar o restante da casa.
Não é ódio comum. É possessão. É aviso. É medo que pulsa no sangue. Eu, Alejandro Ramírez, “El Cordero Negro”, não deixo nada que me pertença escapar. O fogo os lembra disso, e lembra a todos que minha mão é o juízo final.
E enquanto assistia as chamas engolirem o quarto, pensei no que viria depois. María, minha María, ainda respirava, o fogo a assustando, mas não me afastando. Ela seria minha. Não por amor, mas por destino. Eu não podia permitir que ninguém roubasse o que era meu. Nem um filho. Nem uma alma.
O quartel, meus homens, a cidade — todos sabiam o que acontecia quando cruzavam o caminho errado. Mas ela… ela me desafiava de uma forma diferente. A ignorância dela me irritava e me atraía ao mesmo tempo. Era o único pedaço de luz que ousava existir no meu inferno particular.
A partir daquela noite, tudo mudou. Não apenas o destino de María, mas também o meu. Eu me tornei mais cruel, mais impiedoso. Mas, paradoxalmente, mais vivo. Porque o fogo não destrói apenas corpos; ele revela a essência do que somos.
E eu sou o diabo que caminha entre chamas.
DAMIAN Vasconcellos 34 ANOS...
— A Menina do Rosário
Narrado por Isabela
O vento do campo sempre teve um som diferente, quase como uma prece sussurrada entre as folhas. Cresci ouvindo esse som, achando que ele era a voz de Deus me dizendo que eu nunca estava sozinha. Papai costumava dizer que o silêncio do campo é o que mais ensina — e eu aprendi a ouvir. Aprendi a entender o canto dos pássaros, o farfalhar das árvores e até o barulho da chuva caindo no telhado velho do nosso sítio.
Desde que me entendo por gente, minha vida foi aqui, entre o cheiro da terra molhada e o som distante das badaladas da igrejinha de Santo Antônio. Papai sempre foi um homem rígido, desses que não precisam levantar a voz para impor respeito. Ele acreditava que a fé devia vir antes de tudo. “Sem Deus, filha, o homem vira bicho”, ele dizia, enquanto passava os dedos calejados pelo terço que nunca saía do bolso.
Eu cresci vendo aquele terço mais do que qualquer brinquedo. Era o que ele usava quando rezávamos antes das refeições, antes de dormir e, principalmente, quando as tempestades vinham. Ele ficava de joelhos no chão batido e orava com tanta força que às vezes eu achava que o próprio céu parava pra ouvir.
Nunca fui de ter amigos. Papai não permitia que eu fosse pra cidade com frequência, dizia que lá havia gente perdida, sem fé. Então meus dias eram preenchidos com aulas particulares dadas por Dona Clara, uma professora aposentada que vinha duas vezes por semana. O resto do tempo, eu lia. Lia a Bíblia, os cadernos antigos da escola, as cartas de um tempo em que papai ainda acreditava que a vida poderia ser diferente.
Eu aprendi a ser quieta. Aprendi que segredos não se contam, que o coração é uma coisa frágil demais pra ser exposto. Nunca tive com quem dividir meus pensamentos, meus medos, meus sonhos bobos. Às vezes eu falava sozinha, ou com o espelho, só pra ouvir minha própria voz.
Mas apesar de tudo, eu era feliz. Havia uma paz estranha naquela rotina. Eu sabia o horário em que o galo cantava, o momento exato em que o sol batia na janela do meu quarto e a hora em que papai voltava da lavoura. Tudo era exato, controlado, quase sagrado.
O padre Miguel costumava vir à fazenda uma vez por mês. Um homem sereno, de fala doce, que sempre trazia um pão benzido e palavras de conforto. Ele e papai passavam horas conversando na varanda sobre fé, sobre pecado, sobre o que o mundo estava se tornando. Eu servia café e ficava ouvindo de longe, sem ousar interromper. O padre dizia que eu era uma menina de alma pura, dessas que nascem pra servir à luz. Papai sorria orgulhoso quando ouvia isso.
Mas o tempo… o tempo começou a roubar o brilho dos olhos dele. Aos poucos, o homem forte e imponente foi ficando cansado. Tosses que não passavam, noites sem sono, mãos trêmulas. Ele dizia que era só o peso da idade, mas eu sabia que era mais. Eu sentia.
Um dia, acordei antes do sol e o encontrei sentado na varanda, com o terço entre os dedos e o olhar perdido no horizonte. A brisa fria cortava o rosto dele, mas ele não parecia sentir.
— Pai, o senhor não dormiu? — perguntei baixinho.
