Entrada de Diário: 01 de Setembro de 2025
A Dra. Arantes tem um jeito peculiar de me desafiar. Na nossa última sessão, em meio ao silêncio confortável do seu consultório com cheiro de chá de camomila e madeira antiga, ela não me pediu para falar sobre minha mãe ou sobre a pressão sufocante do próximo lançamento da Innovatech. Em vez disso, ela me entregou este caderno. Capa dura, preta, sem pauta. Minimalista e, de certa forma, intimidador.
— Eu quero que você escreva, Yara — ela disse, com aquela calma que sempre me desconcerta. — Não para mim. Para você.
Eu arqueei uma sobrancelha. Tempo é o meu ativo mais precioso. A ideia de gastá-lo preenchendo páginas em branco com... o quê? Sentimentos? Parecia um péssimo investimento.
— Doutora, eu tenho relatórios de duzentas páginas para revisar. Meu tempo de tela já é absurdo. Não vejo como...
— É por isso mesmo — ela me interrompeu, algo que poucas pessoas ousam fazer. — Sua vida é uma sucessão de telas, relatórios e projeções. Você otimiza cada segundo. Mas quando foi a última vez que você se sentou com o único projeto que realmente importa? Você mesma.
O argumento dela, como sempre, era impecável. Irrefutável. Eu aceitei o caderno com um aceno resignado. Mas então, veio o golpe final. A primeira tarefa.
— Para a primeira página — ela continuou, ajeitando os óculos na ponta do nariz —, quero que escreva seu epitáfio.
Eu pisquei, esperando o resto da piada. Ela não sorriu.
— Meu... o quê?
— O que você gostaria que estivesse escrito na sua lápide? Pense nisso como um exercício de legado. O que Yara Drummond deixará para o mundo quando não estiver mais aqui?
E aqui estou eu. Dez da noite. O silêncio do meu apartamento no trigésimo andar é quase absoluto, quebrado apenas pelo zumbido distante da cidade grande que nunca dorme de verdade. A cidade que eu me propus a conquistar. Diante de mim, a página em branco. E na minha mente, uma lápide de mármore frio.
Meu primeiro instinto, o instinto da CEO, é ser pragmática.
Yara Drummond. Fundadora e CEO da Innovatech Solutions. Revolucionou o mercado de logística com IA. Deixou um patrimônio de nove dígitos e uma empresa listada na bolsa.
É preciso. É factual. É o resumo da minha vida profissional, a narrativa que eu construí com unhas, dentes e noites insones. É a prova de que eu venci. Provei ao meu pai que sua filha não precisava de um bom casamento, mas sim de um bom plano de negócios. Mostrei aos meus concorrentes que a "garota" sabia jogar o jogo melhor do que eles.
Mas... é isso? É essa a soma da minha existência? Uma lista de conquistas corporativas?
A caneta de tinta preta parece pesar uma tonelada na minha mão. Olho ao redor. Este apartamento, um tríplex com vista panorâmica, decorado por um designer renomado, parece um mausoléu. Cada objeto foi escolhido para projetar sucesso, poder. Nada aqui grita "Yara". Grita "a CEO". Não há fotos de família nas paredes — apenas arte contemporânea caríssima. Não há sequer uma manta jogada de qualquer jeito no sofá — cada almofada está geometricamente posicionada.
Onde está a Yara que amava sentir o cheiro de terra molhada depois da chuva na fazenda do meu avô? A garota que sonhava em ser astrônoma, não empresária? Ela se perdeu em alguma sala de reunião, entre uma cláusula de contrato e uma demissão difícil e o conselho do meu pai, que me provou que esse conhecimento específico era falso.
A Dra. Arantes sabia exatamente o que estava fazendo. Este exercício não é sobre a morte. É sobre a vida. Ou a falta dela.
Tento de novo. Desta vez, com a honestidade brutal que a madrugada exige.
Yara Drummond. Ela tentou.
Não. Patético demais. Soa como fracasso, e eu não tolero fracasso.
Vamos lá, Yara. Foco. Qual é a verdade? A verdade é que eu sou boa no que eu faço. Sou uma líder. Mas sou uma líder solitária. Meus relacionamentos são transacionais. Meus jantares são com investidores. Minhas viagens são para feiras de tecnologia. Eu otimizei minha vida a tal ponto que deletei todas as variáveis "inúteis": o amor, a bagunça, a espontaneidade.
E se o epitáfio fosse sobre o que eu gostaria de ter sido?
Yara Drummond. Amou profundamente e foi amada na mesma medida. Encontrou alegria nas pequenas coisas. Riu até a barriga doer. Deixou para trás mais do que uma empresa; deixou saudade no coração de quem importava.
