Nome: Eliza Lima de Oliveira
Idade: 24 anos
Profissão: Pedagoga
Local: Diadema, Interior de São Paulo
Nome: Túlio Lima de Oliveira
Idade: 19 anos
Ocupação: Estudante (em uma fase de grande indecisão)
Relação com Eliza: Irmão caçula e principal responsabilidade.
O cheiro de Diadema, às seis e meia da manhã, era uma mistura inescapável de pão quente da padaria da esquina e diesel dos primeiros ônibus da Piraporinha. Para Eliza, era o aroma de casa e, ao mesmo tempo, o lembrete azedo de que a vida adulta não lhe dava mais que vinte minutos para sonhar.
Na cozinha apertada, o café já estava passado, mas ela não ousava pegar a caneca. Tinha que ser rápida. Com vinte e quatro anos e um diploma de Pedagogia pendurado na parede, Eliza era a base que sustentava o que restava da família desde o acidente trágico que levou seus pais. A função exigia que ela fosse eficiente e estressada, adjetivos que detestava.
— Túlio! São seis e quarenta! — A voz dela soou mais aguda do que pretendia.
Nenhuma resposta. Apenas o som abafado de fones de ouvido no andar de cima, provavelmente tocando um rap de batida pesada. Seu irmão, Túlio, aos dezenove, estava na fase da "puberdade prolongada", como ela ironizava com as amigas. A verdade era que ele estava revoltado e usava a imaturidade como escudo para não enfrentar o mundo.
Eliza suspirou e finalmente pegou sua caneca. O medo de que Túlio aprontasse alguma — na escola, no trabalho temporário que arrumara, ou até no meio da rua — era o motivo pelo qual ela não dormia mais que cinco horas por noite. Ela era a adulta, a guardiã, a pagadora de contas, enquanto ele… ele era o caçula que nunca parou de lutar contra o luto.
Com a caneca entre as mãos, Eliza se permitiu um minuto na janela. A luz laranja do nascer do sol tingia as colinas acidentadas da cidade, mas era um feixe de luz que ela buscava: a memória.
Fechou os olhos, e o asfalto cedeu lugar a um gramado verde, de um playground qualquer, há uns quinze anos. Ela tinha nove, joelhos esfolados e uma timidez que a impedia de pedir a bola de volta. E ele...
Ele parecia feito de sol e farinha. Os cabelos eram tão claros que ela os achava brancos, e a camiseta, de um time estrangeiro que ela jamais soube pronunciar o nome. Os olhos eram de um azul claro, quase transparente, e foi ele quem chutou a bola na direção dela, depois sorriu com uma bondade que desarmou sua timidez.
Gringo. Foi o apelido carinhoso que criou para o garoto que a fez sentir o primeiro arrepio de algo que era maior que a infância. Ele ficou por um verão, e depois sumiu como fumaça.
Eliza apertou os olhos, tentando forçar a lembrança do nome, do rosto completo, mas a imagem era sempre nebulosa, um sonho que se desfazia ao despertar.
Eu vou encontrar você. A promessa que fizera aos nove anos era o motor que ainda a impulsionava. Era por isso que, mesmo namorando Rafael, ela se sentia sempre com um pé atrás, esperando.
— Que cheiro de saudade é esse na cozinha?
Eliza sobressaltou-se, virando-se para encarar a voz.
Não era Túlio, graças a Deus. Era Rafael.
Alto, de barba bem-feita, a camisa social já impecável para o trabalho na agência de publicidade em São Bernardo do Campo. Ele era tudo o que a vida de Eliza precisava ser: estável, ambicioso e, mais importante, ele tinha "aquelas atitudes".
Rafael aproximou-se, beijando-a na testa, depois na boca, com uma familiaridade reconfortante, mas sem fogo. Ele tinha o mesmo jeito calmo, o mesmo sorriso gentil de canto de boca que o garoto "gringo" da lembrança. Não era o original, mas era um substituto tão bom quanto ela conseguia arrumar.
— Você está aérea, Eliza. Pensando em qual poema vai ler para a turma hoje? — ele perguntou, com a voz baixa e controlada.
— Em como vou conseguir tirar aquele traste da cama — respondeu, apontando para o teto.
Rafael apenas sorriu, o sorriso dele. — Não se preocupe. O Túlio é só um aborrescente. Deixa que eu subo lá.
