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O Noivo que Nunca Foi Meu

Capítulo 1 — O Acordo

O cheiro de cera e jasmim sempre denunciava quando o avô de Isabella preparava a casa para decisões grandes. A cada passo sobre o mármore do salão principal, a luz das janelas altas quebrava-se em retângulos no chão, como se a própria mansão quisesse organizar o mundo em linhas perfeitas. Valmont — a cidade que crescera em torno do nome Arlott — parecia conter a respiração nos dias em que Augusto Arlott recolhia-se à biblioteca, chamava o mordomo e pedia silêncio.

Naquela tarde cinzenta, o relógio de pêndulo marcava quatro batidas quando o carro preto atravessou o portão de ferro do Solar Arlott. Isabella, então com oito anos, viu pela janela o menino descer: magro, cabelos castanhos mais claros nas pontas, uma mochila gasta nas costas como se carregasse ali o próprio passado inteiro. Ele ergueu o rosto para a fachada como quem olha a capa de um livro que ainda não sabe se quer ler.

— Isabella, querida, venha — disse Augusto, estendendo a mão para a neta com a ternura autoritária que só avôs patriarcas dominam. — Quero que conheça Rafael.

O nome flutuou no ar como uma decisão já tomada. Rafael tinha os olhos de quem aprendeu cedo a não pedir nada. Ao entrar na sala, manteve-se à sombra do mordomo, mas não desviou o olhar de Isabella quando ela se aproximou. Tinha os joelhos esfolados de brincadeiras que não caberiam naquela casa e os sapatos um número maior, doados por alguma instituição. Isabella, curiosa e sem a timidez das damas adultas, inclinou a cabeça, avaliando.

— Eu sou Isabella Arlott — anunciou, como se isso bastasse para explicar tudo.

— Eu sou… Rafael — respondeu, contendo o impulso de acrescentar um sobrenome que já não sabia se ainda lhe pertencia. O avô tocou de leve o ombro do menino, firme.

— Rafael Arlott, a partir de hoje — completou Augusto, a voz grave suavizada por um orgulho manso. — Em Valmont, nomes têm destino.

Houve um silêncio espesso. O relógio voltou a comandar o tempo. Isabella sorriu, só um canto dos lábios, e ofereceu ao novo “primo” — foi assim que decidiram chamá-lo, até que os papéis dissessem o contrário — um doce de leite que escondia no bolso do vestido, contrabandeado da copa. Rafael aceitou como quem recebe um pacto.

Nos dias seguintes, a casa se reorganizou em torno da presença do menino. A governanta etiquetou gavetas novas, o jardineiro mediu uma bicicleta antiga para “dar um jeito”, a professora particular trouxe cadernos com o brasão Arlott estampado em dourado. Isabella o conduziu por cada corredor como se estivesse mostrando um mapa secreto: o atalho pelo jardim de buxinhos até a estufa, a escadaria mais silenciosa para escapar das visitas, a janela da ala leste que, no fim da tarde, deixava o céu cair dentro do quarto como uma bandeira cor de cobre.

Rafael observava tudo em silêncio estudioso, obedecendo com uma tensão que não era medo, mas dívida. Augusto notava. Havia uma história por trás daquele olhar — e era uma história que o patriarca, homem de contas e balanços, já conhecia: um pai operário que perdera a vida num acidente na fábrica de tecidos financiada pelo Grupo Arlott; uma mãe que sucumbira à doença quando os remédios se tornaram mais caros que o aluguel. De algum modo, adotar Rafael era, para Augusto, colocar em ordem uma cifra moral.

Numa noite de sábado, a biblioteca foi arrumada como para um julgamento. Livros alinhados, abajures acesos, a mesa de jacarandá com apenas três cadeiras: de um lado, Augusto; do outro, Isabella e Rafael. Ao centro, um tabuleiro de xadrez que ninguém tocaria.

— Vocês dois — começou o avô, apoiando os dedos no tampo, anéis antigos cintilando — carregam mais do que a própria história. Carregam a minha. A dos Arlott. Não se assustem; falo com carinho. Ser Arlott não é sobre mandar, é sobre proteger.