As palavras flutuam na minha mente e um nó se forma na minha garganta. É um texto tão... distante da minha realidade. Parece pertencer a outra mulher, uma que fez escolhas diferentes na encruzilhada da vida. Uma mulher que talvez não tivesse um império, mas que tivesse um lar.
Eu tenho quarenta anos. No auge da minha carreira. Tenho poder, dinheiro e respeito. Mas ao encarar meu próprio fim, mesmo que hipotético, a única coisa que sinto é um vazio colossal. Um eco. A sensação de ter escalado a montanha errada.
Pego a caneta com firmeza. A tinta finalmente toca o papel. Não escrevo um parágrafo. Escrevo apenas uma frase. Uma confissão. Uma meta. Um desejo que mal ouso admitir para mim mesma.
Aqui jaz Yara Drummond. Ela finalmente aprendeu a viver.
Fecho o caderno. A frase fica ali, na primeira página. Não é um resumo do que fui, mas uma promessa do que, a partir de hoje, eu preciso desesperadamente me tornar. A questão é: como? E, céus, por onde eu começo?
Continua...
Entrada de Diário: 02 de Setembro de 2025
Dormi mal. A frase que escrevi ontem à noite ecoou nos meus sonhos: Ela finalmente aprendeu a viver. Acordei antes do alarme, com o coração acelerado, como se estivesse atrasada para o compromisso mais importante da minha vida: eu mesma.
A Dra. Arantes previu isso, claro. A segunda tarefa dela era um desdobramento lógico da primeira. "Faça um inventário", ela sugeriu. "Resuma sua jornada. Como a garota que queria ver as estrelas se tornou a mulher que só enxerga planilhas?"
Um inventário. Gosto dessa palavra. É corporativa, organizada. Algo que eu sei fazer.
O problema é que minha memória não ajuda a simplificar. Pelo contrário. A Dra. Arantes chama de "hipertimesia". Eu chamo de bênção e maldição. Lembro-me de tudo. Não de forma vaga, mas com uma clareza cinematográfica. Lembro do tecido do vestido que usei no meu primeiro dia na faculdade de engenharia, do cheiro de ozônio antes da tempestade que caiu no dia em que decidi abrir a Innovatech, do tom exato de decepção na voz do meu pai quando anunciei que não seguiria a carreira jurídica da família.
Essa memória fotográfica foi a arma secreta que me permitiu decorar contratos, lembrar o nome da esposa de cada investidor e citar dados de mercado de três anos atrás com precisão assustadora. Ela me ajudou a construir meu império. Mas ela também não me deixa esquecer. Não me deixa esquecer o preço.
Meu inventário começa aos 22 anos, recém-formada, com um diploma debaixo do braço e uma ideia que todos chamavam de "sonho de menina". Um sistema de logística integrado por inteligência artificial. "Deixe isso para os homens, Yara", ouvi mais de uma vez. Essa frase virou o combustível que eu precisava. Aos 25, com um pequeno empréstimo e dois programadores que acreditaram em mim, a Innovatech Solutions nasceu na garagem de um sobrado alugado.
Os primeiros anos foram um borrão de trabalho incessante. Eu era a primeira a chegar e a última a sair. Vivia de café, comida congelada e da adrenalina de cada pequeno bug corrigido, de cada novo cliente conquistado. Foi nessa época que comecei a forjar a armadura. A Yara sonhadora foi trancada em um cofre, e a CEO implacável assumiu o controle. Ela não tinha tempo para dúvidas, para cansaço ou para distrações.
Principalmente para distrações.
Houve o Ricardo, na faculdade. Um romance doce, cheio de promessas e planos. Ele queria uma vida tranquila no interior, filhos, um golden retriever. Eu queria dominar o mundo. Não deu certo. Minha memória me tortura com o olhar dele quando eu disse que a empresa viria sempre em primeiro lugar.
Depois, aos 30, veio o Marcos. Ele era como eu. Um tubarão do mercado financeiro. Nosso relacionamento era uma fusão de agendas. Nossos encontros eram eventos de networking. Íamos para a cama e, no travesseiro, falávamos sobre ações e aquisições. A atração era inegável, mas era uma atração de poder, não de alma. Era sexo, não intimidade. Durou seis meses, até que nossas empresas se tornaram concorrentes diretas por um grande fundo de investimento. O fim foi tão pragmático quanto o começo: um aperto de mãos e um "foi um prazer fazer negócios com você".
Desde então, nada. Ninguém. Há cinco anos.
Cinco anos.
Escrever isso aqui, nesta página, torna o número brutalmente real. Cinco anos em que meu corpo foi apenas um veículo para carregar meu cérebro de uma reunião para outra. Cinco anos em que a única coisa que me tocou com alguma profundidade foi a água quente do chuveiro no fim de um dia exaustivo. A "Dama de Gelo" não é só uma fachada para o mundo dos negócios; ela congelou minha vida pessoal. Eu me tornei celibatária por contingência, por falta de tempo, por falta de espaço na minha própria agenda otimizada.
