Olívia
A dor não começa no corpo. Ela começa na alma.
É uma ferida invisível, que se abre lentamente, dia após dia, até que o corpo não consiga mais ignorá-la. Hoje, ao me levantar da cama com a ajuda de Phillip, meu filho de apenas treze anos, percebo que essa dor já não se esconde. Ela escorre pelos olhos dele, pela sua voz trêmula, pelo desespero que tenta disfarçar com maturidade precoce.
No início, eu sentia vergonha de contar a eles. Vergonha de admitir que o homem com quem me casei — o pai dos meus filhos — era também o responsável por me destruir. Mas houve um dia em que Brandon exagerou. Um dia em que os socos não pararam, em que os gritos foram substituídos por pancadas, e eu precisei ser hospitalizada.
Meus pais, como sempre, se encarregaram de criar uma história conveniente. Um suposto acidente doméstico. Uma queda na escada. Qualquer coisa que abafasse a verdade e impedisse que o escândalo chegasse à mídia. Afinal, somos Dawson e Muller — nomes que carregam peso político e financeiro no estado do Texas. A reputação vem antes da dignidade.
Desde então, Brandon se sente invencível. Desdenha de mim sempre que se sente no direito de me agredir. Diz que ninguém fará nada por mim. Que, se eu o denunciar, ele acabaria comigo. Tiraria meus filhos, me deixaria na miséria.
Mas que miséria maior haveria do que viver enclausurada física e emocionalmente?
Vivo rodeada de riquezas. Tenho conforto, roupas e sapatos de grife, acessórios caríssimos. Mas nada disso me traz felicidade. Saber das inúmeras traições, ser agredida simplesmente por não aceitar ser enganada... isso não tem preço. E, ao mesmo tempo, custa tudo.
Não posso demonstrar tristeza. Não posso fazer cara feia quando Brandon se aproxima. Ele exige que eu mantenha um lindo sorriso no rosto, que aparente total felicidade. Segundo ele, não tenho razões para reclamar de seus casos extraconjugais, já que “sempre volta para casa” e me proporciona uma vida confortável, com todas as regalias que seu dinheiro pode oferecer.
Diz que sente nojo de mim quando me vê com minha “cara de bosta”. Ignora completamente meu desconforto, invalida meus sentimentos, despreza meu sofrimento. As agressões físicas começaram exatamente porque eu não consegui atender a essa exigência. Porque não consegui fingir que estava tudo bem.
Como eu poderia me sentir feliz ao saber — e ver — meu marido com outras mulheres?
Sinto-me tão insuficiente. Tão pequena.
Tenho consciência de que me casei sem amor. Mas, no início, havia respeito. Até engravidar de Phillip, um ano após nosso casamento, Brandon era carinhoso comigo. Conversávamos sobre o dia a dia. Por um tempo, até pensei que estivesse me apaixonando por ele.
Mas tudo mudou quando anunciei a gravidez. Brandon passou a chegar tarde em casa, a beber com frequência. Tornou-se ríspido, deixou de sair comigo, passou a dizer que eu deveria ficar em casa. Alegava que minha gravidez me tornava feia, que não queria ser visto ao meu lado.
Esse comportamento dilacerou meu coração. Achei que ele queria ter filhos. Nossos pais sempre nos cobraram isso. Ele nunca se pronunciou contra. Pelo contrário, chegou até a me proibir de continuar com os anticoncepcionais.
Mas, quando engravidei, tudo mudou. E eu nunca entendi o porquê.
Passei a sofrer ofensas verbais. Ouvir críticas sobre minha aparência. Ele me proibia de ver meus amigos e até mesmo a nossa família. Desde então, lido com depressão e ansiedade. Entro em pânico sempre que ele chega bêbado em casa, pois, na maioria das vezes, me obriga a ter relações com ele. E se me nego… ele me mostra o quanto pode ser doloroso rejeitá-lo.