Isabella endireitou-se. Gostava quando o avô falava assim, como se confiasse a ela um segredo de adulto. Rafael manteve o queixo erguido, olhos fixos no patriarca.

— Eu não posso devolver a você, Rafael, o que tiraram de sua família. Mas posso dar-lhe um lar, um nome e… — ele procurou a palavra, e a encontrou com naturalidade — um caminho. E quero que esse caminho se cruze com o de Isabella.

Ele abriu uma caixinha de veludo vinho. Dentro, um pingente de ouro com o monograma da família, duas metades de um mesmo brasão, aparadas de modo a se encaixarem. Isabella soltou um “oh” de encantamento; Rafael sequer respirou.

— Isto é um símbolo, nada além disso. Mas símbolos, em Valmont, pesam como âncoras. Um dia — e não agora, não já —, quando forem crescidos, pretendo que se casem. Não por obrigação, e sim porque juntos serão mais do que separados. Porque o nome de vocês protegerá o nosso povo, o nosso trabalho, o nosso legado.

Isabella trocou um olhar com Rafael. Havia no peito dela uma mistura de jogo e destino. Casamento, para uma menina de oito anos, soava como um baile: vestidos, luzes, música. Para Rafael, soou como um contrato de gratidão. Ele olhou a metade do pingente que lhe cabia, pesada e fria na palma.

— Quer dizer que… um dia eu vou cuidar da Isabella? — perguntou, num fio de voz.

— Um do outro — corrigiu Augusto, com suavidade. — Prometem?

Isabella foi a primeira a dizer “prometo”, ansiosa, como quem assume a liderança num segredo de escoteiros. Rafael hesitou um segundo, não por dúvida, mas para medir o tamanho da palavra. E então repetiu:

— Eu prometo.

O patriarca sorriu, vencido por uma ternura que raramente permitia à superfície. Colocou o cordão no pescoço de cada um, ajustou os fechos com dedos firmes e pousou as mãos sobre as cabeças dos netos — agora, oficialmente, dois. O relógio, sempre ele, marcou oito batidas. A casa exalou um suspiro antigo.

A notícia não se lançou em jornais; Augusto não era homem de escândalos. Mas correu entre as árvores do jardim, varou a estufa, atravessou a cozinha e alcançou o portão. Quando Valmont quer saber de algo, sabe. No domingo à tarde, na missa principal, os cochichos serpentearam entre os bancos: o Sr. Arlott adotou um menino; dizem que o moço é aplicado, muito educado; falam que a menina e ele vão se casar, quando crescerem. As senhoras do círculo de caridade comentaram com um misto de encanto e cálculo. Os homens, mais práticos, pensaram nos negócios: consolidar famílias era consolidar territórios.

Isabella, de laço azul no cabelo, cumprimentou cada senhora com um leve aceno de cabeça. Rafael, impecável no terno novo, repetiu os gestos que lhe ensinaram, consciente de cada olhar pousado sobre ele como alfinetes de prova. “Crescerão sob o peso das expectativas”, refletiu Augusto, sentado no primeiro banco, “mas aprenderão a transformá-las em coluna”.

Os anos seguintes foram um adestramento silencioso. Isabella aprendeu a dançar valsas antes de entender álgebra, e aprendeu álgebra antes de decifrar que certas perguntas não se faziam na frente dos empregados. Rafael aprendeu a escolher gravatas com o mordomo, a conjugar verbos com a preceptora e a montar com o instrutor de equitação — e, com isso, aprendeu também a cair sem fazer escândalo. Nos erros, Augusto era exigente; nos acertos, econômico de elogios. Não queria frutos apressados.

— A sensatez — dizia ele, enquanto movia peças de xadrez que nunca chegavam ao xeque-mate — é o luxo mais caro da família Arlott.