E não é só o sexo que está faltando. É o toque. É a vulnerabilidade de se deixar ser vista por alguém sem a armadura. É a fé.
Minha avó, uma mulher simples e de uma força serena, sempre dizia: "Minha filha, não se pode viver só de pão, nem só de fé. Mas viver sem nenhum dos dois é morrer de fome em um banquete". Eu me livrei da fé há muito tempo. A lógica, os dados, os algoritmos... eles se tornaram meus deuses. Rezar para quê, se eu podia programar a solução? Acreditar em quê, se eu podia calcular o resultado?
Mas agora, no silêncio deste apartamento que mais parece um showroom, eu sinto a fome. Uma fome que nenhum restaurante cinco estrelas pode saciar. Uma fome de sentido, de conexão. Uma fome de crer em algo além de um balanço trimestral positivo. Uma fome de sentir meu próprio corpo despertar para algo além do cansaço.
Meu inventário é claro. Ativos: uma empresa multimilionária, independência financeira, respeito profissional. Passivos: uma alma empoeirada, um coração em hibernação e um corpo esquecido. O saldo, pela primeira vez na minha vida, não me parece positivo.
Aos 40 anos, eu sou a personificação do sucesso e, em segredo, a personificação do vazio. Eu conquistei o mundo, mas perdi a Yara. E a pergunta que fica, a pergunta que me assombra desde a sessão com a Dra. Arantes, é se ainda há tempo de encontrá-la de novo.
Continua...
Entrada de Diário: 06 de Setembro de 2025
Sábado. Duas da tarde. Eu deveria estar em um almoço de negócios ou, no mínimo, adiantando o trabalho da semana seguinte. Mas, pela primeira vez em anos, eu disse "não". Cancelei meu único compromisso, uma chamada com a equipe de marketing, alegando uma dor de cabeça que eu não sentia. A verdade é que a dor era na alma.
Desde que comecei este diário, algo se quebrou dentro de mim. A armadura da CEO está com rachaduras, e por elas, uma luz perigosa e esquecida começa a vazar: o desejo de ser apenas... Yara. Interrompo a escrita neste momento, preciso agir.
Horas depois, estou pronta para escrever o que aconteceu... retomando: foi assim...
Então, fiz o que a "velha" Yara faria. Coloquei um jeans confortável, uma camiseta de seda e peguei as chaves do meu sedan de luxo alemão. Sem destino. Apenas eu, o carro e uma playlist de rock clássico que não ouvia desde a faculdade. O sol da tarde de sábado tingia a cidade grande com uma luz dourada, quase preguiçosa.
Dirigi para longe dos arranha-céus espelhados do centro financeiro, buscando as ruas mais calmas e arborizadas dos bairros residenciais. E foi em uma dessas ruas, onde o ritmo da cidade parece desacelerar, que eu o vi.
Ele estava parado em um ponto de ônibus, mas sua postura não era de quem espera. Era de quem simplesmente parou ali, talvez porque as pernas cansaram de andar. O sol batia em seu rosto, e ele não parecia se importar. Era um homem alto, com uma estrutura que prometia força, mas que estava envolta em uma aura de cansaço, de descuido. A barba por fazer, o cabelo curto sem um corte definido. Ele usava uma bermuda jeans que passava dos joelhos e uma camisa esportiva simples, sem detalhes. Nenhum acessório, nenhuma tatuagem. Apenas ele, bruto e real.
Seu olhar estava perdido do outro lado da rua, mas era um olhar profundo, vazio. Como se assistisse a um filme particular, um drama que só ele conhecia. Havia uma beleza ali, uma beleza soterrada sob camadas de algo que parecia exaustão ou talvez resignação. E, com uma clareza que me deu um frio na espinha, eu me reconheci naquele abandono.
Foi quando, por um acaso do destino, nossos olhares se cruzaram. Ele se assustou, como se eu o tivesse flagrado em um segredo. Por uma fração de segundo, vi uma faísca de vida naqueles olhos profundos. E essa faísca foi o gatilho.
Num ato que desafiava cada fibra da minha personalidade controlada e lógica, eu pisei no freio. O carro parou macio rente à calçada, a poucos metros dele. Meu coração, aquele músculo esquecido, martelava contra minhas costelas. O que diabos você está fazendo, Yara?
Baixei o vidro do passageiro. O som da guitarra de uma música antiga escapou do carro e preencheu o ar quente da tarde. Respirei fundo, tentando soar casual, e o chamei.
— Ei! Você parece precisar de uma carona mais do que de um ônibus.
Continua...
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