Seu comportamento abusivo não se limita nem mesmo diante das crianças. Não suporto ver meus filhos presenciarem a humilhação da própria mãe — com socos e ofensas cruéis. E, ainda assim, sou chamada de ingrata.
Meu pai acha que mereço esse tratamento. Para ele, estou sendo intransigente e egoísta ao exigir exclusividade. Em sua visão, homens não são obrigados a ser fiéis às mulheres, enquanto nós, mulheres, devemos fidelidade aos maridos que nos sustentam e proporcionam uma vida confortável.
Minha mãe é quem mais me decepciona em meio a tudo isso. Dos homens, já espero esse comportamento machista — mas dela…
Uma mulher que foi traída durante todo o casamento, dizer que sou imatura por não saber ignorar o comportamento abusivo do meu marido...
Para ela, é normal que os homens tenham aventuras. “O importante”, diz ela, “é que ele me mantenha com todos os mimos — joias, viagens, roupas requintadas e carros de luxo. Por que querer mais?”
Ouço batidas na porta do quarto. A Sra. Dexter, nossa governanta, aparece para avisar que o jantar está pronto e será servido em breve. Seu olhar é gentil, mas carregado de uma compaixão silenciosa. Ela sabe. Sempre soube. Mas, como todos aqui, aprendeu a não se envolver.
Decido tomar um banho. Peço a Phillip que vá brincar um pouco com a irmã enquanto me arrumo para acompanhá-los no jantar. Ainda sinto dores nas costelas e na cabeça, consequência das agressões que sofri pela manhã.
Qual foi o motivo dos socos e pontapés?
Neguei-me a comparecer ao jantar oferecido ontem à noite pela atual amante do meu marido — filha de um deputado do nosso distrito, com quem nossas famílias mantêm relações comerciais. Mesmo tendo recusado, acabei sendo arrastada e obrigada a desempenhar o papel de uma planta feliz.
Após o jantar, ele me mandou voltar com o motorista — e, sem dúvida, ficou para dormir com ela. Pela manhã, chegou em casa e me acordou com socos. Segundo ele, era para que eu aprendesse a não contrariar suas vontades.
Até quando suportarei isso?
Após o banho, escolho algo confortável que cubra meus hematomas. Acabo optando por um conjunto de moletom. Não quero que meus filhos se sentem à mesa e contemplem, em minha pele, as marcas da dor que nem sempre consigo esconder.
Só espero que Brandon não esteja lá embaixo. Quero jantar sozinha com meus filhos. Quero, por alguns minutos, fingir que somos uma família normal. Que há paz. Que há amor.
Depois de colocá-los na cama, quero apenas me deitar, dormir e, ao menos por algumas horas, tentar esquecer que vivo esse inferno.
Mas sei que o esquecimento não virá. Sei que, amanhã, tudo recomeça. E que, se eu não tomar uma decisão, meus filhos crescerão acreditando que esse é o modelo de família que devem seguir.
E isso, eu não posso permitir.
Olívia
Descer aquelas escadas é como atravessar um campo minado. Cada degrau carrega o peso da incerteza, da dor e do medo. O som da voz de Brandon ao telefone ecoa pelo hall como um alerta. É grave, firme, envolto em uma falsa tranquilidade que me causa arrepios. Só de ouvi-lo, meu sangue gela. O coração acelera, e minhas mãos começam a suar.
Sua presença me apavora. Nunca sei o que esperar. Às vezes, ele está calmo, quase gentil, e tenta se aproximar com toques e palavras doces. Outras vezes, basta um olhar atravessado para que a violência se instale. Mas não sei o que me incomoda mais: o toque fingidamente afetuoso ou o estresse que precede os gritos e os socos. Ambos me causam pavor. Ambos me fazem desejar desaparecer.
Não suporto quando ele me toca. Quando exige sexo como se fosse um direito adquirido, como se meu corpo fosse propriedade dele. Quando quer que eu retribua com carícias e sorrisos, como se o prazer fosse obrigatório. Quando percebe meu torpor, minha ausência durante o ato, torna-se agressivo. E aquilo que poderia ser íntimo transforma-se em tortura.