Isabella escutava com olhos atentos, tentando decifrar por que certas frases lhe pareciam paredes onde gostaria de abrir janelas. Via em Rafael uma seriedade que às vezes a irritava. Queria rir mais, correr mais, dizer bobagens sem que o peso do brasão caísse sobre cada sílaba. Mas então via o modo como ele a observava nos momentos perigosos — quando alguém da alta sociedade a provocava, quando uma repórter insinuava perguntas, quando um fornecedor elevava o tom com a equipe —, e lembrava do “um do outro” do avô. Rafael estava sempre ali, um passo atrás, sem sombras.

Certa tarde de inverno, com os dois já adolescentes, a casa recebeu um convidado singular: o notário da família. O homem, de mãos longas e uma pasta de couro, sentou-se à mesma mesa de jacarandá da biblioteca. Augusto pediu que os jovens assistissem, “para que saibam com o que se tecem os destinos”. Isabella e Rafael trocaram um olhar: naquela casa, a palavra destino vinha sempre precedida por papel timbrado.

— Sr. Arlott — começou o notário, ajustando os óculos —, conforme sua solicitação, está redigida a cláusula de intenção. Não se trata de contrato matrimonial, dado que os jovens são menores, mas de um adendo ao testamento estipulando que, caso ambos concordem ao atingirem a maioridade, terão prioridade na sucessão conjunta dos bens específicos do ramo agrícola, bem como participação em decisões do conselho.

Isabella fingiu desinteresse, como quem olha o teto para não demonstrar que o coração acelerou. Rafael permaneceu imóvel, mas seu olhar se deslocou, quase imperceptível, até a mão de Isabella sobre o colo. Ela apertava a correntinha do pingente. Ele entendeu.

— Não forcem a poesia onde cabe a prudência — avisou Augusto, talvez a si mesmo. — Isto aqui não é prisão, é provisão. O mundo muda. Vocês mudarão. A vida… — sorriu de lado — tem imaginação própria.

A caneta riscou o papel com som de pena em pergaminho. O notário recolheu as folhas, a pasta fechou-se com um clac que soou definitivo. E, no entanto, para Isabella, nada parecia decidido; era como se um fio invisível ligasse o seu futuro ao de Rafael, sim, mas a distância permitisse que o fio cantasse ao vento em vez de prendê-la.

Naquela noite, a casa celebrou sem alardes. A cozinheira preparou pudim de leite; o mordomo liberou uma trilha de bolhas no champanhe do avô; o piano da sala foi aberto. Isabella tocou uma melodia leve, aprendida na infância, e Rafael, encostado à ombreira da porta, acompanhou batendo o compasso com o pé, um sorriso de canto que poucos viam. Quando a música cessou, ele se aproximou.

— Você toca como se estivesse lembrando de algo que ainda não viveu — disse, sem pensar.

— E você me observa como se estivesse guardando algo que ainda não perdi — ela respondeu, num impulso que a fez corar.

Riram do próprio exagero. Tinham quinze e dezesseis anos, respectivamente, e uma promessa pendurada no peito. O avô, sozinho na poltrona com o copo de cristal, viu a cena e pensou que talvez, afinal, o destino conseguisse ser também delicado.

Do lado de fora, Valmont acendia as luzes. Os Arlott, como sempre, iluminavam-se por dentro.

Anos depois, quando todos tentassem apontar onde a história começara a se desviar — em que esquina o amor prometido perdera o caminho para as mentiras —, Isabella voltaria àquela tarde da biblioteca. À caixinha de veludo. Aos dois pingentes que se encaixavam como se nada pudesse separá-los. E entenderia, com a clareza que só o tempo concede, que nenhum símbolo é maior do que a vontade de quem o carrega. Que o mesmo ouro que brilha pode também cegar.

Mas, naquele primeiro capítulo de seus destinos, tudo que havia era a luz morna de um lampadário, o perfume de jasmim, e uma promessa dita com a pureza de quem ainda não conhecia a palavra ingratidão.

O relógio marcou dez. A noite, satisfeita, recolheu as pontas soltas.

E o acordo — mais do que assinado — começou a viver dentro deles.

Capítulo 2 — O Primeiro Engano

Os anos haviam passado como a maré que lentamente apaga os castelos na areia. Isabella e Rafael já não eram os adolescentes do piano e das promessas sussurradas no Solar Arlott. Agora, eram adultos que carregavam nos ombros não apenas o peso do sobrenome, mas também as cicatrizes invisíveis de uma juventude moldada à sombra de expectativas.