Ele me olhou, sorriu fraco e respondeu:
— Às vezes Deus chama a gente pra conversar quando o mundo ainda dorme, filha.
Aquilo me gelou por dentro. Eu queria entender o que ele queria dizer, mas fiquei quieta. Só sentei ao lado dele e fiquei ali, em silêncio.
Nos dias seguintes, ele começou a me afastar de certas tarefas. Dizia que eu não precisava me cansar, que eu devia cuidar mais dos estudos e da fé. Mas eu via as mãos dele tremerem, via o suor frio escorrendo na testa, via o rosário cada vez mais apertado entre os dedos. Ele estava morrendo, e eu sabia. Só não sabia como lidar com isso.
Naquela noite choveu muito. Eu lembro do cheiro da terra molhada e do som do trovão cortando o céu. Ele estava deitado, respirando com dificuldade, mas não queria que eu chamasse o médico. “Se for hora, é hora”, sussurrou. Fiquei ao lado dele, segurando sua mão, rezando o terço que ele me ensinou.
— Promete que vai continuar acreditando, minha filha… — foram as últimas palavras dele.
O resto foi silêncio. O tipo de silêncio que corta a alma.
Acordei no outro dia com o padre Miguel ao meu lado, tentando me consolar. Disseram que o coração dele parou. Mas no fundo, algo me dizia que não era só isso. Papai tinha inimigos, mesmo sem nunca ter feito mal a ninguém — ou talvez o passado dele escondesse algo que eu ainda não sabia.
Fiquei dias sem comer, sem dormir, andando pela casa como uma sombra. O campo, antes cheio de vida, agora parecia morto comigo. Eu só tinha ele. Sempre foi só ele.
Minha mãe… nunca conheci. Morreu no parto, e papai nunca quis falar sobre ela. Dizia apenas que ela tinha um coração bom, e que foi o amor da vida dele. Nunca vi uma foto, nunca soube seu nome completo. Era como se ela tivesse sido apagada do mundo — e de mim.
Agora, com ele morto, eu estava sozinha de verdade. Sozinha no meio de hectares de terra, de lembranças, de orações que pareciam não ter mais resposta.
Eu me lembro do dia do enterro. O padre falava palavras bonitas, mas tudo soava distante. Eu olhava para o caixão e esperava que ele se levantasse, que dissesse “foi só um susto, minha filha”. Mas ele não se levantou.
Foi ali que o mundo acabou pra mim.
Depois do enterro, a fazenda ficou em silêncio absoluto. Nenhum pássaro, nenhum vento, nada. Só o barulho do meu coração tentando entender o que seria de mim agora.
Dias depois, enquanto eu tentava arrumar as coisas dele, um carro parou na porteira. Um homem desceu. Tinha o mesmo olhar firme do meu pai, mas um ar mais pesado, sombrio. Ele caminhou até mim com passos lentos, o casaco preto contrastando com o sol do fim da tarde.
— Isabela? — a voz dele era grave, autoritária.
— Sim… quem é o senhor? — perguntei, ainda sem entender.
— Sou Magno… irmão do seu pai.
O nome soou estranho. Eu nunca soube que papai tinha um irmão.
Ele me olhou com um misto de pena e dureza.
— Ele me escreveu há alguns meses. Disse que estava doente. Eu devia ter vindo antes… — murmurou.
Ficamos em silêncio por um tempo, até que ele perguntou:
— Você tem pra onde ir, menina?
Neguei com a cabeça.
— Algum emprego, alguém que possa te ajudar?
— Não, senhor.
Ele suspirou fundo, olhou para o chão por um momento e depois voltou o olhar pra mim.
— Então você vem comigo. Pelo menos até se ajeitar.
Eu devia ter recusado. Devia ter desconfiado daquele olhar frio e daquela voz que não deixava espaço pra escolha. Mas eu estava perdida demais pra dizer não.
E foi assim que deixei o campo, minha casa, meu pai e tudo o que eu conhecia pra trás. E seguir um homem totalmente desconhecido, achei estranho ele dizer que era irmão de meu pai, sendo que não foi no funeral e nem no interro, bom talvez seja que ele não goste desse clima e de entrar la dentro.
ISABELLA 24 ANOS...
Capítulo 2 — A Casa do Tio
O carro avançava pela estrada de terra levantando uma poeira fina que entrava pelas frestas da janela. A paisagem ia mudando devagar — o campo verde dava lugar a montanhas, muros altos e arame farpado. Eu olhava tudo com curiosidade e um aperto no peito.