— Querida, como se sente? — ele pergunta, encerrando a ligação e vindo ao meu encontro no pé da escada.
Sua voz é suave, mas não há suavidade verdadeira ali. É encenação. É controle.
— O jantar já vai ser servido. Estávamos te esperando.
Ele tenta me abraçar. Meu corpo recua, involuntariamente. É instintivo. É defesa. Ele percebe. Sei que percebe. Mas, por estarmos diante dos nossos filhos, mantém-se discreto. Não faz comentários. Não agora.
— Sim, vamos — respondo, com a voz baixa, quase inaudível.
Caminho até a sala de jantar. As crianças já estão sentadas, aguardando por nós. Phillip me observa com atenção. Kate balança os pés sob a cadeira, distraída, mas seu olhar se ilumina ao me ver.
Eu estava com fome. Mas o apetite se esvai só de estar perto dele. Sento-me à mesa com o coração apertado, os ombros tensos e a alma em silêncio. Tento parecer presente, mas estou longe. Estou em outro lugar, dentro de mim, onde ainda posso respirar.
Phillip, ao perceber meu semblante abatido, estende sua pequena mão e a pousa sobre a minha. Olho para ele. Seus olhos me encaram com ternura, sem palavras, mas repletos de afeto. Kate, ao lado dele, me oferece um sorriso tímido — como se, em meio ao caos, ela ainda pudesse me enxergar.
É nesse instante, entre o toque suave e o sorriso frágil, que algo em mim muda. Não posso continuar vivendo assim. Eles merecem mais. Eu mereço mais.
A Sra. Dexter, nossa governanta, passa pela porta e me olha com um ar de pena. E isso me destrói. Odeio viver nessa situação em que todos sabem e veem o que acontece, mas ninguém pode dizer ou fazer nada. E eu sou a pior delas. Porque sou a mãe. Porque sou a mulher que deveria proteger, que deveria agir. E permaneço inerte.
Minha filha não pode continuar vendo o que se passa comigo, enquanto eu aceito humilhações, agressões e traições. Que exemplo estou dando a ela? Se continuar assim, serei para minha filha o que minha mãe foi para mim.
Cresci normalizando as traições de meu pai. Acreditando que os homens tinham direito a esse “escape”, enquanto às mulheres cabia apenas cuidar da casa e dos filhos, deixando os maridos trabalharem e acumularem suas fortunas. Eu estava preparada para a infidelidade de Brandon — mas jamais imaginei que viveria esse inferno de agressões e humilhações.
— Mãe, você melhorou da dor de cabeça? — pergunta Kate, com a voz doce.
Tento, de todas as formas, esconder dela as marcas que ficam em meu corpo — mas é difícil ocultar a tristeza que me consome.
— Estou bem, filha. E você, já fez a lição de casa?
— Amanhã tem aula de balé. Sua mochila está pronta com os seus pertences?
Pergunto, esforçando-me para manter a naturalidade da nossa rotina. Tento sorrir. Tento parecer inteira.
— O Phillip me ajudou a fazer a tarefa, e minha mochila já está prontinha. Você vai fazer meu penteado amanhã, mamãe? Quando faço sozinha, não fica tão bonito quanto quando você faz.
— Faço sim, meu amor — respondo, aproximando-me dela e beijando seu rostinho lindo. — A mamãe vai te deixar ainda mais linda do que já é.
— Como foi o seu dia, querida? — Brandon me pergunta, com a maior cara de pau.
Ele sabe o que fez. Sabe o que isso provoca em mim. Mas finge. Ignora suas ações e me força a atuar como se nada tivesse acontecido — ou como se “não fosse nada demais”.
— Foi tranquilo — respondo, escondendo minha dor atrás de uma entonação leve.
Sento-me à mesa. Phillip conversa animadamente sobre a aula de ciências. Kate conta sobre a coreografia do balé. Enquanto ouço, permito-me por alguns segundos esquecer tudo — e apenas olhar para eles.