Naquela manhã, o ar em Valmont trazia o cheiro do pão recém-assado vindo da cozinha principal. Isabella, vestida em seda azul, cruzava o corredor em direção ao salão de reuniões, onde seu avô ainda coordenava os negócios da família, apesar da idade avançada. Rafael, por sua vez, andava em outra direção: buscava silêncio nos jardins, afastando-se do barulho das decisões e da presença cada vez mais firme da herdeira.

Foi nesse caminho que ele a encontrou.

Clara, filha da cozinheira, emergiu do portão lateral trazendo uma cesta de frutas frescas. Seus cabelos castanhos estavam presos em um coque simples, e os olhos cor de mel carregavam uma doçura imediata. Não tinha a postura erguida das damas da alta sociedade, mas um jeito tímido que parecia pedir desculpas por existir. Rafael se surpreendeu ao vê-la; crescera ao lado dela, mas raramente lhe dera atenção — afinal, Clara sempre fora apenas “a filha da cozinheira”.

— Bom dia, senhor Rafael — disse ela, com um sorriso que parecia tímido demais para ser calculado.

Ele respondeu com um aceno rápido, mas Clara não desviou o olhar. Em vez disso, abaixou a cesta no banco de pedra do jardim e apoiou a mão no peito, como se sentisse uma dor repentina.

— Está tudo bem? — Rafael se aproximou, instintivo.

— Só… uma tontura. Tenho tido umas crises, mas não quero preocupar mamãe — murmurou, deixando o rosto empalidecer.

A palavra “crises” ecoou como um chamado à sua responsabilidade. Rafael, moldado para proteger, para carregar, não conseguiu ignorar. Ela parecia tão frágil diante dele que uma onda de compaixão cresceu em seu peito — e junto dela, algo perigoso: o desejo de protegê-la.

Clara levantou os olhos e sorriu, ainda que com esforço. — É estranho, não é? Crescemos na mesma casa, mas parece que só agora você me enxerga.

Rafael ficou em silêncio. E, nesse silêncio, Clara plantou a primeira semente da dúvida.

Isabella, naquele mesmo instante, atravessava o salão de mármore em direção ao avô. Seu vestido arrastava no chão como ondas silenciosas. Ela não sabia, mas do lado de fora, no banco de pedra do jardim, a história começava a ser escrita contra ela — por mãos que não tinham poder, mas que sabiam muito bem como fingir fraqueza.

Rafael permaneceu ao lado de Clara mais tempo do que imaginara. O banco de pedra do jardim, antes apenas um ponto de descanso, transformou-se em palco de uma conversa que ele não sabia se desejava ou se apenas fora arrastado para ela.

— Eu sei que não deveria incomodá-lo com isso — Clara disse, olhando para baixo, os dedos girando nervosos a alça da cesta —, mas às vezes sinto que não pertenço a lugar nenhum. Cresci nesta casa, mas nunca fiz parte dela de verdade.

As palavras ressoaram em Rafael como um espelho distorcido de si mesmo. Ele se lembrava bem do dia em que atravessara aqueles portões como um intruso, carregando apenas uma mochila gasta. Recordava-se do peso de não ser “de sangue” Arlott. E, por um instante, viu em Clara um reflexo da sua própria história.

— Você pertence mais do que imagina — murmurou, tentando consolá-la. — Nem sempre é fácil… mas você é forte.

Clara ergueu os olhos úmidos e, com um sorriso quase infantil, tocou de leve a mão dele. — É fácil dizer que sou forte quando não vê o quanto dói.

Rafael não recuou. Não soube se foi piedade ou identificação que o impediu de afastar a mão. O gesto foi breve, mas suficiente para que Clara percebesse o que precisava: ele estava vulnerável.

Enquanto isso, Isabella cruzava o salão em direção à biblioteca. O avô a esperava com documentos e uma xícara de café forte. Ela se orgulhava de estar cada vez mais presente nos negócios, assumindo responsabilidades que antes pertenciam somente aos homens da família.