Eliza suspirou aliviada e, ao mesmo tempo, envergonhada por delegar a tarefa. Era justamente essa a atitude que ela apreciava em Rafael: a calma e a gentileza em resolver os problemas criados pelo irmão. Ele era seu porto seguro.
Mas enquanto Rafael subia as escadas, a mente de Eliza lhe pregou uma peça. O sorriso dele, tão familiar, de repente não era mais um conforto, mas uma cópia. E, pela primeira vez em muito tempo, a segurança pareceu entediante.
O destino não queria que Eliza ficasse entediada.
O celular dela vibrou sobre a bancada, um som seco que interrompeu o silêncio. Era uma notificação de um email que ela mal usava, um endereço antigo que parecia esquecido no tempo.
O título, em letras maiúsculas e em um português claramente traduzido, era estranhamente direto:
"Eu preciso saber se Diadema ainda tem o mesmo gramado de 2005."
Eliza sentiu o corpo gelar. O ruído da risada de Rafael, vindo do andar de cima, parecia distante, como se estivesse sob a água. O café em suas mãos balançou, e ela precisou de todo o seu autocontrole para não derramar a bebida quente.
A data no canto da tela. 2005.
Não podia ser.
Lentamente, como se temesse que a tela fosse queimar seus dedos, Eliza tocou no e-mail. A mensagem era curta, sem remetente visível, apenas um endereço de e-mail estrangeiro, com uma sequência de letras que parecia ter sido digitada no escuro.
De: \text{lore.enzo.ita@web.com}
Assunto: \text{Eu preciso saber se Diadema ainda tem o mesmo gramado de 2005.}
$\text{Oi, Eliza.
Eu sei que isso é estranho, e a chance de você ter mudado de e-mail é de 99%, mas estou tentando.
Eu estou aqui. Estou na cidade. E não me lembro do seu nome completo, nem do sobrenome. Só sei que você me prometeu um dia que me ensinaria a falar "saudade" sem gaguejar.
O gramado ainda existe? É importante.
Com pressa,
L.}$
"L."
A letra dançou na tela. L. Lorenzo.
O nome que ela nunca soube, mas que sua imaginação havia criado, cristalizado em um L. Não era possível que fosse o mesmo. Quantos "gringos" poderiam ter passado por Diadema em 2005, ter brincado em um gramado com uma menina tímida chamada Eliza, e, quinze anos depois, mandado um e-mail com a palavra "saudade"?
Seus pensamentos eram um turbilhão caótico. Ela mal conseguia respirar. Era a vida imitando os romances que ela lia. Era o destino, o Tempo, que tanto esperava.
A porta da cozinha se abriu bruscamente, assustando Eliza. Túlio entrou bufando, com o rosto amassado de sono e o cabelo desgrenhado, seguido por Rafael, que vinha com uma expressão de paciência forçada.
— Viu? Eu disse que ele descia — Rafael sorriu para Eliza, piscando. — Bom dia, Túlio. Tem aula hoje, certo?
Túlio ignorou solenemente o namorado da irmã e foi direto para a cafeteira.
— Bom dia, Mãe Eliza. Qual é a tragédia da vez? Você está branca. O carro quebrou?
Eliza escondeu o celular rapidamente atrás do corpo, o suor na palma da mão quente. O e-mail, aquela loucura, era só dela.
— Não é tragédia nenhuma, Túlio. Não me chame de Mãe. E você deveria já estar de banho tomado.
Túlio revirou os olhos com a maestria de quem pratica o gesto há uma década. — Certo. Vou ver se a água da caixa d’água gelou o suficiente para despertar a minha alegria de viver.
Rafael suspirou, colocando a mão gentilmente nas costas de Eliza. — Ele está difícil hoje. É o TCC que está estressando.
— Não é o TCC, Rafael. É a vida de quem não faz nada para ajudar — Eliza sussurrou, afastando-se, ainda protegendo o celular.
Ela olhou para Rafael, alto, sólido, de camisa social engomada. Ele era a certeza. A estabilidade. Ele era o presente. E de repente, o gramado de 2005 parecia infinitamente mais real do que os dez meses de namoro com Rafael.
— Eu preciso ir. Tenho o relatório da turma para fechar antes da aula. Pode ir na frente, meu amor.
Rafael franziu a testa. — Você está bem, Eliza? Parece que viu um fantasma.
A ironia era palpável. Ela tinha visto um fantasma.
— Estou ótima. É a semana de prova, você sabe. Estresse. — Ela tentou sorrir, mas sentiu que os lábios tremeram.