A infância ainda mora nos olhos dos meus filhos. E eu não posso permitir que ela seja apagada pelas sombras que Brandon espalha nesta casa.
Com o garfo trêmulo entre os dedos, sinto nascer em mim algo diferente. Não é coragem ainda — é uma urgência silenciosa. Mas ela cresce. Como uma faísca.
Brandon continua a me observar, com aquele ar cínico, como se tivesse feito algum gesto gentil. Mas não há gentileza possível quando o corpo ainda lateja.
Sirvo as crianças com gestos cuidadosos, evitando que percebam o tremor involuntário que se esconde sob a superfície.
— E você, Phillip? — pergunto, forçando um sorriso. — Já terminou a leitura do capítulo do livro da escola?
Ele assente, animado, e começa a falar sobre o livro. A voz dele me atravessa como um lembrete daquilo que ainda é bom, daquilo que ainda é luz.
Brandon tenta encostar sua mão na minha. Me afasto discretamente, como quem serve água ou ajeita um talher. Ele finge não perceber.
A noite segue com sua aparência de normalidade. Mas dentro de mim... cada gesto de Phillip, cada olhar de Kate, cada pequena ternura dos meus filhos acende uma certeza:
Algo precisa mudar, só não sei quando, muito menos como. Mas a faísca está acesa — e agora, ela arde.
— Mamãe, que tal contar uma história para a Kate dormir? Você pode até dormir com a gente, que tal? — sugere Phillip, com o olhar esperançoso.
Percebo sua estratégia. Ele está tentando me afastar de Brandon esta noite — e essa ideia, tão simples e genuína, me emociona.
— Vocês não acham que já estão bem crescidinhos para sua mãe contar histórias e dormir com vocês? — Brandon retruca com rispidez, dirigindo-se aos nossos filhos.
O tom deixa claro: não se trata apenas de uma opinião. É uma tentativa de manter o controle.
— Ah, papai! Sinto tanta saudade da mamãe me contando histórias. Faz muito, mas muito tempo que ela não faz isso... — diz Kate, com um olhar triste e voz miúda, como quem não quer confrontar, mas não consegue esconder sua decepção.
Brandon respira fundo, apertando levemente o copo que segura.
Olho para meus filhos. Phillip continua com a expressão serena, como quem espera que o mundo faça sentido. Kate tenta sorrir, mas sei que carrega nos olhos o peso do que vive — mesmo que não compreenda totalmente.
Sinto que devo algo a eles. Uma história antes de dormir não será apenas um conto — será um abrigo. Será a chance de dizer, sem dizer, que a mamãe ainda está aqui.
— Que tal subirmos assim que terminar o jantar? — digo com suavidade.
Phillip sorri, e Kate pula da cadeira, radiante. Brandon permanece em silêncio. Mas pela primeira vez esta noite, sou eu quem define o próximo passo.
As crianças jantam em silêncio. Phillip evita olhar para o pai. Kate mexe no prato, distraída, como se quisesse desaparecer.
Eu estou presente fisicamente, mas é como se meus pensamentos estivessem trancados num quarto escuro dentro de mim. Cada palavra de Brandon ecoa como uma sentença — e seu olhar...
Seu olhar diz tudo o que ele deseja que eu entenda sem ousar responder.
Mas agora, há algo diferente em mim. A faísca não se apagou e ela arde. E talvez, pela primeira vez, esteja pronta para se transformar em fogo.
Olívia
Descer aquelas escadas é como atravessar um campo minado. Cada degrau carrega o peso da incerteza, da dor e do medo. O som da voz de Brandon ao telefone ecoa pelo hall como um alerta. É grave, firme, envolto em uma falsa tranquilidade que me causa arrepios. Só de ouvi-lo, meu sangue gela. O coração acelera, e minhas mãos começam a suar.
