Marina
Marina chegou ao morro carregando um misto de medo, esperança e muitas dúvidas no olhar. Com apenas 22 anos, ela carregava nas costas um passado que tentava deixar para trás, mas que insistia em persegui-la. A vida na cidade grande nunca fora fácil, mas o morro representava para ela um mundo completamente diferente — um universo onde as regras mudavam, os perigos eram reais e a sobrevivência dependia de mais do que sorte.
Desde criança, Marina sonhou com uma vida melhor, longe das confusões que marcaram sua família. Criada pela mãe após a ausência do pai, aprendeu cedo a se virar sozinha, a não se entregar às dificuldades e a buscar um futuro com as próprias mãos. A chegada ao morro não foi por acaso: ela fugia de um relacionamento abusivo, da violência que invadiu sua vida e do vazio que a consumia. Ali, entre becos e vielas, esperava encontrar um recomeço — mesmo sem saber exatamente como isso seria possível.
Rafael, vulgo RL
Rafael, ou simplesmente RL para os que o conhecem no morro, é um jovem de 19 anos que carrega no olhar a inquietação de quem vive entre dois mundos. Ele é um garoto nascido e criado no coração do morro, onde aprendeu desde cedo o que é a dureza da vida, mas também conheceu os laços profundos que unem uma comunidade que enfrenta a marginalização todos os dias. RL é um exemplo vivo do conflito entre o sonho de um futuro melhor e as amarras da realidade que insiste em puxá-lo para baixo.
Filho único de uma mãe batalhadora que faz o possível para garantir o básico, Rafael cresceu entre as dificuldades de uma vida que, para muitos, parece não oferecer chances. Porém, ao contrário do que muitos poderiam esperar, ele é um jovem com cabeça boa, que luta para estudar e se formar, mesmo que isso signifique enfrentar o preconceito e o perigo. RL sabe que a escola é seu passaporte para uma vida diferente, uma rota de fuga da violência que circunda o morro.
Zeca
Zeca é o nome que ecoa com respeito e um pouco de medo nas ruas do morro. Com 35 anos, ele é o líder local, o homem que dita as regras não escritas daquele território. Sua presença é imponente, não apenas pela força física, mas pela aura de autoridade que emana em cada gesto e palavra. A reputação de Zeca é construída tanto pelo seu temperamento firme quanto por um código de honra pouco comum naquele ambiente de disputas e desconfiança.
Lívia
Lívia é a amiga leal e confidente que todo mundo gostaria de ter. Com 24 anos, ela nasceu e cresceu no morro, conhece cada rua, cada rosto, cada história não dita. Inteligente e perspicaz, Lívia tem um olhar atento que não deixa passar despercebido nenhum detalhe, seja nas conversas, seja nos gestos. Ela é, ao mesmo tempo, um porto seguro para Marina e uma força da natureza em seu próprio direito.
Desde pequena, Lívia aprendeu a lidar com as dificuldades da vida no morro, desenvolvendo um espírito rebelde que a faz questionar as injustiças e lutar por mudanças, ainda que pequenas. Sua inteligência vai além do comum — ela é rápida, estratégica e sabe como usar seu conhecimento para proteger aqueles que ama.
Catarina
Catarina é a mãe solteira batalhadora que, apesar das dificuldades, nunca perde a fé. Com 34 anos, ela administra uma pequena mercearia no morro, que funciona como ponto de encontro para os moradores. Catarina é conhecida por sua força, generosidade e por carregar no peito um sonho: tirar o filho daquele ambiente complicado e oferecer a ele um futuro diferente.
Ela acorda cedo todos os dias para abrir a mercearia, vende desde produtos básicos até quitutes feitos por ela mesma, e conhece praticamente toda a comunidade. Catarina é uma mulher de palavras firmes, mas coração mole — sempre pronta para ajudar quem precisa, mesmo quando isso significa sacrificar suas próprias necessidades.
Dinho
Dinho é o braço direito de Zeca e um dos nomes que mais assustam no morro. Com 28 anos, ele é cabeça quente, impulsivo e extremamente protetor — especialmente com as pessoas que considera próximas. Sua lealdade a Zeca é inquestionável, mas essa mesma lealdade o coloca em situações perigosas, onde a violência pode explodir a qualquer momento.