Rafael a beijou de novo, desta vez um pouco mais demorado, como se tentasse se certificar de algo.
— Me liga depois. E vê se não estressa com esse garoto, okay? — Ele acenou para Túlio, que estava enchendo uma tigela de cereal com uma quantidade ridícula de açúcar, e saiu.
Quando a porta se fechou, Eliza correu para a sala, sentando-se no sofá velho, o único móvel que sobreviveu à vida inteira da família. Os dedos tremiam sobre a tela.
Como responder? O que dizer a um fantasma que retorna com a certeza de que a alma dela ainda esperava?
Se ela respondesse, a estabilidade de Rafael voaria pela janela. Se não respondesse, a Eliza de nove anos jamais a perdoaria.
Respirou fundo.
Oito horas da manhã. Ela precisava estar na escola em trinta minutos.
Túlio apareceu no vão da porta da sala, mastigando ruidosamente. — Eu encontrei umas caixas velhas no sótão. Coisa dos nossos pais. Você quer que eu jogue fora?
— Não! — A resposta de Eliza foi imediata, um grito seco. — Não toque em nada lá em cima, Túlio. É importante.
Túlio deu de ombros, sem entender a reação exagerada. — Ok. O que você disser, chefinha.
O olhar de Eliza voltou para o celular. Aquele email era mais do que importante. Era a prova de que a vida podia, sim, ter a beleza e a loucura de um livro de romance.
Com os dedos firmes, ela começou a digitar.
Para: \text{lore.enzo.ita@web.com}
Assunto: \text{Re: Eu preciso saber se Diadema ainda tem o mesmo gramado de 2005.}
$\text{O gramado ainda existe.
Mas "saudade" é uma palavra perigosa.
Eu não vou te ensinar a falar. Eu vou te ensinar a sentir.
Eliza.}$
Enviado.
O clic do envio ecoou no silêncio da sala. Eliza olhou para as horas. Não havia tempo para o medo, nem para a euforia.
O tempo tinha chegado. E ela precisava correr para a escola antes que seus alunos percebessem que a professora de Pedagogia estava mais perdida que eles no primeiro dia de aula.
Nome: Lorenzo Rossi
Idade: 27 anos (Três anos mais velho que Eliza, reforçando a imagem de "garoto grande" da infância.)
Nacionalidade: Italiana
Ocupação: Engenheiro Civil e Herdeiro Relutante de uma Construtora Familiar
Localização Atual: São Paulo / Diadema (chegou recentemente).
O tempo não era mais uma contagem de dias vazios, mas um cronômetro perigoso.
Eliza pegou a mochila e a bolsa térmica que usava para carregar seu almoço. O nervosismo não era mais aquele frio na barriga de menina; era uma adrenalina forte, que a impelia para frente.
— Eu vou sair, Túlio! — gritou da porta. — O portão fecha às oito e quinze! Não se atrase!
O som de Túlio brigando com o cereal veio da cozinha: — Ah, que surpresa! Minha irmã mandona vai me controlar de novo. Já entendi, Eliza.
Ela revirou os olhos. A resposta afiada já estava na ponta da língua, mas hoje ela não tinha paciência para o drama do irmão. Sua cabeça estava em Milão, no aeroporto, em um e-mail escrito em um português torto.
Enquanto descia as escadas do prédio de dois andares, a realidade de Diadema a abraçou com o vento frio e úmido da manhã. Carros buzinavam, a feira municipal já montava suas barracas coloridas. Eliza acelerou o passo. Sua escola ficava a vinte minutos de ônibus, mas ela precisava andar até a Avenida Piraporinha para pegar a condução.
No meio do caminho, seu celular vibrou de novo. O coração deu um salto triplo mortal.
Era Rafael.
> De: \text{Rafael_Agencia@mail.com}
> Assunto: \text{Re: O café da manhã}
>
O alívio foi seguido por uma ponta de culpa. Rafael era tão constante, tão bom. Mas era a constância dele que, de repente, parecia tão sem graça. Ele era a resposta correta para uma pergunta que ela estava começando a reformular.
Guardou o celular, decidida a focar nos planos de aula.
A, E, I, O, U. Ela daria vogais para a turma da manhã. A simplicidade de ensinar cores e formas era o seu refúgio da complexidade da vida.
Ao chegar no ponto de ônibus, a multidão era maior do que o normal. Eliza suspirou, já ensaiando a melhor forma de se equilibrar e não amassar seus livros.