Sua presença me apavora. Nunca sei o que esperar. Às vezes, ele está calmo, quase gentil, e tenta se aproximar com toques e palavras doces. Outras vezes, basta um olhar atravessado para que a violência se instale. Mas não sei o que me incomoda mais: o toque fingidamente afetuoso ou o estresse que precede os gritos e os socos. Ambos me causam pavor. Ambos me fazem desejar desaparecer.
Não suporto quando ele me toca. Quando exige sexo como se fosse um direito adquirido, como se meu corpo fosse propriedade dele. Quando quer que eu retribua com carícias e sorrisos, como se o prazer fosse obrigatório. Quando percebe meu torpor, minha ausência durante o ato, torna-se agressivo. E aquilo que poderia ser íntimo transforma-se em tortura.
— Querida, como se sente? — ele pergunta, encerrando a ligação e vindo ao meu encontro no pé da escada.
Sua voz é suave, mas não há suavidade verdadeira ali. É encenação. É controle.
— O jantar já vai ser servido. Estávamos te esperando.
Ele tenta me abraçar. Meu corpo recua, involuntariamente. É instintivo. É defesa. Ele percebe. Sei que percebe. Mas, por estarmos diante dos nossos filhos, mantém-se discreto. Não faz comentários. Não agora.
— Sim, vamos — respondo, com a voz baixa, quase inaudível.
Caminho até a sala de jantar. As crianças já estão sentadas, aguardando por nós. Phillip me observa com atenção. Kate balança os pés sob a cadeira, distraída, mas seu olhar se ilumina ao me ver.
Eu estava com fome. Mas o apetite se esvai só de estar perto dele. Sento-me à mesa com o coração apertado, os ombros tensos e a alma em silêncio. Tento parecer presente, mas estou longe. Estou em outro lugar, dentro de mim, onde ainda posso respirar.
Phillip, ao perceber meu semblante abatido, estende sua pequena mão e a pousa sobre a minha. Olho para ele. Seus olhos me encaram com ternura, sem palavras, mas repletos de afeto. Kate, ao lado dele, me oferece um sorriso tímido — como se, em meio ao caos, ela ainda pudesse me enxergar.
É nesse instante, entre o toque suave e o sorriso frágil, que algo em mim muda. Não posso continuar vivendo assim. Eles merecem mais. Eu mereço mais.
A Sra. Dexter, nossa governanta, passa pela porta e me olha com um ar de pena. E isso me destrói. Odeio viver nessa situação em que todos sabem e veem o que acontece, mas ninguém pode dizer ou fazer nada. E eu sou a pior delas. Porque sou a mãe. Porque sou a mulher que deveria proteger, que deveria agir. E permaneço inerte.
Minha filha não pode continuar vendo o que se passa comigo, enquanto eu aceito humilhações, agressões e traições. Que exemplo estou dando a ela? Se continuar assim, serei para minha filha o que minha mãe foi para mim.
Cresci normalizando as traições de meu pai. Acreditando que os homens tinham direito a esse “escape”, enquanto às mulheres cabia apenas cuidar da casa e dos filhos, deixando os maridos trabalharem e acumularem suas fortunas. Eu estava preparada para a infidelidade de Brandon — mas jamais imaginei que viveria esse inferno de agressões e humilhações.
— Mãe, você melhorou da dor de cabeça? — pergunta Kate, com a voz doce.
Tento, de todas as formas, esconder dela as marcas que ficam em meu corpo — mas é difícil ocultar a tristeza que me consome.
— Estou bem, filha. E você, já fez a lição de casa?
— Amanhã tem aula de balé. Sua mochila está pronta com os seus pertences?
Pergunto, esforçando-me para manter a naturalidade da nossa rotina. Tento sorrir. Tento parecer inteira.
— O Phillip me ajudou a fazer a tarefa, e minha mochila já está prontinha. Você vai fazer meu penteado amanhã, mamãe? Quando faço sozinha, não fica tão bonito quanto quando você faz.
— Faço sim, meu amor — respondo, aproximando-me dela e beijando seu rostinho lindo. — A mamãe vai te deixar ainda mais linda do que já é.