Dinho é o típico cara de ação, que prefere resolver os problemas na base da força e da presença. Ele tem um corpo robusto, tatuagens espalhadas pelos braços e um olhar feroz que não deixa dúvidas sobre sua disposição para lutar. Por trás da fachada dura, porém, existe um homem que ama profundamente a família e que carrega o peso de proteger quem considera seu.
O sol já havia se escondido por trás das casas amontoadas quando Marina percebeu que não sabia exatamente onde estava. As vielas do morro eram um labirinto de becos estreitos, cheios de curvas, vozes e olhares atentos. Cada esquina parecia ter vida própria, cada sombra guardava uma história. O coração dela batia acelerado, e os passos ecoavam no chão irregular de cimento gasto.
— Tá perdida, menina? — a voz veio firme, quase ríspida, de um garoto que estava sentado no degrau de uma escada. Era Rafael, o RL. Ele segurava um caderno gasto nas mãos, como se estivesse estudando em meio à rua. O olhar dele a analisou de cima a baixo, sem maldade, mas com desconfiança.
— Eu… acho que sim. — Marina respondeu, tentando controlar o nervosismo. — Procuro a mercearia da dona Catarina. Disseram que era por aqui.
RL se levantou, fechando o caderno com cuidado. Ele já tinha visto rostos novos passarem pelo morro, mas havia algo diferente naquela garota: não parecia ser visita, e tampouco parecia alguém acostumada com o ritmo daquele lugar.
— Vem comigo, eu te mostro. — disse, enfiando as mãos no bolso. — Mas anda rápido, porque a noite não é hora de ficar rodando por aqui.
Marina o seguiu, ainda sentindo o peso dos olhares curiosos que vinham das janelas e das portas entreabertas. As pessoas do morro sabiam quando alguém de fora aparecia, e raramente isso passava despercebido. RL caminhava firme, como quem conhecia cada pedra no chão, desviando das crianças que ainda brincavam e cumprimentando com um aceno discreto os conhecidos que cruzavam seu caminho.
Poucos minutos depois, chegaram diante de uma pequena mercearia iluminada por lâmpadas amareladas. A placa de madeira trazia escrito “Catarina – Produtos e Quitutes”. Do lado de dentro, uma mulher de olhar cansado, mas sorriso caloroso, arrumava pacotes de arroz em uma prateleira.
— Boa noite, dona Catarina. — RL anunciou, empurrando a porta com leveza. — Achei essa moça perdida pelas bandas de cima. Disse que procurava a senhora.
Catarina ergueu o olhar, surpresa ao ver Marina. Aproximou-se com um avental sujo de farinha, mas uma expressão acolhedora.
— Seja bem-vinda, filha. Aqui todo mundo se conhece… e quando aparece alguém novo, a gente logo nota. Qual é o seu nome?
— Marina. — respondeu, tentando sorrir. — Preciso de um lugar pra ficar… só por um tempo.
A resposta fez Catarina suspirar fundo. Receber alguém de fora sempre trazia riscos, mas havia algo sincero no olhar da jovem. Antes que pudesse responder, a porta da mercearia se abriu novamente. Dinho entrou, com seu jeito agitado e olhar desconfiado.
— Quem é? — perguntou, quase em tom de ordem, olhando diretamente para Marina.
RL interveio rápido:
— É Marina. Eu encontrei ela perdida.
Dinho semicerrava os olhos, avaliando. Era o tipo de homem que não confiava facilmente. Mas, antes que pudesse falar algo, uma voz firme ecoou do lado de fora.
— Deixa a menina respirar, Dinho. — Era Zeca, parado na porta, imponente como sempre. Seu olhar pousou sobre Marina com intensidade, como se tentasse adivinhar sua história em um segundo. — Aqui no morro ninguém entra sem motivo. E todo motivo tem um preço.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Marina sentiu as pernas tremerem, mas respirou fundo.
— Só quero recomeçar. Não tenho mais pra onde ir. — disse, a voz firme apesar do medo.
Zeca a encarou por alguns instantes antes de soltar um leve sorriso de canto.
— Coragem você tem. Isso já é alguma coisa.
Catarina quebrou o clima, colocando uma mão no ombro da jovem.
— Deixa comigo, Zeca. Ela pode ficar aqui por uns dias, até se ajeitar.
Zeca assentiu, mas deixou claro em seu tom:
— Então é responsabilidade sua. — E saiu, com Dinho seguindo logo atrás.
RL trocou um olhar com Marina, um misto de curiosidade e respeito.