— Está pronta para assinar os contratos da nova parceria agrícola? — Augusto perguntou, analisando o rosto da neta.

— Estou. — Isabella respondeu com firmeza, ajeitando a postura. — Quero que o nosso nome continue sendo sinônimo de prosperidade.

O patriarca sorriu com satisfação, mas seus olhos revelavam algo mais profundo: ele percebia que Isabella já não era apenas a neta protegida, e sim a futura líder.

Mas o destino, irônico como sempre, tecia outra trama lá fora.

No jardim, Clara suspirou com um ar frágil. — Eu só não queria que pensassem mal de mim… ou que dissessem que invento coisas. Já sofri tanto com comentários cruéis.

— Quem diria isso? — Rafael franziu o cenho, preocupado.

Clara mordeu o lábio, hesitando como se guardasse um segredo pesado. — Eu não deveria falar, mas… às vezes sinto que Isabella me olha como se eu fosse um peso. Sei que ela não gosta muito da minha presença por aqui.

O nome de Isabella caiu entre eles como uma pedra na água, criando ondas. Rafael não respondeu de imediato. Uma parte dele sabia que a herdeira sempre tratara os empregados com respeito, ainda que com a distância própria de sua posição. Mas outra parte — a mais frágil — lembrou-se das pequenas diferenças de tratamento que ele mesmo sofrera nos primeiros anos.

E assim, sem perceber, Clara cavava o fosso da desconfiança.

— Não dê ouvidos a isso… — Rafael disse por fim, mas sua voz não soava tão firme quanto gostaria.

Clara sorriu, satisfeita com a pequena fissura que abrira. — Obrigada por acreditar em mim, Rafael. Você não sabe o quanto isso significa.

Ele se levantou, ajeitando o paletó, tentando encerrar o assunto. — Preciso voltar. Mas… se sentir-se mal novamente, venha me procurar.

A promessa foi feita. E Clara, escondendo a vitória atrás de um olhar doce, sabia que bastava usá-la no momento certo.

De volta ao Solar, Isabella assinava os documentos sob a supervisão do avô. Não imaginava que, ao mesmo tempo, um novo jogo começava no jardim. E que, em breve, o noivo prometido começaria a enxergar nela aquilo que nunca existira — não por seus próprios olhos, mas pelos véus de mentira costurados por outra.

E foi assim que, silenciosamente, a traição começou a nascer.

Capítulo 3 — As Primeiras Sombras

O outono chegara a Valmont tingindo as árvores de vermelho e dourado, e os corredores do Solar Arlott refletiam a mesma melancolia das folhas que caiam silenciosas nos jardins. Isabella, agora com vinte e três anos, carregava no olhar a maturidade de quem fora educada desde cedo para liderar. Seus passos eram firmes, sua postura impecável, mas havia uma ternura em seus gestos que o avô jamais permitira que se apagasse.

Nos últimos meses, porém, algo mudara. Ela percebia a distância crescente de Rafael — o rapaz que crescera ao seu lado, com quem dividira segredos de infância e promessas inocentes de futuro. Antes, ele estava sempre presente, acompanhando-a em reuniões, jantares e passeios; agora, sua presença era marcada por ausências e olhares perdidos, como se carregasse um peso invisível que não ousava compartilhar.

Naquela tarde, Isabella entrou na biblioteca carregando um maço de relatórios. Encontrou Rafael sentado em uma das poltronas de couro, mas ele não a notou de imediato. Estava distraído, segurando um lenço de tecido simples, bordado à mão, algo que definitivamente não fazia parte do universo luxuoso dos Arlott.

— Rafael? — ela chamou suavemente.

Ele se sobressaltou, fechando o punho sobre o lenço antes de enfiá-lo apressado no bolso do paletó.

— Isabella, eu… não esperava você agora.

— Achei que estivesse me esperando. — Ela sorriu, tentando aliviar a tensão repentina. — O avô pediu que revisássemos juntos o contrato da exportação.