O tio Magno dirigia em silêncio. Às vezes, acendia um cigarro, o olhar perdido no horizonte, como quem carrega o peso de um passado que não quer lembrar. Eu não sabia o que dizer. As palavras pareciam pequenas diante dele.
Quando finalmente chegamos, o portão se abriu automaticamente. Um homem com farda preta fez sinal de respeito para o meu tio, e eu fiquei sem entender. Aquilo não parecia uma simples fazenda. Era tudo grande demais, limpo demais, silencioso demais.
A casa ficava no topo de uma colina. De longe, parecia uma daquelas mansões antigas de filmes — com paredes grossas e janelas altas. Mas ao chegar perto, percebi que não havia flores, nem cortinas, nem risos. Só vigilância e concreto.
— Bem-vinda, Isabela — ele disse, saindo do carro e me estendendo a mão. — Aqui é seguro. Você vai poder descansar.
“Seguro.” Aquela palavra ecoou na minha cabeça. Eu não sabia do quê ele queria me proteger, mas havia algo em sua voz que me fez acreditar.
A empregada apareceu e me levou até o quarto. Era espaçoso, com móveis escuros e um cheiro de madeira antiga. Na parede, um crucifixo. Fiquei aliviada. Tirei o rosário do bolso e o deixei pendurado na cabeceira, como fazia desde criança.
Depois de um banho rápido, desci para o jantar. A mesa era enorme, mas só havia dois lugares arrumados. Ele já estava sentado, com um copo de vinho à frente e o olhar pensativo.
— Sente-se — disse, apontando a cadeira em frente.
O jantar começou em silêncio. Ele comia devagar, observando tudo com atenção, como se analisasse cada movimento meu. Eu me sentia um pouco desconfortável, mas ao mesmo tempo havia algo nele que inspirava respeito.
— Então… — comecei, tentando quebrar o gelo — o senhor vive sozinho aqui?
— Sozinho, não. Tenho gente que trabalha pra mim. — respondeu, sem levantar o olhar do prato.
— E o que o senhor faz, tio?
Ele parou por um instante. Colocou os talheres na mesa e me olhou com calma.
— Trabalho com… segurança. — respondeu, e voltou a comer.
Aquela pausa entre as palavras me deixou curiosa, mas decidi não insistir.
— Seu pai sempre falou com muito orgulho de você — ele disse de repente.
— Falava?
— Dizia que você tinha o mesmo olhar da mãe.
Meu coração apertou. Era a primeira vez que alguém falava dela.
— O senhor a conheceu? — perguntei, esperançosa.
Ele hesitou. O olhar endureceu um pouco.
— Conheci. Era uma mulher boa. Mas o destino foi cruel com ela.
O tom dele não deixava espaço pra mais perguntas, então eu me calei.
Comemos em silêncio por alguns minutos, até que a curiosidade me venceu.
— Tio… por que o senhor não foi ao enterro do papai?
O ar pareceu ficar mais pesado. Ele se recostou na cadeira, olhou para o copo e respondeu devagar:
— Porque quero lembrar do meu irmão vivo. Durão, teimoso, do jeito que sempre foi. — Fez uma pausa longa, os olhos vagando para algum lugar distante. — Aquele corpo na carneira já não era mais ele. Era só a casca.
Fiquei olhando pra ele, tentando entender.
“Casca?” Pensei comigo. Aquilo me soou estranho, mas percebi que havia tristeza verdadeira no olhar dele. Resolvi não dizer nada.
Terminei meu prato devagar. O silêncio entre nós já não era desconfortável — era pesado, como se cada um tivesse seus próprios fantasmas sentados à mesa.
Quando ele terminou o vinho, levantou-se e disse:
— Amanhã vou te mostrar a propriedade. Você vai conhecer as pessoas que trabalham aqui. Se quiser, pode ajudar na cozinha ou na estufa, mas sem se cansar.
Assenti com a cabeça.
— Obrigada, tio.
Ele me olhou com certa ternura, um lampejo rápido que desapareceu antes que eu pudesse entender.
— Descanse, Isabela. E… não saia sozinha à noite. — disse, antes de se afastar pelo corredor escuro.
Fiquei parada por um tempo, observando o vazio da sala. O relógio marcava quase dez da noite. Um vento frio passou pela janela e fez as velas tremeluzirem.
Voltei pro quarto, mas o sono não vinha. A casa parecia viva, cheia de barulhos que eu não reconhecia — passos, portas se abrindo ao longe, murmúrios abafados.
Rezei, pedindo a Deus que me protegesse e que ajudasse o coração do meu tio, que parecia tão solitário.
Mas lá no fundo, algo me dizia que eu estava rezando pelo motivo errado.
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