De repente, uma notificação. Não de e-mail, mas de um aplicativo de mensagens que ela raramente usava.
A mensagem vinha de um número desconhecido, com o DDD (21), do Rio de Janeiro.
> Desconhecido (DDD 21): \text{Eu sei que você está quase pegando o ônibus. Por favor, não entre nele.}
>
O corpo de Eliza congelou. Ela olhou em volta, o pânico subindo pela garganta. Era uma brincadeira? Uma ameaça?
Como ele saberia?
Sua mente correu para o único "L" que existia agora. O gringo estava no Rio?
O ônibus chegou, barulhento e lotado. As pessoas começaram a empurrá-la para a porta.
O celular vibrou de novo.
> Desconhecido (DDD 21): \text{Olhe para a esquerda. Naquela padaria velha, atrás da banca de jornal.}
>
Com as pernas bambas, Eliza obedeceu. Naquele ponto, o medo e a curiosidade estavam em guerra, e a curiosidade estava vencendo por nocaute.
Lá estava. Estacionado de forma um tanto desajeitada, um carro que parecia deslocado na paisagem de Diadema — um sedã preto e caro, com vidros escuros e um brilho de carro alugado.
A porta do motorista se abriu.
O tempo parou. O barulho do ônibus, a gritaria dos feirantes, tudo se tornou um eco distante e abafado.
Ele desceu do carro.
Os cabelos, loiros quase prateados, estavam um pouco bagunçados pelo vento. Vestia uma camiseta preta simples, mas que evidenciava ombros largos, e calças de sarja.
Ele era mais alto e mais largo do que ela imaginava. Mais homem. Apenas os olhos, azuis e transparentes, eram exatamente como ela se lembrava, fixos nela.
Era Lorenzo.
O sorriso dele não era o de um homem sedutor, mas sim o de um garoto travesso que finalmente encontrou um tesouro perdido. Era um sorriso que parecia familiar, mas que jamais seria copiado. Um sorriso original.
Ele atravessou a rua, driblando pessoas com a elegância forçada de quem não está acostumado com a desordem do trânsito.
Eliza largou a bolsa térmica na calçada. O ônibus seguiu, levando embora a rotina e a estabilidade.
Lorenzo parou a menos de um metro dela.
— Eu não consegui esperar pelo e-mail — ele disse, a voz rouca, com um sotaque carregado que era música para os ouvidos dela. — Eu cheguei ontem no Rio, dirigi a noite toda. Não lembro o caminho exato para o gramado, mas…
Ele estendeu a mão na direção do rosto dela, hesitando por um segundo.
— … Mas eu lembro que você era a única pessoa em Diadema que tinha a coragem de me encarar. E eu te encontrei.
Eliza conseguiu balbuciar apenas uma única palavra, que ela usava todos os dias, mas que agora parecia ter todo o significado do mundo.
— L.
— Sì. Lorenzo. — Ele sorriu mais abertamente. — E você, Eliza, você não mudou. Mas o que você está fazendo com uma bolsa de professor e essa cara de quem vai ser atropelada a qualquer momento?
Ela olhou para o chão, para o asfalto, para o ônibus que partira, e para o italiano parado ali, que atravessou um oceano por uma lembrança.
— Eu… eu estou tentando não ser atropelada. E estou atrasada para a escola.
— Não está. — Ele pegou a bolsa térmica do chão e a colocou na sua mão, os dedos quentes. — Eu te dou uma carona. Mas primeiro, me diga onde é o gramado. Eu preciso vê-lo.
Eliza sentiu a adrenalina se esvair, dandvo lugar à confusão. Ela tinha aula. Tinha Túlio para supervisionar. Tinha Rafael para ligar.
Mas o homem à sua frente era a resposta para a oração de sua infância.
— O gramado — ela sussurrou, apontando para trás, para a direção oposta à escola. — É por ali. Mas é só uma praça…
Lorenzo balançou a cabeça, os olhos azuis cheios de uma intensidade que ela jamais vira em Rafael.
— Não, Eliza. Não é "só uma praça". É a minha bússola. É o meu "saudade". Me leve até lá, por favor.
Ele não estava pedindo; estava a convidando para pular no desconhecido.
A rotina podia esperar. O destino, não.
Eliza respirou fundo, fechou os olhos por um segundo e sorriu. O sorriso era dela, e não da pedagoga responsável.
— Entra no carro, gringo. Eu te mostro o caminho.
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