— Claro. — A resposta saiu automática, mas a mente dele estava distante.

Isabella sentou-se diante dele, mas, enquanto lia os documentos, seus olhos escapavam vez ou outra para o semblante do companheiro de infância. Havia nele uma inquietação que ela não sabia nomear, uma sombra discreta que não combinava com o jovem seguro que sempre conhecera.

A causa daquela sombra estava, naquele exato momento, na cozinha. Clara caminhava entre panelas e bandejas, mas sua atenção não estava no trabalho. A cada instante, os olhos buscavam a porta, esperando ansiosa pelo som de passos que ela reconhecia.

Não demorou muito. Rafael entrou pela entrada de serviço, como já acontecera outras vezes nas últimas semanas. Ele parecia desconfortável em estar ali, como se quebrasse uma regra não escrita, mas Clara o recebeu com um sorriso que dissolvia sua resistência.

— Você veio — disse ela, quase como uma criança que temia ser esquecida.

— Não deveria estar aqui — murmurou ele, olhando em volta. — Se alguém nos vir…

Clara suspirou, levando uma das mãos ao peito. — Está bem… não quero causar problemas. É que… as crises têm piorado. Eu não sei o que faria sem você, Rafael.

Ela apoiou-se na bancada, fingindo fraqueza, e Rafael, movido pelo mesmo instinto de sempre, a segurou pelos ombros. Clara fechou os olhos, deixando escapar um suspiro carregado de vulnerabilidade.

— Prometa que nunca vai me deixar — ela sussurrou. — Eu não suportaria.

Rafael hesitou. As palavras dela o atingiram como correntes invisíveis. Ele sabia que não deveria se envolver daquela forma, mas a fragilidade de Clara despertava nele uma necessidade quase visceral de proteger. E, sem perceber, a promessa feita anos atrás a Isabella começava a ser corroída pelo peso de outra.

Naquela noite, Isabella jantou sozinha na sala principal. O avô alegara cansaço e se recolhera cedo; Rafael dissera que precisava resolver “questões pessoais”. A herdeira permaneceu à mesa, ouvindo apenas o tique-taque do relógio e o estalar da lareira. Sentiu-se estranhamente só.

Olhou para o pingente no pescoço, aquele símbolo de um pacto antigo, e pensou em como a vida parecia mais frágil do que as promessas que um dia acreditara inquebráveis.

“Será que ele ainda me vê como a menina que prometeu proteger?”, questionou-se em silêncio, sem imaginar que, do outro lado da mansão, Rafael estava com Clara, ouvindo-a repetir as mesmas frases que gravavam cicatrizes em seu coração.

Dias depois, os rumores começaram. Valmont sempre fora uma cidade de olhos atentos, e não demorou para que algumas criadas murmurassem sobre os encontros de Rafael na cozinha. Isabella, porém, ainda nada sabia.

O que ela via era apenas a distância. Os sorrisos mais raros. As conversas mais curtas. Os olhares que, antes, se prendiam nos dela, agora se perdiam em outro lugar.

Certa manhã, caminhando pelos corredores, Isabella encontrou Rafael distraído, com Clara ao lado, entregando-lhe discretamente algo embrulhado em tecido. Ao perceber a presença da herdeira, os dois se afastaram rápido demais, e Rafael ensaiou uma explicação que soou frágil até para seus próprios ouvidos.

Isabella, porém, não o confrontou. Apenas o observou com olhos que guardavam mais do que diziam. No fundo, sabia que algo estava errado — mas ainda não imaginava a profundidade da teia que começava a se formar ao redor deles.

E enquanto o Solar Arlott seguia com seus jantares, reuniões e aparências intactas, a mentira começava a envenenar o que um dia fora uma promessa de amor eterno.

Naquela noite, enquanto Isabella tocava novamente o piano, sozinha, Rafael observava de longe. Não era mais o olhar de admiração do passado. Agora, havia nele a sombra da dúvida.

E Clara, escondida atrás da porta entreaberta, sorriu. Porque sabia: a distância entre eles já estava aberta. Bastava empurrar um pouco mais para que a promessa se quebrasse por completo.

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