— Bem-vinda ao morro. — disse, simples, antes de voltar à noite.
Marina respirou aliviada. Mal sabia ela que aquele seria apenas o início de uma jornada onde cada passo guardaria tanto perigo quanto descoberta.
A noite no morro tinha um som próprio. Não era o silêncio absoluto, tampouco o barulho incessante da cidade grande. Era um misto de vozes, música vinda de rádios espalhados, passos apressados e o eco distante de conversas em tom baixo. Marina, sentada em um colchão improvisado no pequeno quarto dos fundos da mercearia de Catarina, tentava assimilar o que havia acontecido naquele dia. A sensação era de estar em um lugar onde cada olhar carregava julgamento, curiosidade ou desconfiança.
Catarina apareceu na porta com uma xícara de chá fumegante.
— Toma, filha. Vai te ajudar a descansar. Sei que não deve estar sendo fácil.
Marina agradeceu com um sorriso tímido. Aquela mulher, mesmo cansada pela rotina, tinha uma força silenciosa que transmitia confiança.
— Eu não quero incomodar. Posso ajudar na mercearia, se a senhora deixar.
Catarina riu de leve.
— Aqui ninguém sobrevive sozinho. Se você tiver disposição, sempre vai ter como ajudar.
Enquanto conversavam, passos apressados soaram do lado de fora. RL entrou, ainda com o caderno debaixo do braço.
— Tá tudo bem aqui? — perguntou, o olhar atento para Marina.
— Tá sim, Rafael. — Catarina respondeu, ajeitando o avental. — A menina só precisa de descanso.
RL se aproximou, encostando-se na parede.
— O morro pode assustar no começo. Mas se você aprender a andar, logo vai saber quem confiar e quem evitar.
Marina ergueu os olhos, curiosa.
— E você? Em qual desses eu devo te colocar?
Um leve sorriso surgiu no canto da boca dele.
— Isso você vai ter que descobrir.
O clima leve foi interrompido quando um barulho forte ecoou pela rua. Gritos se espalharam, e a tensão invadiu o ar como um vento frio. Catarina fechou a janela rapidamente.
— Fiquem aqui. — ordenou, com firmeza.
Do lado de fora, passos pesados ecoaram. Dinho apareceu na calçada, acompanhado de outros dois rapazes armados.
— RL! — chamou em voz alta. — Vem cá rapidinho.
RL olhou para Catarina e depois para Marina.
— Fica tranquila, já volto. — disse, saindo pela porta.
Do lado de fora, o clima era outro. Dinho se aproximou com o semblante fechado.
— O Zeca quer saber mais sobre essa garota. Ninguém aparece do nada aqui. Acha mesmo que dá pra confiar?
RL cruzou os braços, firme.
— Ela não parece problema. Só tá perdida.
Dinho bufou, impaciente.
— No morro, até quem parece inocente pode ser perigo. Não esquece isso.
Enquanto isso, dentro da mercearia, Marina tentava disfarçar o medo.
— Eles não confiam em mim, né? — perguntou em voz baixa.
Catarina suspirou, puxando uma cadeira para sentar-se.
— Aqui confiança se conquista. Todo mundo já sofreu demais para acreditar de primeira. Mas não se preocupe, você tem jeito de quem não tá aqui pra fazer mal. Só precisa de tempo.
Do lado de fora, a conversa terminou com RL acenando positivamente para Dinho, mas seu olhar estava carregado de tensão. Ao entrar novamente, tentou disfarçar.
— Tá tudo certo. — disse, embora sua voz revelasse o peso das palavras que ouvira.
Naquela noite, Marina demorou a dormir. O colchão era simples, mas o que realmente tirava seu sono era a sensação de estar sendo testada a cada minuto. Sentia que, de alguma forma, já estava envolvida em algo maior do que apenas buscar abrigo.
RL, do outro lado da rua, também encarava o teto de seu quarto, sem conseguir dormir. Pensava na garota de olhos grandes que apareceu de repente, trazendo mistério e vulnerabilidade. No fundo, sabia que a presença dela podia mudar muita coisa no equilíbrio frágil do morro.
E, enquanto a madrugada avançava, Zeca observava tudo do alto da laje de sua casa, fumando em silêncio. Para ele, cada novo rosto era uma peça em um tabuleiro perigoso. E Marina… bem, Marina ainda era um enigma a ser decifrado.
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