— Como foi o seu dia, querida? — Brandon me pergunta, com a maior cara de pau.
Ele sabe o que fez. Sabe o que isso provoca em mim. Mas finge. Ignora suas ações e me força a atuar como se nada tivesse acontecido — ou como se “não fosse nada demais”.
— Foi tranquilo — respondo, escondendo minha dor atrás de uma entonação leve.
Sento-me à mesa. Phillip conversa animadamente sobre a aula de ciências. Kate conta sobre a coreografia do balé. Enquanto ouço, permito-me por alguns segundos esquecer tudo — e apenas olhar para eles.
A infância ainda mora nos olhos dos meus filhos. E eu não posso permitir que ela seja apagada pelas sombras que Brandon espalha nesta casa.
Com o garfo trêmulo entre os dedos, sinto nascer em mim algo diferente. Não é coragem ainda — é uma urgência silenciosa. Mas ela cresce. Como uma faísca.
Brandon continua a me observar, com aquele ar cínico, como se tivesse feito algum gesto gentil. Mas não há gentileza possível quando o corpo ainda lateja.
Sirvo as crianças com gestos cuidadosos, evitando que percebam o tremor involuntário que se esconde sob a superfície.
— E você, Phillip? — pergunto, forçando um sorriso. — Já terminou a leitura do capítulo do livro da escola?
Ele assente, animado, e começa a falar sobre o livro. A voz dele me atravessa como um lembrete daquilo que ainda é bom, daquilo que ainda é luz.
Brandon tenta encostar sua mão na minha. Me afasto discretamente, como quem serve água ou ajeita um talher. Ele finge não perceber.
A noite segue com sua aparência de normalidade. Mas dentro de mim... cada gesto de Phillip, cada olhar de Kate, cada pequena ternura dos meus filhos acende uma certeza:
Algo precisa mudar, só não sei quando, muito menos como. Mas a faísca está acesa — e agora, ela arde.
— Mamãe, que tal contar uma história para a Kate dormir? Você pode até dormir com a gente, que tal? — sugere Phillip, com o olhar esperançoso.
Percebo sua estratégia. Ele está tentando me afastar de Brandon esta noite — e essa ideia, tão simples e genuína, me emociona.
— Vocês não acham que já estão bem crescidinhos para sua mãe contar histórias e dormir com vocês? — Brandon retruca com rispidez, dirigindo-se aos nossos filhos.
O tom deixa claro: não se trata apenas de uma opinião. É uma tentativa de manter o controle.
— Ah, papai! Sinto tanta saudade da mamãe me contando histórias. Faz muito, mas muito tempo que ela não faz isso... — diz Kate, com um olhar triste e voz miúda, como quem não quer confrontar, mas não consegue esconder sua decepção.
Brandon respira fundo, apertando levemente o copo que segura.
Olho para meus filhos. Phillip continua com a expressão serena, como quem espera que o mundo faça sentido. Kate tenta sorrir, mas sei que carrega nos olhos o peso do que vive — mesmo que não compreenda totalmente.
Sinto que devo algo a eles. Uma história antes de dormir não será apenas um conto — será um abrigo. Será a chance de dizer, sem dizer, que a mamãe ainda está aqui.
— Que tal subirmos assim que terminar o jantar? — digo com suavidade.
Phillip sorri, e Kate pula da cadeira, radiante. Brandon permanece em silêncio. Mas pela primeira vez esta noite, sou eu quem define o próximo passo.
As crianças jantam em silêncio. Phillip evita olhar para o pai. Kate mexe no prato, distraída, como se quisesse desaparecer.
Eu estou presente fisicamente, mas é como se meus pensamentos estivessem trancados num quarto escuro dentro de mim. Cada palavra de Brandon ecoa como uma sentença — e seu olhar...
Seu olhar diz tudo o que ele deseja que eu entenda sem ousar responder.
Mas agora, há algo diferente em mim. A faísca não se apagou e ela arde. E talvez, pela primeira vez, esteja pronta para se transformar em fogo.
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